Um malandro grego da Antiguidade, com nome latino, deslido por um florentino medieval que não sabia grego, reinterpretado por um queer britânico, e colocado para servir o império oitocentista e o capitalismo contemporâneo. Essa é a Grande Conversa.
Categoria: aula 02: gregos
O Brasil acrescentou alguns poucos grandes textos à literatura mundial: além dos contos de Machado, também A hora da estrela e, especialmente, Água viva, de Clarice Lispector, e, na não-ficção, Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, Os sertões, de Euclides da Cunha, Cemitério dos vivos, de Lima Barreto. Todos esses são, em alguma medida, indispensáveis para mim. Cada um, a sua maneira, com seus limites e suas grandezas, é uma obra-prima.
Mas se eu, hoje, tivesse que escolher um, seria Grande Sertão: Veredas.
A Grécia Clássica oscilava entre dois polos: o apolíneo, mais racional, e o dionisíaco, mais instintivo. Duas peças, nos dois extremos cronológicos da Grécia Clássica, a Orestéia, no seu começo, e As bacantes, no seu fim, ilustram esse movimento, que continua marcando a arte ocidental até hoje.
Ilíada, de Homero
A Ilíada é um poema em ponto de fuga, cada linha apontando para um final cataclísmico além da obra.
A tensão nunca relaxa, mesmo nos momentos de distensão: os ventos da batalha sopram para cá ou para lá; Aquiles é birrento ou Heitor, razoável; a vantagem oscila de um lado a outro; mas, ainda assim, todas sabemos: no final, inevitável e intransponível, inexorável e intolerável, Tróia será arrasada; os troianos, mortos; as troianas, escravizadas.
A Orestéia simboliza o apogeu da Grécia Clássica e de sua ênfase nas infinitas possibilidades da racionalidade humana, e celebra a vitória das instituições democráticas sobre o infindável e sangrento código de vingança ancestral.
A última cena da série Game of Thrones, com todos os personagens sobreviventes, em uma reunião burocrática, começando a fazer as contas para reconstruir o país, deve muito ao espírito esperançoso (e institucionalizador) da Orestéia.
As tragédias do teatro grego eram sempre escritas e encenadas na forma de trilogias, onde cada peça comentava e complementava as outras. A Orestéia é a única trilogia que sobreviveu, o que só nos faz lamentar a perdas das outras. As peças que acompanhavam Édipo Rei ou Antígona, As bacantes ou Medeia, o que mais teriam nos revelado sobre essas obras-primas? Jamais saberemos.
Qual Ilíada ler?
Uma boa tradução pode ser a diferença entre uma leitura empolgante e uma experiência tediosa.
As bacantes é a última, talvez a maior das tragédias gregas clássicas. A mais bela e mais complexa, a mais aterrorizante e mais incompreensível.
É difícil exagerar por quão pouco não perdemos todas as tragédias gregas.
A experiência de ir ao teatro na Grécia Antiga era tão diferente da nossa que é difícil até nos colocarmos nesse lugar.
Tersites é tudo que os herois homéricos não são, que ninguém mais é, que até então não existia. Tersites é uma figura que acaba de surgir na história humana: agitador popular e revolucionário marxista, um revoltado e um silenciado, o primeiro anarquista e o primeiro protestante. Um criador de caso que não sabe o seu lugar, um homem do povo que diz que o rei está nu. Um teórico da conspiração, um herói da classe trabalhadora. Tersites é aquilo que somente então se torna concebível.
Já é na próxima quinta a segunda aula, Gregos, do curso Introdução à Grande Conversa: Um Passeio pela História do Ocidente através da Literatura.
A leitura principal é a Ilíada. As leituras secundárias são a Orestéia, de Ésquilo, e As bacantes, de Eurípedes.
Para quem não teve tempo de ler tudo, ou quiser só dar uma relida nos partes principais, eis aqui os trechos mais importantes que vou abordar na aula de quinta feira, 23 de julho:
Não tenho como exagerar a importância de ler poesia em voz alta.
A poesia é um meio eminentemente oral: o som das palavras, a cadência, o ritmo, é tão importante quanto o conteúdo do texto.
Quando uma participante do curso Introdução à Grande Conversa perguntou “de onde veio a expressão calcanhar de Aquiles?“, fiz uma distinção importante: esse mito está registrado em tal livro, mas esse livro não é a fonte do mito; a fonte do mito é a própria mitologia. (O texto completo está aqui.)
Outra pessoa perguntou leu o texto e perguntou:
“Entendi que o livro não é a fonte do mito, mas que a gente conhece o mito por causa do livro, certo?”
Na verdade, não. Essa é precisamente a diferença.
Se esse livro desaparecer, se nunca tivesse existido, provavelmente teríamos a expressão “calcanhar de Aquiles” do mesmo jeito.
Um pouco sobre o contexto histórico das leituras de nossas três primeiras aulas.
Mitologia grega
Algumas dicas para entender melhor a Ilíada: comprem um bom dicionário de mitologia, evitem séries.
Depois da Ilíada
Na próxima quinta, 23 de julho, às 19h, acontece a segunda aula do meu curso Introdução à Grande Conversa, sobre os Gregos. A narrativa da aula será a seguinte:
Pergunta de uma das participante do curso Introdução à Grande Conversa:
“Os gregos conheciam mesmo todas essas pessoas citadas na Ilíada?”
Não é a mitologia que vem da literatura, mas a literatura que vem da mitologia.
Podemos ler literatura como quisermos. Mas sim, existem leituras mais e menos superficiais.
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Na Internet, abundam discussões sobre se Jack cabia ou não na porta onde Rose estava flutuando depois do naufrágio do Titanic. Pessoas fazem gráficos, cálculos, experimentos para provar que, sim, ele de fato caberia na porta. Respondeu James Cameron:
“Jack tinha que morrer. A história só faz sentido com a morte de Jack. Se por acaso caberiam os dois em cima da porta, então foi erro do carpinteiro que deveria ter feito uma porta menor.”
Jack, assim como Aquiles, tinha que morrer. Senão não tinha história. Ser mortal é parte integrante da persona de Aquiles. Se Tétis tivesse conseguido torná-lo imortal, ele seria outra pessoa, a Ilíada seria outro poema, nossa conversa aqui seria outra conversa. Tudo seria diferente.