No sexto dia, Deus criou o homem e a mulher e lhes deu como alimento as plantas:
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas” e assim se fez. (Gen 1, 27-30)
Ou seja, ninguém morria para que outro ser precisasse se alimentar.
Quando Adão e Eva comem o fruto proibido e percebem que estão nus, Deus lhes faz roupas de pele:
“Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu.” (Gen 3, 21)
Na tradição, esse gesto é visto como um carinho de Deus para com os caídos, mas uma coisa importante não é dita: pele de quem?
Algum ser vivo acabou de morrer para vestir Adão e Eva. Por tudo o que se sabe, foi a primeira de todas as mortes. A primeira morte da Criação.
Depois da enchente, entretanto, Deus faz um novo pacto com a humanidade, através de Noé e sua família e, dessa vez, explicitamente revoga o mandamento do vegetarianismo:
“Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas vossas mãos. Tudo o que se move e possui a vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas. Mas não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue. Pedirei contas porém, do sangue de cada um de vós. Pedirei contas a todos os animais e ao homem, aos homens entre si, eu pedirei contas da alma do homem. Quem derrama o sangue do homem pelo homem terá seu sangue derramado. Pois à imagem de Deus o homem foi feito. Quanto a vós, sede fecundos, multiplicai-vos, povoai a terra e dominai-a.” (Gen 9, 1-7)
No livro A vida dos outros: Ética e teologia da Libertação Animal, os frades capuchinhos Luis Carlos Susin e Gilmar Zampieri forçam uma barra absurda, mas bem-intencionada, para formular uma teologia vegetariana a partir de uma Bíblia que explicitamente ordena que o homem seja “o pavor dos animais”. A primeira parte do livro faz uma excelente antologia do vegetarianismo ao longo da história, de Agostinho de Hipona a Tom Regan; e a segunda é um belo, bonito, heroico exemplo do melhor tipo de teologia, quando alguém interpreta a Bíblia contra ela mesma para tentar construir um mundo melhor hoje, agora, no presente.
(Todas as traduções desse texto são da Bíblia de Jerusalém, talvez a melhor do Brasil.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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E Deus criou o carnismo é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 17 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/e-deus-criou-o-carnismo // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
2 respostas em “E Deus criou o carnismo”
Não. :)
Caro bloguista: você acredita na “verdade” bíblica?
Amigavelmente – artur