Um dia, você terá morrido ontem. Seu corpo ainda vai estar (provavelmente) inteiro e sólido. As pessoas que te amam ainda vão estar chorando. E, por toda volta, a vida vai continuar igual, em tecnicolor e dolby surround, pessoas compondo músicas, pessoas gozando, pessoas nascendo.
O romance anônimo Lazarilho de Tormes foi publicado em meados do século XVI e fez tanto sucesso que criou um novo gênero literário: a literatura picaresca, onde um narrador em primeira pessoa, sempre das classes mais baixas e em chave humorística, conta a história de sua luta para sobreviver.
Mais importante, o personagem Lazarilho é talvez um dos primeiros narradores não confiáveis da literatura: na contradição paradoxal e inédita entre o ponto de vista do narrador e do leitor, somos chamadas pela primeira vez a nos inserir criticamente no enredo, a julgar o narrador contra si mesmo, a definir por conta próprio o sentido daquilo que lemos. Já estamos na véspera do romance contemporâneo.
No começo do século XVI, um aristocrata espanhol volta da guerra na Itália, começa a fazer poesias nas métricas italianas de Petrarca e muda a literatura espanhola para sempre.
Garcilaso de la Vega traz uma nova sensibilidade, musicalidade, temática, à poesia lírica espanhola, abandonando tudo aquilo que marcava a poesia espanhola medieval, seja o didatismo e a ênfase religiosa, quanto a musicalidade fácil das rimas tradicionais do romanceiro, e se abrindo a novos cenários e novos temas, mais pastorais, mais bucólicos, mais idealizados. Sua poesia é considerada o marco da Renascença na Espanha.
A descoberta da América é certamente um dos eventos mais importantes da aventura humana. (Infelizmente, não sabemos nem mesmo quando aconteceu: provavelmente 15 mil anos atrás, mas há controvérsias.)
Já a chegada das primeiras pessoas europeias poderia até ter sido importante, mas os acampamentos vikings no Canadá deixaram poucas consequências históricas.
Para bem ou para mal, a conquista do Novo Mundo pelos espanhois, exatamente em sua época de maior poderio militar e de apogeu cultural, é o evento que vira o mundo de cabeça para baixo.
Das muitas obras literárias estreladas pelo heroi medieval El Cid, as poesias de cordel talvez seja as mais tradicionais e as mais belas.
Quando vocês me perguntam “qual tradução de Dante ler?” talvez não se deem conta de o quão difícil é essa pergunta e de o quão pessoal é essa resposta.
Tudo depende de quais são nossas prioridades, do que estamos buscando na obra.
Ou seja, depende, basicamente, de você.
Um mocinho vê uma mocinha em um jardim e se apaixona à primeira vista. Querendo se aproximar, contrata, por intermédio de seu criado, uma velha casamenteira.
Com uma sinopse que poderia ser a de uma novela sentimental como Cárcere do Amor, a Celestina rapidamente se transforma uma tragédia irredimível, terrível, inesquecível. Nada é o que parece, nenhum personagem é virtuoso, a subversão dos cânones sentimentais é total: os nobres apaixonados pensam apenas em seus próprios prazeres, os pobres se esfaqueiam para ver quem enganará os nobres e os burgueses só querem saber de amealhar mais riquezas.
O romance/cordel do Conde Yanno (em Portugal) ou Conde Alarcos (na Espanha) é dos mais famosos da península ibérica. Abaixo, duas versões, em português e espanhol. Vale a pena ler as duas: não são traduções strito sensu, mas a mesma história contada de duas formas diferentes.
(Esse “romanceiro velho”, ancestral de nossa literatura de cordel, será nossa leitura na segunda aula, Cordel, do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. O curso está saindo com desconto só até 6mar. Compre aqui.)
O personagem Amadís de Gaula é o cavaleiro perfeito e paradigmático, vivendo aventuras completamente artificiais em um mundo totalmente fantástico. Ele é como uma purificação, o mínimo denominador comum do romance de cavalaria arturiano, agora sem a traição de Lancelot, sem o misticismo da busca pelo Graal, sem as loucuras amorosas de Tristão, sem qualquer defeito ou mácula.
As coplas pela morte de meu pai, compostas por Jorge Manrique em 1476, além de belíssimas, servem como epitáfio e elegia de todo um mundo de valores medievais aristocráticos que morria no final do século XV, na passagem de um sistema feudal de nobreza forte para um sistema pré-capitalista de monarquia autoritária.
A nossa “literatura de cordel” tem origens na poesia de romanceiro da Península Ibérica, tanto na Espanha quanto em Portugal. Esse “Romanceiro velho” será nossa leitura na segunda aula do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. (O curso está saindo com desconto só na primeira semana de vendas, até 23fev. Compre aqui.)
O Poema do meu Cid talvez seja a primeira obra-prima das línguas românicas. Quando foi composto, Dante ainda não era nascido e só começavam a surgir as primeiras canções provençais, no sul da França, seguidas pelas cantigas galego-portuguesas, no noroeste da Península Ibérica. Por tudo isso, o Poema está em um castelhano antigo, diferente daquele que é falado hoje, mas ainda compreensível.
(Para pessoas fluentes em espanhol contemporâneo, é um como ler Grande Sertão: Veredas para nós: é a mesma língua, mas em outro registro. Demora um pouco pra se acostumar mas, quem insiste, pega no tranco.)
O Poema do Cid é, antes de mais nada, uma belíssima obra de arte que pode e deve ser apreciada por qualquer pessoa. (O que a gente estuda é matéria pra escola: literatura a gente curte.)
Para nós, brasileiras, a primeira questão é: como ler? Não existe tradução brasileira em verso, o que é triste. Eu estou tentando escrever uma. Aqui vai, abaixo, uma primeira tentativa de tradução das quatro primeiras estrofes, rascunhada ainda, só para dar uma ideia da força do poema:
O Poema do meu Cid, no século XIII, é a primeira grande obra-prima espanhola, talvez a primeira verdadeira obra-prima literária em qualquer língua românica (ainda faltavam cem anos para A Divina Comédia) e um exemplo do melhor que a poesia medieval tinha a oferecer. É a canção medieval perfeita, protagonizada pelo cavaleiro paradigmático, bem-sucedido e em total sintonia com seu mundo.
Será nossa leitura na primeira aula do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna.
O Brasil acrescentou alguns poucos grandes textos à literatura mundial: além dos contos de Machado, também A hora da estrela e, especialmente, Água viva, de Clarice Lispector, e, na não-ficção, Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, Os sertões, de Euclides da Cunha, Cemitério dos vivos, de Lima Barreto. Todos esses são, em alguma medida, indispensáveis para mim. Cada um, a sua maneira, com seus limites e suas grandezas, é uma obra-prima.
Mas se eu, hoje, tivesse que escolher um, seria Grande Sertão: Veredas.
Como definir a condição legal da “pessoa escravizada” em um país que tem vergonha de nomear o regime escravista em sua própria Constituição?
Se não existia definição legal de “escravo”, então também não existia essência de “escravo”: “ser escravo” não era uma teoria, era uma prática.
Se “escravo” era quem agia como “escravo”, então, consequentemente, “escravo” era quem era escravizado, quem se deixava escravizar.
(Mas e quem não deixava?)
Na falta de uma definição oficial de “escravo”, de que outra maneira saberia-se quem era “escravo” a não ser por “agir como escravo”?
(Mas e quem não agia?)
De tantos dramas humanos (e sociais, políticos, econômicos, jurídicos, etc) causados pela escravidão em nosso país, a Ação de Liberdade movida em 1882 pelas 80 pessoas escravizadas do finado Major Francisco Alves Moreira, de Caçapava, São Paulo, talvez seja a mais interessante, paradoxal, reveladora.
Qualquer obra de arte só pode ser criada e lida dentro de um contexto cultural específico. Quando os contextos mudam, as obras precisam mudar também. Escreveu Jorge Luis Borges:
“Uma literatura distingue-se de outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida: se me fosse permitido ler qualquer página atual — esta, por exemplo — como será lida no ano 2000, eu conheceria a literatura do ano 2000.”
Úrsula, para fazermos sentido de sua importância, precisa ser lida contra o pano de fundo de dois momentos culturais: o romantismo gótico literário e a literatura fundacional brasileira. Contra o primeiro pano de fundo, esse romance é o mais convencional possível, tão convencional ao ponto de ser digno de nota em sua representatividade mimética. Contra o segundo, é revolucionário e subversivo.
Existe uma gigantesca lacuna na literatura oitocentista brasileira, uma ausência tão grande e tão inesperada que chama atenção: apesar de termos sido a maior economia escravista de todos os tempos, os dramas humanos inerentes à escravidão simplesmente não aparecem na literatura do período.
Foram sim escritas muitas obras, poemas e peças, contos e romances, que encararam de frente os horrores e dramas, os dilemas e os paradoxos de uma monarquia ocidental escravista em pleno século XIX, mas, tanto antes quanto depois da Abolição, essas obras foram sistematicamente desvalorizadas, esquecidas, descanonizadas.
A escravizada Mariana, protagonista do conto homônimo de Machado de Assis, criada no auge da campanha abolicionista, prontamente esquecida por seu criador e somente recuperada em meados do século XX, poderia formar um paralelo revelador com a própria escravidão, tema de debates polêmicos em sua época, prontamente esquecida por seus defensores e opositores assim que abolida e somente recuperada em sua importância histórica no século seguinte.
Ao longo de todo o século XIX, a escravidão foi a grande vergonha nacional. Assim que é abolida, não há nada que nossa elite quer mais do que esquecer que ela jamais existiu. Entre a Abolição (1888) e o lançamento de Casa Grande & Senzala (1933), a escravidão praticamente desaparece da Grande Conversa Brasileira. Ninguém simboliza, representa, encarna esse processo melhor do que Joaquim Nabuco: ele foi, ao mesmo tempo, o maior inimigo da escravidão brasileira e, também, o primeiro a esquecer que ela jamais existiu.
Gilberto Freyre não era e não se considerava historiador, mas usava uma abordagem histórica para explicar problemáticas sociológicas. Ele estuda seu objeto de dentro, colocando-se ele mesmo como parte do objeto de análise: ele se faz personagem de seu próprio livro (Benzaquen). Enquanto historiador, ele realiza uma transposição, uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro, para revivê-lo empaticamente, usando um estilo sugerido, instintivo, incompleto, etc, que o impede de ser definitivamente rotulado.