O espetáculo Outrofobia, escrito por mim, está em cartaz em Curitiba.
Categoria: teatro
Pessoa querida me elogiando:
“Alex, admiro sua esperança, seu otimismo.”
Eu, surpreso:
“Esperançoso? Otimista? Eu? Onde foi que passei essa impressão?”
há muito tempo, quando ainda circulavam piadas e ppts por emails, eu tinha uma resposta pronta para quem me mandava essas coisas:
“querida pessoa, tenho interese em TUDO o que você tenha a me dizer e em NADA do que tenha a me encaminhar.”
ou seja, pode me mandar um email de vinte páginas falando dos seus problemas, mas não me repassa piada.
estou no facebook 100% a trabalho, só para divulgar meus textos: não faço posts pessoais, compartilho muito pouco da minha vida.
de fato, não curto posts de ninguém porque tenho o maior cuidado de nunca VER os posts de ninguém.
hoje, eu diria algo assim:
“querida pessoa, tenho interesse em TUDO o que você tenha a me dizer e em NADA do que tenha a compartilhar no facebook.”
meu telefone está no site. estou aberto à visitas. quase todo dia, pessoas que às vezes nem conheço me ligam, aparecem no fim da tarde, me contam suas vidas, choram, riem. e eu ouço, acolho, abraço.
isso é conexão humana.
ficar curtindo as postagens das “personas de facebook” que minhas pessoas amigas criaram, pelo contrário, é só alimentar o monstro que está nos devorando.
* * *
aí, alguém poderia perguntar:
“isso é egoísta e egocêntrico. você compartilha seus textos mas não quer ver as coisas de mais ninguém. por que então eu te curtiria ou compartilharia?”
e eu responderia:
“se você acha que não deve curtir nem compartilhar os meus textos, então, não faça isso.
se tem alguma coisa que você quer que eu veja, por que não manda diretamente para mim? pode mandar por email. pode ligar e me contar. pode aparecer aqui em casa.
TEM que ser pelo facebook?”
* * *
para me ligar ou me visitar, confira minha página de contato. o melhor modo de acompanhar meus textos é pela newsletter, que estabelece um canal direto entre nós.
Em 2007…
Semana que vem, estréia aqui em Nova Orleans uma montagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Não é sempre que se monta teatro brasileiro por essas bandas. Minha turma de português está lendo “O Beijo no Asfalto” e vou levá-los para ver “Vestido de Noiva” também – apesar do espetáculo ser em inglês, naturalmente. O diretor da peça me convidou para assistir aos ensaios e escrever o programa, apresentando a obra e o autor para um público que provavelmente nunca ouviu falar deles. Aqui vai:
There Are No Camels in This Play
There are no camels in the Koran, writes Jorge Luis Borges; this absence alone proves the authenticity of the Arabian book. Borges was pulling his readers legs, of course (there are several camels in the Koran!), but his point stands.
In “The Wedding Dress”, you will find none of the stereotypes you might (rightly or wrongly) associate with Brazil: there are no mulatas, slums, beaches, soccer, slavery, coffee or supermodels. Not even biofuel or Brazilian wax.
And, nevertheless, you are about to watch what is arguably the best Brazilian play of the twentieth century, written by its arguably best playwright. The double “arguably” is no accident: both Nelson Rodrigues and his ouvre are still being hotly debated as we speak.
Usually set in the conservative suburbs of mid-century Rio de Janeiro, most of his plays, novels and short-stories (one could almost say all) deal with his relentless idée fixe: adultery, sometimes accompanied by incest, bestiality, pedophilia, necrophilia and, of course, generous servings of murder.
Who was Nelson Rodrigues himself? The title of his most recent biography captures his many ambiguities and contradictions: “The Pornographic Angel”. In an artistic establishment almost unanimously liberal, he had the temerity of proclaiming himself a reactionary and supporting the right-wing military dictatorship. His artistic goal, or so he said, was to write moral plays denouncing the sins and vices of society.
But society, apparently, was not convinced. Nelson Rodrigues was considered to be an immoral pornographer, the greatest enemy of the Brazilian catholic family, an author who did his best to promote deviant, unacceptable sexual behavior. Despite his support of the regime and his well-connected friends in high places, his works were constantly censored and prosecuted.
The Nelson Rodrigues you are about to meet, however, is considerably younger and more well-behaved than his older self. He wrote “The Wedding Dress” in his late 20s and it was only his second play. There is adultery and murder, of course, but almost naively when compared to later works. Most of all, “The Wedding Dress” is his most avant-garde play: its revolutionary, complex structure is certainly not what most viewers would expect from Latin American drama of the 1940s.
The action takes place simultaneously in three planes: reality, memory and hallucination. We follow the main character Alaíde through her real life (being hit by a car and undergoing surgery), her past history (stealing her sister’s love interest and finding the diary of a known prostitute) and her disconnected, agonizing rambles as she fights for her life on the operating table.
The performance you are about to watch includes one important deviation from the original play: two actresses playing the role of Alaíde instead of just one. From the actor’s point of view, it breaks an almost impossible role into two: the original, “unified” Alaíde had to constantly change clothes and hop from one stage to another, making it both physically and mentally demanding. To the audience, most importantly, having two Alaídes allows them to interact and argue between themselves, heightening the dramatic potential of the play and, ultimately, improving it.
Nelson Rodrigues would probably have approved.
dario fo no rio
dario fo. dramaturgo italiano. maluco. comunista. improvisador. pícaro. legítimo herdeiro de brecht. por lapso do sistema, ganhou o nobel de literatura de 1997.
duas peças em cartaz no rio.
no serrador, ali na cinelândia, em excelente ocupação pela companhia alfândega 88, júlio adrião no monólogo a descoberta da américa. sobre um marinheiro da frota de colombo abandonado no novo mundo. simplesmente excelente. humano. enorme. engraçado.
(as próximas apresentações são entre os dias 28 de novembro e 2 de dezembro, às 19 horas.)
no cândido mendes, em ipanema, ali do lado da praça nossa senhora da paz, outro monólogo: il primo miracolo. ou seja, o primeiro milagre. (será que acharam que, se colocassem o título em português, pareceria uma peça evangélica?) é a história da infância do menino jesus, contada através dos evangelhos apócrifos, e do seu controverso primeiro milagre. poucas vezes vi uma performance tão linda, tão humana, tão forte, tão carismática quanto a de roberto birindelli. ali, sozinho no palco. sem nenhum adereço ou parafernália. só ele, nós e a luz. belíssimo.
(às terças e quartas, às 21 horas, até 19 de dezembro.)
ao final da peça, uma fala de birindelli me ficou na memória: esse espaço só é teatro nessa breve hora enquanto estamos todos aqui juntos; antes e depois disso, é apenas um chão de tábuas sujas.
O escravo que Machado de Assis censurou
Moralidade e Civilização no Teatro Oitocentista Brasileiro
A maior parte da produção dramática do século XIX no Brasil foi esquecida: poucas peças são mencionadas nos manuais de história literária, menos ainda estão em catálogo e, com raras exceções, quase nenhuma é regularmente encenada. Apesar disso, o teatro era o único meio de comunicação de massa da época e sua importância para a cultura nacional é impossível de ser exagerada.
Em meados do XIX, os palcos brasileiros eram dominados por dois gêneros teatrais muitas vezes indistinguíveis. Os dramas românticos preocupavam-se mais com questões de formação da identidade nacional, frequentemente enfocando momentos-chave da história brasileira. Por sua ênfase na união da nação e na superação de conflitos, essas peças raramente abordavam de frente temas polêmicos como a escravidão.
A escola realista, entretanto, seguiu outro paradigma, com montagens mais comedidas, trocando situações violentas e sentimentalismos por uma objetividade descritiva, abandonando o olhar para o passado e tentando produzir um “daguerreótipo moral” da realidade e costumes contemporâneos. Esses autores se confessavam utilitaristas e moralistas: o objetivo de suas peças seria a regeneração da sociedade tendo por base os valores éticos da nascente burguesia urbana, denunciando males como a prostituição, o adultério, o jogo, o casamento por influência, a usura, a agiotagem. Ao invés dos fatídicos e passionais casos de amor entre reis e marginais, artistas e boêmios, as peças agora apresentam namoros pudicos entre jovens bem comportados, levando a casamentos felizes e bem-ajustados.
Ironicamente, apesar da natureza conservadora dessas peças, um dos seus temas principais era a denúncia da escravidão. O foco, entretanto, era sempre uma defesa feroz da sagrada instituição da família burguesa: a escravidão era um problema social não por suas falhas estruturais, mas porque sujeitava os senhores brancos às tentações da fornicação doméstica.
Escravidão e Teatro
Três das peças mais bem-sucedidas do século, ambas sobre escravidão, exemplificam bem o tipo de abordagem que era não apenas aceitável, mas louvada.
História de uma Moça Rica (1861), de Francisco Pinheiro Guimarães, era ambiciosa: não contente em atacar somente um alvo, o moralismo burguês do autor investia contra os casamentos de conveniência, o adultério, a prostituição e, finalmente, sobre as relações sexuais entre patrões e escravas permitidas pela “vergonhosa instituição”. A escrava mulata Bráulia, precursora de tantas mulatas perversas e sensuais, seduz o marido de sua dona, vira-o contra ela, torna sua situação insustentável até que a sinhá foge e, então, amanceba-se com o senhor—posteriormente, a peça nos informa que ela ainda o envenena.
A mensagem de Pinheiro Guimarães é a mesma que Joaquim Manoel de Macedo também tentaria transmitir pouco depois, com As Vítimas-Algozes (1869): escravos dentro de casa, em proximidade com o senhor, sendo seres perversos e sem moral, eram um perigo constante aos brancos.
História de uma Moça Rica foi uma das peças mais bem-sucedidas na época, sendo publicada em livro no mesmo ano e recebendo fartos elogios de escritores como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e Quintino Bocaiúva. O impacto aparentemente foi grande: cinquenta anos depois de sua estréia, o memorialista Escragnolle Dória (1869-1948) ainda se recorda de ouvir uma dama da sociedade dizer que nunca mais teve mucamas em casa:
“Mulatas na minha casa? Eu não quero desgraças. Depois que vi a “Moça Rica”, nunca mais me passam da porta da rua. E é de mais.” (221)
O Demônio Familiar (1857) e Mãe (1860) foram ambas escritas por José de Alencar, um dos autores mais canônicos da literatura brasileira. Por isso, essas peças não apenas ditam o tom que o teatro realista vai seguir e enfatizam o fator moralizante dessa escola, como também mostram que mesmo um autor historicamente ligado à escravidão, como Alencar[1], não fugia ao tema. Entretanto, suas críticas não são nunca aos aspectos estruturais, sociais, políticos ou econômicos da escravidão, mas aos operacionais.
Em O Demônio Familiar, temos um moleque, Pedro, escravo de casa, presumivelmente adolescente: ao se intrometer na vida dos moradores de sua família, algumas vezes por malícia, outras por descuido, Pedro causa uma série de confusões e mal-entendidos, somente solucionados ao final da peça. Por fim, para puni-lo por sua irresponsabilidade, o senhor lhe dá a liberdade, para que agora seja imputável por seus próprios atos.
Precursor de História de uma Moça Rica e As Vítimas-Algozes, o grande alvo da crítica moralizante de O Demônio Familiar são os efeitos perniciosos da escravidão doméstica para a família branca. A escravidão, em si, não parece ser um problema: pelo contrário, é a liberdade que é mostrada não apenas como um castigo, mas como algo que se concede, nunca como uma condição inerente do ser humano—pelo menos, não do ser humano negro.
Em Mãe, uma escrava idosa é secretamente a mãe e protetora do seu senhor, Jorge. Para poder ajudar financeiramente o futuro sogro, Jorge hipoteca a escrava e termina vendendo-a, dando origem a uma das frases mais bombásticas e famosas do teatro dessa era:
“Desgraçado! Tu vendeste tua mãe!”
Quando o segredo é revelado, o próprio sogro, apesar das ajudas que Jorge lhe prestara, admite, aparentemente a contragosto, que o casamento não poderia acontecer:
“Sinto muito, porém… O senhor compreende, a minha posição… As considerações sociais…”
Uma vez mais, entretanto, o foco da crítica de Alencar não parece ser a escravidão como instituição, mas a “facilidade operacional” que ela fornece aos adúlteros e fornicadores. (Mendes 40-61)
Liberdade de Expressão e Censura no Brasil Oitocentista
Durante o Segundo Reinado, o Brasil viveu um período de ampla liberdade de expressão. Segundo Alberto Costa e Silva e José Honório Rodrigues, dois dos mais respeitados historiadores brasileiros, de 1848 a 1880, o país viveu
“os anos de mais absoluta e total legalidade de toda a sua história”.
Não havia cárcere político, o governo garantia as liberdades individuais e fazia-se abertamente a propaganda da República. (385)
Isabel Lustosa, uma das principais especialistas na história da imprensa no Brasil, autora de Nascimento da Imprensa Brasileira (2003) e Insultos Impressos: A Guerra dos Jornalistas na Independência, 1821-1823 (2000), escreveu em um artigo para o jornal O Estado de São Paulo:
“Talvez não seja exagero dizer que foi durante o Segundo Reinado que a imprensa gozou de maior liberdade no Brasil.”
No site da ANJ (Associação Nacionais dos Jornais), na seção História do Jornal no Brasil, um texto disponível em formato pdf, anônimo e sem data, presumivelmente representa a posição oficial da instituição quanto à história da imprensa no país: “Imprensa Brasileira—Dois Séculos de História”. Ele afirma que, em relação à liberdade de imprensa, o Segundo Reinado é incomparável tanto com a situação dos países vizinhos quanto com a própria Era Republicana, enfatizando que o monarca era muito tolerante com críticas pessoais e até mesmo com pregações pela mudança de regime.
Finalmente, José Murilo de Carvalho, talvez um dos maiores especialistas vivos na História do Segundo Reinado, afirma, em sua recente biografia homônima de Dom Pedro II:
“‘A imprensa se combate com a imprensa.’ … Durante a Guerra do Paraguai, o jornal Ba-ta-clan, publicado em francês no Rio de Janeiro por Charles Berry, ridicularizava os chefes militares brasileiros. D. Pedro impediu que fosse fechado, e protestava sempre que alguma violência era exercida contra jornais. … A imprensa nunca foi tão livre no Brasil quanto em seu reinado. … A defesa intransigente da liberdade de expressão tinha alto custo para d. Pedro. Ele, Isabel e o conde d’Eu eram vítimas constantes de ataques de jornais… Diplomatas europeus e outros observadores estranhavam a liberdade dos jornais brasileiros. Schreiner, ministro da Áustria, afirmou que o imperador era atacado pessoalmente na imprensa de modo que “causaria ao autor de tais artigos, em toda a Europa, e até mesmo na Inglaterra, onde se tolera uma dose bastante forte de liberdade, um processo de alta traição”. O ministro da França, Amelot, também registrou em 1887 que havia no Brasil uma liberdade ilimitada de imprensa e ‘parlamentarismo exagerado'”. (Carvalho 84-86)
Naturalmente, não seria difícil de argumentar que o Brasil gozava de tamanhas liberdades justamente por ser uma sociedade tão autoritária, desigual e injusta. Assim como o Brasil nunca necessitou de leis de segregação racial pois a desigualdade econômica já mantinha os negros convenientemente afastados da elite branca, taxas altíssimas de analfabetismo ao longo de todo o século XIX garantiam que era somente a própria elite que escrevia para si mesma. Não seria daí que partiria o perigo: a grande preocupação nacional era uma revolta negra que nos transformasse no Haiti, não qualquer coisa que pudesse ser escrita em um editorial.
Para fins de comparação: em 1871, a Prússia tinha analfabetismo de 15% na população acima de dez anos; no ano seguinte, o Brasil registrava 82% na população acima de 5 anos. (Ferraro 2004)
Censura e Inoperância Artística
Em larga medida, só se censura aquilo que se teme. A liberdade de expressão do bobo da corte é inversamente proporcional ao seu poder: somente tudo fala quem nada pode. Os cafeicultores paulistas eram tão extremamente ciosos de suas prerrogativas quanto qualquer elite: se Castro Alves pôde “cantar os escravos” em plena caverna dos leões é porque jamais ocorreu a ninguém que suas poesias tivessem o poder de influenciar a realidade política e econômica do país.
Já no século XIX, especialmente com a noção burguesa de uma arte engajada e moral cujo objetivo seria didático e prescritivo, alguns autores protestam contra tamanha “inoperância social”: nas palavras de Alberto Pimenta, eles exigem que
“a arte seja sujeita às sanções normais aplicadas a todo o delito verbal, vendo nessa igualdade perante a lei a justificação da sua importância social e a manifestação da sua liberdade.” (9)
Eça de Queirós, por exemplo, em 1871, protestava contra a publicação nos jornais de uma poesia repleta de termos do mais baixo calão que
“nenhum jornal publicaria … em prosa” mas “como se consente então a sua publicação em verso?” (9)
(Machado de Assis teria concordado: em 1878, em uma resenha bastante dura de O Primo Basílio, ele criticava justamente “a obscenidade sistemática do realismo”.)
Ainda sobre a inoperância da arte, Pimenta cita também o autor alemão Alfred Döblin, escrevendo em 1929:
“‘A arte é sagrada’ praticamente não significa outra coisa do que: o artista é um idiota, deixem-no falar à vontade. … ‘A arte é livre’, quer dizer, é totalmente inofensiva, os senhores e as senhoras artistas podem escrever e pintar o que lhes apetecer… A arte, porém, não é sagrada e é lícito proibir obras de arte. É uma ofensa à arte dizer deste modo que ela é sagrada, e torná-la inoperante.” (10)
Impacto Social e Alcance do Teatro Oitocentista
Nossa elite imperial aparentemente não temia a literatura, a poesia ou a imprensa—mas temia os palcos. Mesmo em uma época de surpreendente liberdade de expressão como Segundo Reinado, onde a imprensa e a literatura eram livres, considerava-se necessário controlar e censurar o teatro, único meio de comunicação de massa.
Para leitores do Brasil atual, onde um espetáculo estrangeiro como o Cirque de Soleil consegue milhões em patrocínio público e, ainda assim, cobra entradas maiores que um salário mínimo mensal[2], talvez seja importante enfatizar o impacto social do teatro oitocentista. Por volta de 1860, quando os ingressos mais baratos dos teatros custavam cerca de mil-réis, um mestre-de-obras ganhava cerca de 3.500 réis por dia, um carroceiro, 1.220 réis, um feitor de escravos, 1.500 réis, um carpinteiro, 500 réis. Ou seja, mesmo um trabalhador bastante humilde poderia comprar uma entrada de teatro com somente dois dias de trabalho. (Martins de Sousa 128 n.68)
As plateias dos teatros da Corte eram frequentemente palco (trocadilho intencional) de revoltas, motins, violências e agitações: do ponto de vista do governo, era necessário controlar esse caráter imediato, coletivo e emocional do público. (34) Além disso, a missão do teatro, como vimos, era também moralizante e civilizadora: fazia-se necessário educar essa turba mal-comportada que lotava as galerias dos teatros.
Por fim, o teatro tinha alcance muito maior do que a literatura. Por exemplo, no ano de 1874, a adaptação teatral do romance O Guarani, de José de Alencar, teve 42 apresentações quase sempre lotadas no Teatro Lírico Fluminense. André Rebouças, engenheiro sempre preciso com números, descreveu a capacidade deste teatro em 1870 como sendo de cinco mil pessoas. (287) João Roberto Faria, um dos maiores especialistas em teatro oitocentista brasileiro, cita mil. (1987, 149) Henrique Marinho, também historiador do teatro, menciona 838 lugares e 123 camarotes de capacidades diversas, e conta que, em outra ocasião, tocou ali uma orquestra de trinta pianos e quatrocentos músicos. (70-71) Além disso, sabemos que a peça O Guarani tinha impressionantes 250 atores em cena. Ou seja, de acordo com todas as fontes, era um teatro monumental.
Enquanto isso, a primeira tiragem de O Guarani, em 1857, custeada pelo autor e alta para a época, foi de mil exemplares—dos quais 300 truncados, como o próprio revela em Como e Porque Sou Romancista. Em vida do autor, haveria apenas outras cinco. Em outras palavras, todos os leitores da primeira edição caberiam, com folga, em qualquer uma única apresentação teatral de O Guarani.
Andando pelas ruas do Rio de Janeiro, seria muito mais fácil encontrar espectadores do que leitores de O Guarani: para nós, no século XXI, ele pode até ser um romance de José de Alencar mas, para o carioca médio e consumidor de cultura da época, O Guarani era, antes de tudo, uma peça e uma ópera. Mesmo se levarmos em conta que cada edição poderia ser lida por mais de uma pessoa, ou lida em voz alta para a família, ainda assim o alcance social do teatro era muito mais amplo que o da literatura impressa. Daí a necessidade de controlá-lo.
O Conservatório Dramático Brasileiro e a Censura Teatral
Em um primeiro momento, a tarefa de censurar o teatro cabia à polícia, cujo grande critério era (ou deveria ser) a segurança, proibindo cenas fortes que pudessem ocasionar perturbações, histeria ou violência na plateia. Entretanto, um aviso de 1841 também dava a polícia o poder de censurar peças por ofenderem
“a moral, a religião, a decência pública.”
Em 1843, essas últimas atribuições são (teoricamente) transferidas para o recém-criado Conservatório Dramático Brasileiro, cuja função era realizar a censura prévia das peças que se encenariam no Teatro São Pedro e, depois, em todos os teatros públicos da Corte. (Martins de Sousa 145) Em teoria, a polícia deveria deixar a censura moral e literária nas mãos do Conservatório, mas as duas instituições acabavam entrando em frequentes conflitos.
No caso mais célebre, a polícia proibiu a apresentação da peça As Asas de Um Anjo, de José de Alencar, depois de ela já ter sido não apenas aprovada pelo Conservatório como encenada três vezes no Teatro Ginásio Dramático. Nesses casos de conflito, o vencedor era sempre o mesmo: afinal, a polícia era a polícia, mas o que era o Conservatório?
Por um lado, o Conservatório era uma instituição privada, fundada por alguns dos mais famosos intelectuais e artistas do país, nos moldes do Conservatoire, de Paris, e do Real Conservatório Dramático, de Lisboa, com o objetivo de incentivar a arte teatral, estimular os autores nacionais, fundar uma escola dramática, criar um jornal, etc etc.
Por outro lado, ao receber do governo a atribuição de censurar as peças da Corte, acabou funcionando na prática como um órgão repressivo do Estado—mas duplamente impotente, por não ter nem fundos nem poder punitivo. A atividade censora gerava despesas que o pequeno subsídio governamental não cobria e a instituição, que nunca teve sede fixa mas se reunia alternadamente nas casas dos membros, mantinha-se pelas taxas que cobrava destes mesmos abnegados—que pagavam pelo privilégio de serem censores teatrais. E quando a polícia os desdizia, ou uma companhia teatral os ignorava, simplesmente não havia nada que pudessem fazer.
Sobrecarregado pela atividade censora que lhe consumia todas as forças, o Conservatório nunca pode se dedicar às suas atividades mais, digamos, sublimes e literárias e manteve-se sempre nesse vazio meio-termo: nem público nem privado, um órgão repressivo sem poder repressor, um censor moral sem moral alguma, uma “simples repartição decorativa”, na expressão de Galante de Sousa. (1960, I, 320) Por fim, quando se auto-dissolveu em 1864, em resposta a sua já total irrelevância, o Conservatório recebeu o seguinte obituário de um de seus mais antigos membros, o escritor e dramaturgo Joaquim Manuel de Macedo:
“O Conservatório Dramático Brasileiro não pôde fazer pelas letras e pela arte dramática o que por certo estaria na mente e no empenho do seu principal fundador. O trabalho foi estéril; a dedicação perdida; os resultados nulos. Não tinha sido uma instituição prematura; nasceu, porém, e foi deixada incompleta: nunca mostrou ser o que seu titulo dizia; nunca passou de uma simples auxiliar da censura policial dos teatros, ou antes das obras dramáticas.” (346)
O Zelo Censor de Machado de Assis
De acordo com seus estatutos, o Conservatório poderia censurar peças por ataques à autoridade constituída, por desrespeito à religião e por ofensa à moral pública, sendo que essa última, naturalmente, pode significar qualquer coisa. Vale a pena ressaltar que, mesmo se fossem censuradas e impedidas de chegar aos palcos, as peças poderiam ser livremente publicadas, seja na imprensa ou em forma de livro, o que aliás acontecia rotineiramente.
Para alguns censores mais zelosos, entretanto, as atribuições legais da censura teatral eram muito limitadas. Machado de Assis, por exemplo, defendia que o Conservatório também tivesse o poder de vetar peças por baixa qualidade literária e por mau uso da língua portuguesa. Segundo ele, não bastava uma censura moral sem uma equivalente censura estética, literária e intelectual. Em 1860, aos vinte e um anos, ainda não membro do Conservatório mas já crítico teatral de O Espelho, ele escrevia o seguinte nesse mesmo periódico:
“Julgar do valor literário de uma composição é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um direito de espírito: é tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação… Com o direito de reprovar e proibir por incapacidade intelectual, … o Conservatório … deixa de ser uma sacristia de igreja para ser um tribunal de censura. E sabem o que seria então esse tribunal? Uma muralha de inteligências às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem à dignidade do tablado.” (216-221)
Não foi somente um desabafo intempestivo e ocasional de escritor frustrado, mas sim a fé-de-ofício de um censor zeloso em potencial. Pouco antes, em 1857, adolescente ainda, Machado tivera seu primeiro contato com o Conservatório, ao submeter e ter aprovada sua peça A Ópera das Janelas—que não chegou até nós. (Nunes da Silva 2006 191)
Meros cinco anos mais tarde, em 1862, o colunista de O Espelho já era admitido como membro e, em seu primeiro ano de atividade como censor, ao aprovar a sua revelia o drama Clermont, ou a Mulher do Artista, eis suas palavras:
“Sinto deveras ter de dar o meu assenso a esta composição por que entendo que contribuo para a perversão do gosto público e para a supressão daquelas regras que devem presidir o teatro de um país de modo a torná-lo uma força de civilização. Mas como ela não peca contra os preceitos da nossa lei, não embaraçarei a exibição cênica de Clermont ou a Mulher do Artista, lavrando-lhe todavia condenação literária e obrigando pelas custas autor e tradutor.” (264-265)
E não eram essas as únicas críticas do jovem literato:
“O caderno em que está escrita a comédia Os Nossos Íntimos parece haver saído de uma taverna, tal é o seu aspecto imundo e pouco compatível com a decência do Conservatório Dramático.” (270)
Certamente não é justo exigir que um rapazola de vinte anos, brasileiro sem viagens, oitocentista, pobre e autodidata, se eleve sobre a cultura média do seu tempo e lugar, mas a verdade é que o problema da censura em si, como limitação da liberdade de pensamento, não parecia preocupar a Machado de Assis. (Pontes 30-31)
O Conservatório funcionou de 1843 a 1864, em sua primeira fase, e de 1871 a 1897, em segunda fase—quando os censores passaram a ser finalmente pagos, ao invés de pagar para censurar. (Martins de Souza 208)
Na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, podem ser encontrados dezesseis pareceres emitidos entre 1862 e 1864 pelo jovem censor Machado de Assis, e na Biblioteca Pública do Estado do Maranhão, outros dezenove, de 1886 e 1887. Além disso, o parecer de Machado sobre a peça Os Lazaristas (que gerou intensa polêmica) foi reproduzido na imprensa em 1875. (61-68, 93-94) Todos esses pareceres estão publicados, alguns pela primeira vez, no volume Do Teatro, organizado por João Roberto Faria em 2008.
Não temos como saber se Machado produziu apenas esses pareceres ou se apenas esses sobreviveram ao tempo. Sabemos, entretanto, que em pelo menos uma ocasião ele proibiu a montagem de uma peça especificamente por discordar de sua abordagem da questão escrava.
Cesar de Lacerda e Os Mistérios Sociais
A comédia portuguesa Os Mistérios Sociais, de autoria do dramaturgo e ator Augusto Cesar de Lacerda, havia sido publicada em Lisboa em 1858. Apesar de ter nascido e morrido (1829-1903) nessa cidade, mudou-se para o Brasil em 1863, onde foi recebido com entusiasmo, viveu por muitos anos e fez bem-sucedida carreira nos palcos, escrevendo, publicando e encenando diversas produções. Entre 1863 e 1869, esteve no Rio Grande do Sul e lá escreveu a drama de costumes gaúcho O Monarca das Coxilhas (1867). (Baumgarten 186-187) Segundo o escritor português Fialho de Almeida, era um
“péssimo literato, inculto e mal-preparado, mas um sagacíssimo carpinteiro de teatro.” (Santos Silva 54-55)
Na época, chamava-se pejorativamente de “carpinteiro do palco” aqueles autores que, além de se importarem sobretudo com o sucesso de público, eram antes atores e homens de teatro do que literatos per se—ou seja, exatamente o caso de César de Lacerda. (98)
Edson Santos Silva, em um estudo sobre a presença portuguesa nos palcos paulistas nas décadas de 1860 e 1870, afirma que Lacerda foi uma de suas figuras mais importantes, tanto quanto dramaturgo, ator ou diretor. Além disso, de acordo com o mesmo estudo, Lacerda também teria sido um dos principais autores do gênero conhecido em Portugal como “drama da atualidade” ou “comédias realistas”. (193) Em uma época onde a maioria das peças tinha poucas apresentações, sua obra A Probidade teve oitenta apresentações no Rio e dez em São Paulo—e acrescenta Santos Silva: “para desespero da crítica”. (229)
A peça Os Mistérios Sociais conta a história de Frederico de Lucena, jovem e rico, que aparece subitamente em um ambiente aristocrático, faz amizade com todos, flerta com as mulheres e propõe negócios aos homens. Logo no começo, uma baronesa, trinta anos, rica e bonita, lamenta a falta de homens pra casar, pois
“qualquer homem que possa ser considerado um bom casamento procura achar sempre mulheres em circunstâncias idênticas.” (21)
Já fica patente que, para a baronesa, os cônjuges em um casamento não precisam necessariamente estar em situações iguais. Frederico, depois de se fazer de rico por toda a peça e de conquistar o coração da baronesa, finalmente lhe confessa não apenas que é pobre, mas uma vergonha muito maior, ex-escravo:
“Frederico: Além de ser pouco mais de pobre, sou também plebeu. Tenho parentes, … até operários. Sou filho d’uma escrava, … e não tenho pai. Vivo só no mundo. Quer ser minha companhia, ir comigo para o Novo México gozar não as comodidades d’uma capital, mas sim a vida poética dos sertões?
Baronesa (com fogo) Quero tudo isso!
Frederico (tomando-lhe a mão) Por amor?
Baronesa (a meia voz, mas com fogo) Por amor! ” (126-7)
Mais adiante, naturalmente, ele confessa ser de fato muito rico.
“Então enganou-me?”,
pergunta a baronesa. E Frederico responde:
“não queria um negócio, queria amor!”
E, ao lado, comenta seu amigo médico:
“Se todos fizessem esses experimentos, não haveria tantos casais desgraçados!” (128)
Contando, então, a história de sua vida, Frederico confessa que sim, possui escravos, mas pinta um quadro rosado da escravidão:
“Não [tenho escravos], minha senhora. Há em minha casa alguns homens e mulheres, que me servem, a quem o mundo chama meus escravos; porém tenho a felicidade de eles mesmos se chamarem….—meus amigos! … Não se pode pintar com verdade uma cena da escravatura e muito menos nas circunstâncias daquela. Os escravos de uma propriedade rural, depois de alguns anos, são todos parentes e amigos íntimos. Quando chegam a ser vendidos e comprados para diferentes pessoas, é um quadro de lástima, de miséria, de desgraça…” (136-7)
O médico, contando como chorou ao ver um leilão de escravos, afirma:
“depois de já não poder chorar, pus-me a rir de ver como os homens desse século gritam por aí por liberdade individual.” (137)
Todo o estratagema de Frederico tivera como objetivo constranger o Visconde, seu pai natural, não a reconhecê-lo, pois Frederico enriqueceu e já não precisa mais disso, mas a dar parte de sua fortuna para sustentar a família que abandonara na América, sua velha mãe e muitos irmãos, que passavam fome. Como pudemos ver, a peça nunca questiona a validade ou moralidade da escravidão, somente a perfídia do visconde em vender sua amante e seu filho bastardo como escravos. Pelo que é mostrado, a escravatura não é estruturalmente má, pois, com um senhor bondoso como Frederico, escravos e senhores tornam-se amigos e se congregam em uma grande família.
Os Primeiros Censores de Os Mistérios Sociais
Aos nossos olhos do século XXI, o enredo da peça parece essencialmente inócuo. Não é uma impressão tão anacrônica assim, pois é compartilhada por seu primeiro censor brasileiro, Francisco Joaquim Bithencourt da Silva, em 1859:
“moralizadora e honesta, nada contém a presente comédia que impeça sua apresentação.” (Parecer manuscrito, 15/05/1859)
O segundo censor, entretanto, Antonio José Vitorino de Barros, censurou a peça nos mais duros termos, ressaltando todo o seu enorme potencial subversivo e iluminando os limites da tolerância da elite literária brasileira quanto à representação da escravatura nos palcos.
“Pergunto agora: casar uma fidalga de sangue azul com um homem que nasceu escravo, tendo ela consciência dessa condição, sendo ele opulento e ela arruinada pelo jogo, não é premeditar e executar o envilecimento da condição livre só porque é nobre? … Arvorar um liberto em Monte Cristo sem assinalar os meios razoáveis com que em menos de dez anos adquiriu hábitos de conde, variada instrução, fortuna fabulosa, não é criar um mito, uma alegoria, um símbolo que mostra a facílima possibilidade com que do nada se passa ao tudo? … Oferecer em espetáculo a desonra … nos salões da grandeza e da abastança, contrastando-a com a honra, rodeada de seguranças nos pardieiros da miséria, só porque é miséria, não é fulminar sátiras contra a educação da alta sociedade e cantar epopéias ao embrutecimento, que não tem cabedal para polir-se nem mesmo para educar-se? … Querer estabelecer uma colônia modelo composta dos mais depravados … de todas as cidades e vilas do continente europeu … não será o requinte do socialismo? Não será irrogar censura à classe dos operários laboriosos e empregadores, que se emancipam das necessidades, ganhando com honra e louvável esforço o pão cotidiano? Não será isso uma irrisão? Uma grave ofensa ao bom-senso? … É tudo mistificação, um culto à utopia. … Mas enquanto penso que a literatura contemporânea é mantida por uma legião de iconoclastas, e que o Sr. Lacerda, nos seus Mistérios Sociais também alçou o alvião para no seu país construir destruições, também brandiu o cutelo pra decepar as primazias impostas às superioridades estabelecidas, [e por isso] não poderei dar meu voto para que seu drama seja representado em nossos teatros.” (grifos meus; parecer manuscrito, 16/06/1859)
Reparem como simplesmente retratar pobres honrados e ricos fúteis já é visto como subversão, pra não falar da “facílima possibilidade” de ascensão social. O censor então dá alguns conselhos bem-intencionados ao autor:
“resista às tentações do demônio das destruições, evite malbaratar o talento com a condenação de males imaginários ou exagerados, reserve a maior parte dele para entoar cânticos à virtude, que não é só o apanágio das classes ínfimas da sociedade, mas também o de outras, que, por serem elevadas, nem sempre estragaram e perderam a consciência do justo e do honesto.” (idem)
E, por fim, o censor decreta suas condições para permitir a montagem:
“[S]em o desaparecimento da condição servil de Frederico de Lucena, protagonista da peça, o que a fará mudar de fundo e de forma, não pode ela subir a cena. … É infelicidade nossa haver escravos em nosso país, mas uma vez que os há, e fora mesmo impolítico e ruinoso abrir mão deles nem substituí-los por braços livres de tão difícil aquisição, é além de inconveniente perigosa a representação de um drama cujo herói nasceu escravo. Não é por timidez que o digo, é para prevenir os excessos a que obriga a conquista da liberdade, a possibilidade de cenas de insurreições que têm ensangüentado algumas províncias do Império e a freqüência de processos e execuções de assassinos de seus senhores.” (idem)
Ou seja, o censor reconhece que a conquista da liberdade exige alguns excessos, excessos esses que devem ser prevenidos a todo custo. Sua posição política é representativa da opinião pública da elite escravista imperial: apesar de ser contra a escravidão, essa infelicidade!, ele não faz nada para acabar com ela, pois isso seria impolítico, ruinoso e inconveniente. Podemos assim compreender melhor o curioso fenômeno de o Brasil ter sido o último país ocidental a abolir a escravidão, ao mesmo tempo em que ninguém a defendia abertamente[3] e todos a lamentavam profundamente.
Edson Santos Silva, estudando as peças portuguesas encenadas em São Paulo no final do XIX, concorda em larga medida com os pontos levantados pelo segundo censor: aponta o maniqueísmo da peça, onde aristocratas são sempre maus e operários, bons. O dinheiro, inclusive, torna-se vil quando na mão dos ricos, mas útil na mão dos pobres, que o utilizam de forma filantrópica e fraterna. E conclui:
“o que se viu em cena foi a apoteose do trabalho honrado, da nobreza da alma e da inocência e, ato contínuo, elogio da generosidade, da honra e da solidariedade do mundo operário.”
Não apenas essa, mas as outras peças de Lacerda contavam com diversos personagens operários, serralheiros, trabalhadores, constantemente fazendo uma
“apoteose do trabalho como única ferramenta de ascensão social”. (195-7)
Machado de Assis e Os Mistérios Sociais
Três anos depois dos pareceres acima, em 1862, a peça Os Mistérios Sociais ainda estava tentando ser encenada e, dessa vez, o censor foi Machado de Assis. As peças eram constantemente submetidas ao Conservatório, censuradas, modificadas e então resubmetidas. Teoricamente, depois de vetada, uma peça só poderia ser enviada para nova censura se sofresse as mudanças pedidas pelos censores—o que gerava uma multiplicação de versões.
Ou seja, não temos como saber se a versão avaliada por Machado em julho de 1862 era igual à versão finalmente encenada no mês seguinte, ou à versão original publicada em Lisboa em 1858 ou às versões submetidas ao Conservatório em 1859.
O jovem censor já conhecia a obra do dramaturgo: em 1859, mesmo ano da primeira censura citada acima, Machado escrevera um artigo sobre a obra de Cesar de Lacerda para O Espelho, demonstrando familiaridade com pelo menos três de suas peças:
“O elemento democrático é uma proeminência em algumas das composições de Cesar de Lacerda. … paralelo frisante entre a aristocracia e a classe ínfima, entre o salão e a oficina, … entre a luva e o martelo. Toda a vantagem fica ao mundo das pobrezas honestas. … alcançou da plateia os aplausos significativos de um duplo instinto moral e social.” (197)
De qualquer modo, a opinião de Machado sobre a nova peça do autor que ele já anteriormente elogiara foi a seguinte:
“A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles [Frederico e a Baronesa] tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, este modo de terminar a peça deve ser alterado. Dois expedientes se apresentam para remover a dificuldade: o primeiro, é não efetuar o casamento; mas neste caso haveria uma grande alteração no papel da baronesa, supressão de cenas inteiras, e até a figura da baronesa se tornaria inútil no correr da ação. Julgo que o segundo expediente é melhor e mais fácil: o visconde, pai de Lucena, teria vendido no México sua amante e seu filho, pessoas livres; este traço tornaria o ato do visconde mais repulsivo; Lucena dar-se-ia sempre como legalmente escravo. Este expediente é simples. Na penúltima cena e penúltima página, Lucena depois de suas palavras: “Ainda não acabou”; diria: “Uma carta de minha mãe dava-me parte de que éramos, perante a lei, livres, e que entre a prostituição e a escravidão ela resolveu guardar silêncio e seguir a escravidão cujos ferros lhe deitara meu pai.” … Feitas estas correções julgo que a peça pode subir à cena”(273-275)
As peças eram sempre analisadas por, no mínimo, dois censores, mas não conseguimos encontrar os outros pareceres dessa avaliação, de julho de 1862. No mês seguinte, a 13 de agosto, a peça estreava no Ateneu Dramático. Em anúncio publicado nos jornais na mesma semana, a companhia teatral afirmava ter feito as modificações necessárias para a aprovação. (Galante de Sousa, 1956, 89)
Também era razoavelmente comum que as companhias, para evitar o confronto direto, adotassem o seguinte estratagema: em caso de censura, faziam as modificações necessárias até conseguir a aprovação e, então, malandramente encenavam a versão original como se nada tivesse acontecido, sem levar ao palco propriamente dito nenhuma das alterações pedidas. (Galante de Sousa, 1960, I, 320)
O estudo de Edson Santos Silva, que registra cuidadosamente todas as peças portuguesas encenadas em São Paulo entre 1864 e 1898 e cita César de Lacerda como um de seus atores, dramaturgos e diretores mais encenados, não lista nenhuma produção de Os Mistérios Sociais.
Chegando ao Brasil em janeiro de 1863, poucos meses depois da estreia de Os Mistérios Sociais e com tantas outras peças em seu múltiplo repertório, Lacerda pode bem ter achado melhor evitar os imprevisíveis incômodos políticos de casar, no palco, em pleno império escravista, uma baronesa a um ex-escravo.
Outro Casal Interracial Censurado
Em sua tese de doutorado sobre o Conservatório, Luciane Nunes da Silva dedica toda uma seção a Antonio José Vitorino de Barros, o segundo e entusiasmado censor citado acima, aquele que considerou Os Mistérios Sociais “o requinte do socialismo”. Ele foi um dos censores mais ativos, prolixos, intolerantes e conservadores do Conservatório. Escritor medíocre de poucas obras, sua atividade censora com certeza era uma das mais importantes validações do seu status social de homem de letras.
Para fins de nosso artigo, é interessante citar sua censura a Dr Fabiano (tradução da francesa Le Docteur Noir, de Anicet Bourgeois), uma peça onde um médico negro se sacrifica para salvar a vida de sua esposa, uma filha de marquês—branca, naturalmente. No final da história, a certidão de casamento de ambos acaba tornando-se um poderoso símbolo de liberdade. Para Vitorino de Barros, entretanto, escrevendo em 1859, era somente um símbolo da profanação das “leis da natureza”, uma heresia em relação às regras das sociedades civilizadas:
“O enredo … desde a cena inicial até a última palavra do desenlace ofende o decoro e os costumes de nossa terra atulhada de negros. .. Não há pois motivos para uma cruzada em favor dos negros nem razão para que belezas de cor branca se apaixonem por eles a ponto de sacrificar o sentimento do pudor, os deveres de família, a obediência filial, o respeito à sociedade que é implacável. … Tão descomunal é o fato de relações privadas da mulher branca com o homem de cor preta, que quando se dá tal acontecimento, elas, cônscias do escândalo, são as primeiras que se esforçam em ocultá-lo. Apenas algumas desgraçadas gastas pela crápula e urgidas pela miséria, que a desventura, fazem alarde dessas relações, mas também por isso a moral pública as julga ainda em vida cadáveres putrefatos insepultos para inspirarem um asco e horror e darem farto cevo à fome depravada dos vampiros. … Não vá alguém averbar-me de “negrófago”. … Quero o bem dos negros, como o de todos os indivíduos de outras cores; desejo-os felizes, mas o que não quero é o caos, a anarquia, a desmantelação dos costumes. Mostrar que o casamento de um negro com uma branca, seja de que hierarquia for, é um escândalo, principalmente na sociedade brasileira, não é perseguir o negro, ofendê-lo, nem condená-lo ao celibato. Há belezas de todas as cores; casem os pretos com os pretos; é isto muito mais conforme as leis da natureza e sobretudo com as consuetudinárias que regem os povos cultos. … Só o furor da seita de que se acham tomados os modernos iconoclastas, sacerdotes do extravagante realismo, é que poderia engendrar semelhante prostituição de tudo quanto na sociedade tem sido respeitado pelo perpassar do século. … Quanto a mim, o drama em questão deve ser condenado à perpétua reprovação. (Citado em Nunes da Silva 2006 173-185)
Não cabe uma análise mais detalhada das fascinantes opiniões de Antônio José Vitorino de Barros. O discurso conservador apocalíptico que alerta para o fim do mundo caso negros casem com brancos, ou homens casem com homens, não é novidade nem no século XIX nem no XXI—e só é moderadamente divertido quando visto de muito longe.
Talvez o mais surpreendente seja se dar conta que, entre as razões de Machado de Assis para censurar a baronesa e o ex-escravo de Os Mistérios Sociais e as de Vitorino de Barros para censurar o médico negro e a filha do marquês de Dr Fabiano, a única diferença é o estilo mais elegante e discreto do Bruxo do Cosme Velho.
A Miscigenação Excluída dos Palcos
Algumas das peças mais bem-sucedidas do século XIX no Brasil tiveram a escravidão como tema: História de uma Moça Rica, O Demônio Familiar e Mãe. Por outro lado, como vimos, algumas peças eram censuradas justamente por apresentarem representações inaceitáveis da escravidão: Os Mistérios Sociais e Dr Fabiano.
Além disso, mesmo quando não abertamente censuradas, peças que ousassem problematizar o incômodo flertavam com o ostracismo. Duas das melhores peças brasileiras do século XIX, em pleno momento de formação de nossa identidade nacional, tiveram a temeridade de abordar não apenas os paradoxos da escravatura mas também os desafios da miscigenação. As senhorinhas da boa sociedade carioca, que tanto aplaudiram o final de O Demônio Familiar quando o moleque Pedro é alforriado como punição, não aplaudiram nenhuma dessas duas peças—ao mesmo tempo tão provincianas mas também tão avançadas em relação ao que se fazia na Corte.
Em Calabar, drama romântico escrito pelo baiano Agrário de Menezes em 1856, a traição do personagem-título e seu bandeamento para o lado holandês teria se dado por sua condição de mulato, que o impediria de ser aceito pelos portugueses. Ao lançar perguntas sobre a traição, a peça questionaria conceitos como pátria e nacionalidade, amor e liberdade, ensaiando uma
“tentativa de perceber o homem em sua totalidade”. (Cafezeiro 159)
Além de problematizar o racismo da sociedade colonial (e, por extensão, na sociedade contemporânea), a peça também construiria a cor negra como raiz da nacionalidade brasileira:
“o mulato é brasileiro, como o é a índia Argentina, porque eles não podem de forma alguma ser portugueses.” (Prado, 1996, 151)
Para Míriam Mendes, o protagonista mantém uma espécie de dignidade inatingível ao longo de toda a peça, transmitindo a impressão de estar predestinado ao sofrimento e à dor, e de saber
“enfrentar com o ânimo dos fortes o fim por ele mesmo … buscado”,
convertendo-se, assim, no único herói trágico de toda a dramaturgia brasileira do século XIX. Entretanto, apesar de todas essas qualidades, Agrário de Menezes (membro-fundador do Conservatório Dramático Baiano e administrador do principal teatro de Salvador, o São José) enviou sua peça para o Conservatório Dramático Brasileiro e nunca obteve resposta. Acabou imprimindo-a por conta própria em 1858: que se saiba, nunca foi encenada nem ao menos uma vez. (Prado, 1996, 146-152; Azevedo, x-xiii; Mendes, 60-76)
Sangue Limpo (1861), de Paulo Eiró, é talvez a única peça romântica a abordar diretamente o tema da escravidão. Em resposta a um concurso do Conservatório Dramático Paulista destinado a premiar o melhor drama original sobre algum de nossos
“gloriosos episódios da nossa história”,
Eiró, ao invés de escrever o panegírico patriota que se esperava, decidiu abordar os temas espinhosos da escravatura e da miscigenação, tendo como pano de fundo a proclamação da Independência.
A história é simples: uma mulata, irmã de um sargento negro e livre, se apaixona por um branco rico: tanto o irmão dela quanto o pai dele ficam contra o relacionamento, por ser inconveniente e antinatural. A escravidão entra no deus ex machina na trama, quando um escravo fugido de nome Liberato mata o pai do rapaz, deixando-o livre para casar com a amada, mesmo que contra os desejos do irmão.
De acordo com Miriam Mendes (97-109), além de sua abordagem da miscigenação, a grande novidade da peça é a presença de uma família de negros livres, honrados e dignos, não caricatos, nem bestializados nem idealizados. Para Décio de Almeida Prado, a peça não poderia colocar com mais clareza o problema da raça no Brasil: o modelo oferecido por ela primaria pela ousadia moral e pela modernidade, com uma perspectiva democrática e incrivelmente igualitária para a época. (Prado, 1996, 161-170)
Entretanto, apesar de todas essas qualidades, Sangue Limpo não apenas não ganhou o concurso como foi muito mal recebida em sua primeira e única apresentação: o fracasso fez Paulo Eiró desistir da literatura, mergulhar numa depressão profunda e, segundo alguns, enlouquecer; morreu esquecido no Hospital de Alienados. A peça Sangue Limpo foi publicada em 1863 por seu irmão, a sua revelia, e nunca nem mesmo distribuída: até pelo menos a década de 1940, grande parte da primeira e única edição ainda estava encaixotada na casa da família do autor. (Schmidt)
Talvez não seja coincidência que as peças censuradas eram estrangeiras, ou seja, não fluentes no código do aceitável; as bem-sucedidas e bem-comportadas, da Corte, completamente inseridas no esquema do establishment; as esquecidas e ousadas, das províncias—ao mesmo tempo, desatualizadas das correntes estilísticas modernas (como o realismo burguês moralizante recém-chegado de Paris), mas também mais livres para ousar pensar o que não se pensava na capital.
Esboço de Conclusão e Um Convite
Do ponto de vista da história cultural, onde é mais importante compreender o processo de formação do pensamento do que avaliar esteticamente as produções artísticas, onde a crítica ideológica tem prioridade sobre a estética, o Conservatório Dramático Brasileiro se apresenta como ponto ótimo de análise. (Lopes 2010)
Como vimos, no Brasil oitocentista, o teatro era o único meio de comunicação de massa capaz de atingir tanto as classes altas quanto baixas, de construir uma ideia unificada supraclassista de nação, de moralizar e civilizar as turbas populares. Por isso, em uma sociedade com livre expressão tão surpreendentemente ampla quanto o Segundo Reinado, a censura teatral era uma das únicas exceções. Mesmo uma peça de mediano sucesso podia ter um impacto cultural maior do que um livro de grande vendagem.
E o Conservatório Dramático Brasileiro, ao se erigir guardião dos palcos, coloca-se em posição privilegiada para determinar, afinal, o que é ser brasileiro? Quem somos nós enquanto povo? O que é a cultura brasileira? O que nos distingue e nos define?
Mais ainda, o Conservatório tinha uma importante função tautológica: por um lado, só a elite letrada podia fazer parte do Conservatório e, por outro, ser aceito no Conservatório (e em outras organizações governamentais, como o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil) era um dos marcadores mais oficiais e concretos do pertencimento a essa elite. Ou seja, o indivíduo era membro do Conservatório por fazer parte da elite intelectual e fazia parte da elite intelectual por ser membro do Conservatório.
Apenas por existir, o Conservatório já decidia quem era elite intelectual e quem não era. Uma vez lá dentro, essa mesma elite decidia quais temas, assuntos, autores poderiam ser encenados nos palcos da cidade. Por isso, também, os pareceres do Conservatório acabam se tornando um laboratório e uma vitrine para entendermos novas facetas de autores canônicos. Estavam quase todos lá: de Martins Pena a Machado de Assis, de Gonçalves de Magalhães a Joaquim Manoel de Macedo.
Vale a pena repetir: se hoje a memória da peça O Guarani se perdeu completamente mas o livro ainda vive em reedições baratas lidas em todas as escolas, no final do século XIX provavelmente era mais difícil encontrar um dos poucos leitores do romance do que algum dos muitos espectadores da peça—com a memória ainda fresca dos monumentais efeitos especiais, dos 250 figurantes em cena e da enchente do Rio Paquequer em pleno palco!
Para nós, no século XXI, não é fácil conceber o impacto do teatro nessa sociedade: nomes canônicos e consagrados, como João Caetano e Vasques, verdadeiros ídolos das multidões, já não nos dizem nada, porque nunca os vimos atuar; peças canônicas e consagradas, assistidas por centenas de milhares de pessoas, já não nos dizem nada, pois caíram no esquecimento.
Hoje, muitas vezes, tentamos entender toda uma época estudando um poeta obscuro que só veio a ser lido e apreciado décadas mais tarde, e negligenciamos as peças que mobilizavam o país, geravam debates, fundavam estéticas, estabeleciam narrativas, moldavam sensibilidades—que criavam, no palco, dia a dia, nossa própria ideia do que significava ser brasileiro.
Sob esse aspecto, poucas instituições brasileiras do século XIX foram tão canônicas como o Conservatório—tanto pelas peças que censurou quanto aprovou, tanto pelas mudanças que propôs quanto pela autocensura que condicionou. Mesmo com toda a sua debilidade institucional, com suas rixas com a polícia, com sua crônica falta de dinheiro, com sua obsessão por uma respeitabilidade quimérica que sempre lhe escapava, até nisso o Conservatório nos definia e nos caracterizava: forte ou fraco, solvente ou quebrado, respeitado ou ludibriado, todas as peças, todos os dramaturgos, todas as companhias tinham que passar pelo Conservatório; aceitando suas regras ou ludibriando-as, ainda assim, estavam sempre em diálogo.
Nos palcos brasileiros, com o apoio institucional do Conservatório, surgiram alguns dos nossos arquétipos culturais mais característicos. Para as personagens femininas, ainda mais sendo a prostituição talvez o tema principal do teatro realista, não havia meio-termo: ou eram deusas do lar, pudicas e puras, ou eram decaídas e perversas, sem chance de redenção.
As personagens negras também aprenderam, nos nossos palcos, onde era o seu lugar: aparecerem o fiel preto véio (Gonzaga, Mãe), o negrinho peralta (O Demônio Familiar), a mulata sensual e insidiosa (História de uma Moça Rica), etc. Quando algum personagem ameaçava transbordar sua função ou acinzentar seu branco-e-preto (como a família de negros livres em Sangue Limpo ou os casamentos interraciais em Os Mistérios Sociais e Dr Fabiano), as consequências eram censura, represália e esquecimento.
Em As Asas de Um Anjo, José de Alencar contou a história mais antiga do mundo (a prostituta decaída) mas ousou regenerar sua personagem no último ato e dar-lhe um casamento feliz: apesar de aprovada pelo Conservatório, a peça causou enorme polêmica na imprensa e foi proibida pela polícia depois da terceira apresentação. Para a moral da época, uma vez prostituta sempre prostituta: que mensagem o teatro estaria passando para as moças de família se sugerisse ser possível lavar a nódoa do meretrício com um casamento? (A moral da nossa época, infelizmente, não parece muito diferente: somos mais tolerantes com peças e com filmes, mas não com as escolhas de vida das próprias prostitutas de carne e osso.)
Por tudo isso, para o historiador das mentalidades, o Conservatório Dramático Brasileiro configura-se um ponto ótimo para o estudo da sociedade brasileira do século XIX: suas prioridades e seus preconceitos, o que a fazia rir e o que a fazia chorar, o que permitia e o que proibia encenar, o que aclamava e o que ignorava. Durante muito tempo, o assunto foi praticamente ignorado e, somente nos últimos anos, começaram a aparecer alguns trabalhos de mais fôlego voltados exclusivamente ao Conservatório. [4] O que restou do arquivo do Conservatório está na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, esperando pelos próximos pesquisadores dispostos a explorá-lo. O convite está aberto.
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Alex Castro é doutorando do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, na Louisiana.
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Agradecimentos ao Stone Center for Latin American Studies e à School of Liberal Arts da Universidade de Tulane, por duas bolsas de viagem que permitiram a pesquisa original para esse artigo, em 2006 e 2009, respectivamente; a Alexandre Nodari, pela indicação do artigo do Pimenta; a Mariana Amorim, pela ajuda com os manuscritos da Biblioteca Nacional; ao professor João Roberto Faria, pelos emails respondidos com tanto carinho.
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Notas
[1] Sobre o engajamento de Alencar na causa escravista, ver: Cartas a Favor da Escravidão. São Paulo: Hedra, 2008.
[2] Algumas referências: “Lei Rouanet”, in Revista Raiz, SP, nº6, s/d, disponível em <http://revistaraiz.uol.com.br>, acessada em 16 de outubro de 2010; “Comissão de educação deve votar procultura depois das eleições.” in Jornal da Câmara, Brasília, 17-23 de setembro de 2010, pp.8-9, disponível em <http://www.youblisher.com/p/52450-Jornal-da-Camara-Edicao-Semanal-17-a-23-de-setembro-de-2010>, acessado em 16 de outubro de 2010.
[3] Uma das poucas exceções eram as cartas anônimas que Alencar escrevia ao Imperador através da imprensa. Ver nota 1
[4] Entre eles, podemos destacar: “Censura Teatral na Corte: O Conservatório Dramático Brasileiro (1843-1864)”, de Mariana de Oliveira Amorim, monografia de graduação na UFRJ em 2008; “O Conservatório Dramático Como Projeto Civilizatório: A Retórica da Cena e do Censor no Teatro Imperial“, de Múcio Medeiros, tese de mestrado na Uni-Rio em 2010; “O Conservatório Dramático Brasileiro e os Ideais de Arte, Moralidade e Civilidade no Século XIX“, de Luciane Nunes da Silva, tese de doutorado na UFF em 2006—todos disponíveis na internet.
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Pareceres Manuscritos do Conservatório Dramático Brasileiro
(Disponíveis na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro)
Francisco Joaquim Bithencourt da Silva, Parecer sobre a peça Os Mistérios Sociais, 15/05/1859
Antonio José Vitorino de Barros, Parecer sobre a peça Os Mistérios Sociais, 16/06/1859
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Artigo originalmente publicado na revista Afro-Hispanic Review, vol.29, número 2, outono de 2010. A versão acima, extendida, tem 9 mil palavras e é substancialmente maior que a versão publicada na revista – 6 mil palavras. Portanto, se você ler aqui e não lá, tem que citar o site e não a revista, pois pode estar citando um trecho que existe no site mas não na revista.
Para citar:
Castro, Alex. “O escravo que Machado de Assis censurou & outros pareceres do Conservatório Dramático Brasileiro”. in Alex Castro. 8 de agosto de 2011. Acessado em <data em que você leu>. Disponível em <https://alexcastro.com.br/machado>.
o efeito encolhedor da arte
Enquanto Zé Celso dava uma palestra sobre sua trajetória, eu chorava baixinho na platéia.
Pela primeira vez na vida, chorei de vergonha. Não vergonha pelo que não conquistei, porque a gente não controla o que conquista. Chorei de vergonha por tudo o que não fiz e poderia ter feito. Por todas as vezes em que priorizei o meu conforto e minha segurança pessoal em detrimento da literatura e da arte. Por cada vez que aceitei dar mais uma aulinha, pegar mais um frilazinho, fazer mais uma traduçãozinha, tudo pra poder ter mais um dinheirinho e poder dar mais uma consumidinha, e por cada capítulo do meu romance que não escrevi porque estava ocupado me vendendo. Por todos os meus amigos e leitores que acham que eu sou ó tão aberto e ó tão artista, ó tão verdadeiro e ó tão inconsequente, e não sabem, tolinhos, que perto de alguém como o Zé, eu me sinto o burguesinho da Barra da Tijuca que nasci pra ser e que lutei tanto pra des-ser, reprimido e bem comportado, careta e consciencioso, sempre preocupado com seu próprio futuro e com seu conforto pessoal, arre!
A simples presença de alguém como o Zé me diminui e me envergonha. Sua própria existência é a prova de que é possível ser como ele e, se você não é, é porque não quis, é porque em algum momento do caminho você pegou o caminho errado, virou à esquerda em direção ao MBA ou à direita em direção ao leasing do Audi.
Agora, de repente, aqui em frente ao computador, eu começo a rir, porque percebo que estou parafraseando os meus próprios leitores, plagiando o email semanal que eu recebo falando mais ou menos a mesma coisa em relação a mim, e que me fazem acreditar minimamente que meus esforços ainda valem a pena, que ainda posso fazer diferença na vida de alguém. E agora entendo também aquelas pessoas que, basta eu falar como eu vivo a minha vida, me atacam com cinco pedras na mão, como se eu tivesse falado de suas vidas, como se tivesse falado com elas, como se as tivesse criticado, como se minhas escolhas invalidassem as delas. Será que eu as diminuo assim como o Zé me diminui? Será que minha vida também lhes dá a sensação de terem feito tudo errado?
A diferença é que eu amo o Zé por isso. Perto dele, eu me sinto pequeno porque sou pequeno mesmo. E um artista como o Zé, que se entregou à sua arte com uma loucura dionisíaca, faz muito mais do que somente me encolher: ele também me levanta. Ele me mostra que é possível viver uma outra vida, que existem outras alternativas, que a arte pode mais.
Andando por Nova Orleans com Zé Celso, ele roubando mexilhões do meu prato e me apalpando sem vergonha alguma, mostrando a bunda em restaurantes e abordando estranhos na rua, subitamente me dei conta que eu, sempre tão cool e imperturbável, eu que nunca tive ídolos nem heróis, estava pela primeira vez na em presença de alguém que eu sinceramente, profundamente admirava.
E é assim que eu fico. Meio atordoado. Meio bobo. Minúsculo.