Não tenho como exagerar a importância de ler poesia em voz alta.
A poesia é um meio eminentemente oral: o som das palavras, a cadência, o ritmo, é tão importante quanto o conteúdo do texto.
Não tenho como exagerar a importância de ler poesia em voz alta.
A poesia é um meio eminentemente oral: o som das palavras, a cadência, o ritmo, é tão importante quanto o conteúdo do texto.
Um pouco sobre o contexto histórico das leituras de nossas três primeiras aulas.
Até meados do século XIX, nunca tinha passado pela cabeça de ninguém que o Gênese poderia ser uma narrativa literal da criação do mundo. Pelo contrário, desde cedo temeu-se que colocar esses textos sagrados por escrito estimularia certezas estridentes, inflexíveis, irrealistas. (Como, aliás, Jeremias sugere em 8, 8-9)
Como um texto alegórico como a Bíblia passou a ser lido de forma literal justo na época mais científica da humanidade? Não é coincidência.
Abaixo, uma pequena história dos diversos significados possíveis da Bíblia ao longo dos milênios.
O Livro de Samuel e a Orestéia, ambos intensamente políticos e intensamente religiosos, contam a mesma história de maneiras bem diferentes.
Jerusalém está cercada pelos babilônios de Nabucodonosor e parece não haver esperança para os israelitas. O próprio rei implora a Jeremias por boas notícias (Jer 38), mas infelizmente todos os oráculos são negativos: o reino será mesmo conquistado e seus habitantes, exilados. Felizmente, contudo, o inimigo está a serviço do Deus dos israelitas:
O Livro de Jó talvez seja o ponto alto literário da Bíblia. Ele é dialógico e poético, trágico e racional, místico e rebelde. Infinitamente complexo, estranhamente consolador. Um mistério que já dura milênios e não parece perto de ser solucionado.
Como jovem ateu, o Livro de Jó me foi imensamente importante. Demorei muito para entender porque teriam decidido colocar na Bíblia um livro que, para mim, provava ou que Deus não existia ou que, se existisse, era um canalha caprichoso que não valia a pena adorar, seguir, obedecer; e, em ambos os casos, que nada nada fazia nenhum sentido.
O francês René Girard (1923-2015), partindo da crítica literária e transitando por áreas tão diversas quanto a psicologia e a religião, a antropologia e a filosofia, foi o último pensador a tentar uma grande teoria explicativa da humanidade. Como toda grande teoria explicativa generalista, ela é polêmica e combativa, soa óbvia e tautológica quando resumida, é vulnerável a críticas por especialistas de todos os lados, não consegue explicar tudo com a amplitude que talvez seu autor desejasse, mas é rica o suficiente para nos permitir enxergar os mesmos fatos, os mesmos fenômenos, a mesma realidade de maneiras diferentes, subversivas, inovadoras.
Para muitas de nós, é difícil, quase impossível, ler a Bíblia como literatura.
Literatura, quase que por definição, é inofensiva: podemos gostar ou não gostar, mas ela não nos humilha, oprime, exclui.
A Bíblia faz tudo isso. Muitas de nós foram expulsas de casa, sofreram agressões, não puderam casar com quem queriam, diretamente por causa de palavras escritas nesse livro que, agora, queremos estudar como se fosse literatura.
E é? A Bíblia é literatura?
No Livro de Samuel, Davi e Jônatas têm uma das amizades mais famosas, celebradas e controversas da Bíblia. Mais de um comentador interpreta que, na verdade, eram amantes homossexuais.
Os profetas eram aquelas pessoas chamadas por Deus para profetizar em Israel, ou seja, para denunciar os abusos e pecados da população, para pregar que mudassem seus maus hábitos e para ameaçá-la com os castigos do Senhor.
Era um trabalho duro, duríssimo: precisavam profetizar horrores sem fim para as pessoas que amavam e, naturalmente, sofrer a terrível reação.
São talvez as figuras mais trágicas, mais atormentadas da Bíblia.
No meio de um ano ruim, um ano que infelizmente prometia ser o prelúdio de anos muito piores, o profeta Jeremias ousou ser otimista diante da tragédia.
Alguns dos momentos mais belos, mais humanos, mais surpreendentes da Bíblia são quando humanos tem a temeridade de interpelar a Deus, de questionar sua justiça, de barganhar com ele pelas vidas e pelas almas de seus irmãos.
Talvez a faceta mais importante de Deus, personagem do Gênese, é o quanto que ele não nos parece em nada moralmente ou espiritualmente superior aos personagens.
Durante a Segunda Guerra Mundial, preso em uma cadeia turca, o alemão Erich Auerbach escreveu uma das mais importantes obras de crítica literária do século: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Em seu primeiro capítulo, “A cicatriz de Ulisses”, Auerbach contrasta os diferentes estilos literários da Odisséia e do Gênese, uma comparação que vai manter e desenvolver ao longo da obra, estudando a literatura ocidental até o século XX.
Como intérprete de sonhos, Freud se via como José; como líder de um movimento, se via como Moisés, libertando seu povo da ignorância e, como filho que renunciou a autoridade dos pais, se via como assassino de Moisés.
Para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, estamos lendo o Livro do Gênese. Já escrevi sobre os autores do Gênese, seu contexto histórico, etc: leia todos os textos sobre o Gênese. Abaixo, algumas notas esparsas sobre diversos episódios.
Uma chave de leitura frutífera para o Gênese é considerá-lo um livro etiológico, ou seja, cujo objetivo é explicar o mundo como ele é “hoje” — no hoje de quando foi escrito, naturalmente.
O Gênese é quase darwinista em sua ênfase na fecundidade: claramente, a maior vitória possível é deixar o máximo de descendentes, povoar o mundo, encher a terra. Abaixo, algumas notas de leitura.
A Bíblia é meu livro preferido e, dentro dela, um de meus favoritos é o Livro de Samuel. A história de Faltiel é um dos motivos.
Como ler a Bíblia? Como ler qualquer texto distante, produzido em outra época por uma civilização que já não é mais a nossa?
Todo texto (especialmente os grandes clássicos com tradição crítica e literária) já contem em si mesmo os elementos que sabotam, fraturam o seu próprio sentido: fios soltos que a crítica literária pode puxar e, ao fazer isso, desmontar (ou desconstruir) o texto. Essa possibilidade deve estar sempre em nossa mente ao ler todas as obras de nosso curso. Alguns fios soltos são mais óbvios (como o Velho no Restelo, em Os Lusíadas, nossa leitura da sexta aula), outros menos, mas sempre existem, e podemos encontrá-los.