Alguns dos momentos mais belos, mais humanos, mais surpreendentes da Bíblia são quando humanos tem a temeridade de interpelar a Deus, de questionar sua justiça, de barganhar com ele pelas vidas e pelas almas de seus irmãos.
Categoria: gênese
Talvez a faceta mais importante de Deus, personagem do Gênese, é o quanto que ele não nos parece em nada moralmente ou espiritualmente superior aos personagens.
Durante a Segunda Guerra Mundial, preso em uma cadeia turca, o alemão Erich Auerbach escreveu uma das mais importantes obras de crítica literária do século: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Em seu primeiro capítulo, “A cicatriz de Ulisses”, Auerbach contrasta os diferentes estilos literários da Odisséia e do Gênese, uma comparação que vai manter e desenvolver ao longo da obra, estudando a literatura ocidental até o século XX.
Para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, estamos lendo o Livro do Gênese. Já escrevi sobre os autores do Gênese, seu contexto histórico, etc: leia todos os textos sobre o Gênese. Abaixo, algumas notas esparsas sobre diversos episódios.
Uma chave de leitura frutífera para o Gênese é considerá-lo um livro etiológico, ou seja, cujo objetivo é explicar o mundo como ele é “hoje” — no hoje de quando foi escrito, naturalmente.
O Gênese é quase darwinista em sua ênfase na fecundidade: claramente, a maior vitória possível é deixar o máximo de descendentes, povoar o mundo, encher a terra. Abaixo, algumas notas de leitura.
A Hipótese Documental (que apresento aqui) explica o fato de algumas histórias do Gênese, e de todo o Pentateuco, serem contadas duas vezes: Noé, em sua Arca, leva dois (6,9) ou sete (7,2) de cada animal? O poço de Bersebá é batizado por Abraão (21, 31) ou por Isaac (26, 33)? José é vendido aos ismaelitas ou medianitas? etc (Gabel, 88-89) Naturalmente, mesmo antes da Hipótese Documental ser elaborada, essas duplicações não escaparam à atenção dos leitores do Gênese ao longo dos séculos.
Os dois relatos da Criação, por exemplo, não podem ambos verdade, pois se contradizem. Como explicar essa contradição?
O Livro do Gênese é, em grande parte, mitológico mas algumas de nossas leituras seguintes, como Samuel e Jeremias, já estão associadas a alguns fatos reais da história israelita. Abaixo, o contexto histórico de algumas das leituras da primeira aula, Antigo Testamento, do curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura.
O livro do Gênese, o primeiro livro da Bíblia, foi escrito por pândegos e editado por derrotados. Por isso, é tão bom.
No sexto dia, Deus criou o homem e a mulher e lhes deu como alimento as plantas:
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas” e assim se fez. (Gen 1, 27-30)
Ou seja, ninguém morria para que outro ser precisasse se alimentar.
Quando Adão e Eva comem o fruto proibido e percebem que estão nus, Deus lhes faz roupas de pele:
“Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu.” (Gen 3, 21)
Na tradição, esse gesto é visto como um carinho de Deus para com os caídos, mas uma coisa importante não é dita: pele de quem?
Algum ser vivo acabou de morrer para vestir Adão e Eva. Por tudo o que se sabe, foi a primeira de todas as mortes. A primeira morte da Criação.