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aula 02: escravistas & escravizados grande conversa brasileira

A Ausência do “Escravo” da Lei Brasileira

Como definir a condição legal da “pessoa escravizada” em um país que tem vergonha de nomear o regime escravista em sua própria Constituição?

Se não existia definição legal de “escravo”, então também não existia essência de “escravo”: “ser escravo” não era uma teoria, era uma prática.

Se “escravo” era quem agia como “escravo”, então, consequentemente, “escravo” era quem era escravizado, quem se deixava escravizar.

(Mas e quem não deixava?)

Na falta de uma definição oficial de “escravo”, de que outra maneira saberia-se quem era “escravo” a não ser por “agir como escravo”?

(Mas e quem não agia?)

De tantos dramas humanos (e sociais, políticos, econômicos, jurídicos, etc) causados pela escravidão em nosso país, a Ação de Liberdade movida em 1882 pelas 80 pessoas escravizadas do finado Major Francisco Alves Moreira, de Caçapava, São Paulo, talvez seja a mais interessante, paradoxal, reveladora.

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Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Qualquer obra de arte só pode ser criada e lida dentro de um contexto cultural específico. Quando os contextos mudam, as obras precisam mudar também. Escreveu Jorge Luis Borges:

“Uma literatura distingue-se de outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida: se me fosse permitido ler qualquer página atual — esta, por exemplo — como será lida no ano 2000, eu conheceria a literatura do ano 2000.”

Úrsula, para fazermos sentido de sua importância, precisa ser lida contra o pano de fundo de dois momentos culturais: o romantismo gótico literário e a literatura fundacional brasileira. Contra o primeiro pano de fundo, esse romance é o mais convencional possível, tão convencional ao ponto de ser digno de nota em sua representatividade mimética. Contra o segundo, é revolucionário e subversivo.

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A ausência da escravidão na literatura brasileira

Existe uma gigantesca lacuna na literatura oitocentista brasileira, uma ausência tão grande e tão inesperada que chama atenção: apesar de termos sido a maior economia escravista de todos os tempos, os dramas humanos inerentes à escravidão simplesmente não aparecem na literatura do período.

Foram sim escritas muitas obras, poemas e peças, contos e romances, que encararam de frente os horrores e dramas, os dilemas e os paradoxos de uma monarquia ocidental escravista em pleno século XIX, mas, tanto antes quanto depois da Abolição, essas obras foram sistematicamente desvalorizadas, esquecidas, descanonizadas.

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A escravidão, esquecida: Mariana, de Machado de Assis

A escravizada Mariana, protagonista do conto homônimo de Machado de Assis, criada no auge da campanha abolicionista, prontamente esquecida por seu criador e somente recuperada em meados do século XX, poderia formar um paralelo revelador com a própria escravidão, tema de debates polêmicos em sua época, prontamente esquecida por seus defensores e opositores assim que abolida e somente recuperada em sua importância histórica no século seguinte.

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Joaquim Nabuco em Massangana: um abolicionista nostálgico pela escravidão

Ao longo de todo o século XIX, a escravidão foi a grande vergonha nacional. Assim que é abolida, não há nada que nossa elite quer mais do que esquecer que ela jamais existiu. Entre a Abolição (1888) e o lançamento de Casa Grande & Senzala (1933), a escravidão praticamente desaparece da Grande Conversa Brasileira. Ninguém simboliza, representa, encarna esse processo melhor do que Joaquim Nabuco: ele foi, ao mesmo tempo, o maior inimigo da escravidão brasileira e, também, o primeiro a esquecer que ela jamais existiu.

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aula 02: escravistas & escravizados casa-grande & senzala grande conversa brasileira

Gilberto Freyre, historiador

Gilberto Freyre não era e não se considerava historiador, mas usava uma abordagem histórica para explicar problemáticas sociológicas. Ele estuda seu objeto de dentro, colocando-se ele mesmo como parte do objeto de análise: ele se faz personagem de seu próprio livro (Benzaquen). Enquanto historiador, ele realiza uma transposição, uma transferência de si mesmo ao passado brasileiro, para revivê-lo empaticamente, usando um estilo sugerido, instintivo, incompleto, etc, que o impede de ser definitivamente rotulado.

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aula 02: escravistas & escravizados castro alves grande conversa brasileira

Castro Alves

Para muitas gerações de brasileiros, Castro Alves é o “poeta dos escravos”. Seu poema “O Navio-Negreiro” é um dos mais citados e antologizados de nossa literatura. Na tradição literária brasileira, praticamente livre de pessoas protagonistas negras, onde as pessoas escravizadas são em geral retratadas somente em papéis coadjuvantes e chapados, sem profundidade e sem humanidade, Castro Alves apresenta-se como uma conspícua exceção. Apesar de alguns excessos juvenis (tinha apenas vinte e quatro anos ao morrer), o poeta consegue unir o lírico ao social e cria uma poesia ao mesmo tempo romântica e politicamente contundente: pela primeira vez no Brasil, as pessoas escravizadas são vistas como indivíduos, com problemas existenciais e vidas privadas intensas, capazes de amar e de odiar, de perdoar e de se vingar.

Castro Alves entrou muito cedo no cânone literário e nunca deixou de ser polêmico. Algumas críticas literárias o acusam de só lutar contra a escravidão quando ela já estava quase derrotada, um poeta reacionário canonizado justamente por saber o ponto exato até onde poderia ir antes de ofender as sensibilidades burguesas de suas pessoas leitoras escravocratas. Outras, o celebram por ser abolicionista antes que o abolicionismo virasse moda, quando ainda não era uma posição política conveniente para jovens responsáveis. Algumas, o elogiam por mostrar, pela primeira vez na literatura brasileira, a humanidade da pessoa escravizada; outras, o censuram por nunca adotar a perspectiva negra e escrever sempre do ponto de vista do homem branco, relegando a pessoa negra a uma eterna posição de alteridade.

No texto abaixo, apresentaremos a vida e obra do poeta, destacaremos os aspectos mais transgressores (e também os mais conservadores) de sua poesia abolicionista, situaremos sua obra dentro do contexto da luta internacional pela abolição da escravatura, chamaremos a atenção para a oralidade de sua poesia e faremos um breve resumo das controvérsias em torno de seu status canônico.

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Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre

O período entre a abolição da escravatura (1888) e o lançamento de Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, é marcado por uma quase completa ausência da escravidão do discurso intelectual brasileiro, um processo consciente de rasura por parte da elite brasileira no qual a escravidão, como categoria explicativa de Brasil, é substituída por raça e mestiçagem. O discurso racista-cientificista que impera nessa época (exemplificado em obras como Os sertões, que leremos na quinta aula) nega a contribuição africana ao Brasil e afirma, pelo contrário, que a própria existência das pessoas negras seria um problema nacional, a ser corrigido por imigração e branqueamento. Como veremos nas leituras da sexta aula, a negritude era constantemente associada à degeneração, alcoolismo, incapacidade mental e imoralidade. E não pelo fato de as pessoas negras terem sido exploradas por 350 anos e, então, libertadas sem nenhuma ajuda financeira ou plano de inserção social, mas por pretensa inferioridade étnica.

É nesse cenário intelectual que Casa Grande & Senzala explode como uma verdadeira bomba. Poucos livros foram tão influentes, tão impactantes, tão polêmicos. Ele pode e deve ser criticado, mas sua maior contribuição foi justamente ter recolocado a escravidão no centro do pensamento nacional: depois de Casa Grande & Senzala, nunca mais será possível entender o Brasil que não a partir do fato central de termos sido a maior civilização escravista do mundo moderno.

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Democracia racial e homem cordial, dois meta-mitos

Dois espectros rondam as ciências sociais brasileiras: a “democracia racial” e o “homem cordial”. Quem os critica se refere a eles, sempre desdenhosamente, como “mitos”: “o mito da democracia racial”, “o mito do homem cordial”. Mas, na verdade, são meta-mitos, ou seja, é um mito que sejam mitos, são mitos que jamais foram mitos. No texto abaixo, tentarei desmascarar não o “mito da democracia racial” mas sim o “mito do mito da democracia racial”; não o “mito do homem cordial”, mas sim o “mito do mito do homem cordial”.