A Orestéia simboliza o apogeu da Grécia Clássica e de sua ênfase nas infinitas possibilidades da racionalidade humana, e celebra a vitória das instituições democráticas sobre o infindável e sangrento código de vingança ancestral.
A última cena da série Game of Thrones, com todos os personagens sobreviventes, em uma reunião burocrática, começando a fazer as contas para reconstruir o país, deve muito ao espírito esperançoso (e institucionalizador) da Orestéia.
As tragédias do teatro grego eram sempre escritas e encenadas na forma de trilogias, onde cada peça comentava e complementava as outras. A Orestéia é a única trilogia que sobreviveu, o que só nos faz lamentar a perdas das outras. As peças que acompanhavam Édipo Rei ou Antígona, As bacantes ou Medeia, o que mais teriam nos revelado sobre essas obras-primas? Jamais saberemos.
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Ésquilo e o apogeu de Atenas
Ésquilo é o mais antigo dos grandes dramaturgos gregos. Segundo a tradição, ele inventa o segundo ator, na prática criando o teatro como o conhecemos — antes, havia apenas o coro e um único ator.
Quando jovem, lutou nas batalhas de Maratona e Salamis, contra os persas: é a vitória nessa guerra que dá início à Grécia Clássica como a conhecemos. Ésquilo vive o apogeu de Atenas e da Grécia, e o celebra, com justiça, na Orestéia. (Em seu epitáfio, pediu apenas que colocassem que lutou em Maratona.)
Pouco depois de sua morte, começa a Guerra do Peloponeso, um conflito brutal e intestino que destruirá a grandeza da Grécia e a deixará pronta para a conquista macedônia.
Se a Orestéia, encenada em 458, celebra o apogeu de Atenas, As bacantes, encenada exatos cinqüenta anos depois, pouco antes da queda de Atenas, simboliza seu fim.
(Três textos: o funcionamento do teatro grego, uma cronologia do mundo antigo, uma resenha de As bacantes.)
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A tirana Clitemnestra
Clitemnestra esfrega na cara dos atenienses um problema ainda insolúvel: o drama da mulher que, tendo sido criada para ser rainha e líder, pode ser ignorada como esposa e ultrajada como mãe… por um homem que sabe ser seu inferior.
Ao fazer com que Agamemnon ande sobre o carpete, Clitemnestra consegue três coisas:
Em primeiro lugar, demonstra sua força, comprova que o marido está em suas mãos, que ele fará o que ela quiser. Mas, ao ceder, ele também cede à sua arrogância, ao seu orgulho, à sua autossufienciência. Em sua fraqueza e tolice, ele se engana que um tamanho orgulho poderia escapar punição pelos deuses.
Em segundo lugar, ela planta nele uma culpa consciente: agora, Agamemnon se aproxima do altar já se sabendo em falta com os deuses.
Em terceiro lugar, ela está demonstra para si mesma, para a platéia, para os deuses, que Agamemnon está se autocondenando ao castigo fatal, que esse homem não está apto a viver no mundo regido pelos deuses, que os deuses inevitavelmente o destruiriam. Daí, ela concluir a cena dizendo:
“Zeus! Zeus perfeito! Quero que perfaças hoje
os meus desígnios! Cuida, então, com todo empenho
da obra em curso, se pretendes perfazê-la.”
(Ag 1120 MGK)
(Vellacott.)
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A profetisa Cassandra
O coro interroga e Cassandra desconversa, mas assim que profetiza em termos concretos (Ag 1434 MGK), a maldição se ativa e não escutam mais.
Se o coro não acredita mais nela, sua fala ainda assim captura e rememora todas as maldições da Casa de Atreu, todas as interconexões entre passado, presente e futuro invisíveis à Clitemnestra — que ainda tem a ilusão de poder fazer as pazes com os demônios familiares. O silêncio de Cassandra era inegociável; sua fala revela os limites da autoridade da rainha. (Foley.)
Em suas falas, Cassandra demonstra ao coro que sabe muito mais do que eles: ela os converte de anciãos condescendentes em receptáculos da sua sabedoria.
Agamemnon, no breve caminho entre a carruagem e a porta de casa, se converte de conquistador em escravo, alquebrado e submisso. Já Cassandra chega escrava e entra na casa de cabeça erguida, dona de si.
Ambos vão morrer, mas só Cassandra sabe disso, e compartilha conosco um novo entendimento e uma nova perspectiva, tanto sobre a maldição da Casa de Atreu quanto da justiça dos deuses. (Taplin)
(Um texto meu sobre Cassandra.)
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O Mito do Matriarcado
A Orestéia pode ser considerada uma variação do Mito do Matriarcado, um ciclo de mitos que reafirma o poder patriarcal ao imaginar como seriam sociedades dominadas por mulheres, sempre inevitavelmente mais violentas, mais tirânicas.
A trilogia deixa claro que Clitemnestra é a dominante, tanto em sua relação com Agamemnon quanto com Egisto. Ela mata o marido e, mais tarde, quando o filho a ameaça, vai buscar um machado (!) para se defender. Apesar de ter uma reclamação válida contra seu marido, ela mata o rei legítimo, toma o trono, estigmatiza seus próprios filhos, estabelece uma tirania.
Na primeira peça, Agamemnon, temos uma vitória do feminino fora de controle. (Em geral, quem dá a última palavra nas tragédias é o coro. Aqui, Clitemnestra é tão poderosa e autoritária que, magnificamente, a última palavra é dela.
Já na segunda peça, porém, Coéforas, a virginal Electra se alia a seu irmão sedento de vingança e, logo depois, submissa, desaparece do palco, como se simbolizando um retorno às estruturas “normais” de gênero. (Foley.)
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O problema do Mal
O problema do mal era tão concreto para os gregos quanto para os autores do Livro de Jó. Não havia como fugir da constatação que muitos bons eram punidos e muitos maus escapavam à punição. A solução grega, ao menos nesse momento histórico, é postular que os pecados podem passar para os filhos: se os maus escapam à punição por seus crimes, seus filhos não escaparão.
Não era um sistema perfeito, nem desejável, mas era visto como uma lei da natureza que tinha que ser aceita. Ésquilo parece defender, ao menos, que haveria como a maldição ser quebrada. (Esse é um dos temas principais da Orestéia: como quebrar o ciclo de vingança.)
Na verdade, a libertação do indivíduo dos grilhões mentais e legais que o prendiam ao clã e à família ainda é, até hoje, uma das maiores realizações do racionalismo grego, . Entretanto, naturalmente, os grilhões legais são mais fáceis de destruir que os mentais.
Um século depois de Platão, em plena Era Helênica, um autor ainda achava necessário pontificar:
“Punir um filho pelo crime do pai é como querer curar a doença do pai dando remédio ao filho”.
(Dodds, II)
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A inveja dos deuses
A condição humana, perante os deuses, é sempre de insegurança e desamparo. Os deuses são ciumentos, invasivos e se ressentem de qualquer felicidade, de qualquer pequena alegria que ameace elevar a vida humana.
Até mesmo na Ilíada, que celebra o heroísmo, ele não traz felicidade: somente fama, glória, honra. Como diz Príamo para Aquiles:
“Foi isto que fiaram os deuses para os pobres mortais:
que vivessem no sofrimento. Mas eles próprios vivem sem cuidados.”
(XXIV, 525)
Quando Clitemnestra insiste para que Agamenon pise triunfantemente no carpete, está levantando-o antes de derrubá-lo. Talvez para atiçar a inveja dos deuses contra ele. Talvez apenas para estimular seu próprio ódio diante de tanta arrogância triunfalista. De qualquer modo, nenhum mortal que suba tão alto deixará de ser punido.
Na literatura grega (e até mesmo na narrativa hollywoodiana, sua herdeira direta), nunca é um bom sinal quando alguém é apontado como:
“Lá vai um homem feliz.”
(Dodds, II)
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Hamlet e Orestéia
Duas obras centrais na história do teatro: a Orestéia, única trilogia sobrevivente do inventor do teatro, do primeiro grande dramaturgo europeu; Hamlet, dois mil anos depois, escrita por talvez nosso maior autor de todos os tempos, simbolizando um Renascimento desse teatro, talvez a primeira peça realmente grande desde As bacantes. Ambas sobre filhos buscando vingança pela morte do pai. Ambas (curiosa coincidência) começando com um discurso do vigia.
Com uma importante diferença.
A Orestéia é sobre a superação do código de vingança e sobre o começo, digamos, da civilização, do monopólio estatal impessoal sobre a violência. A nota final é de triunfo e de esperança.
Já Hamlet, se ele mesmo não vingasse o pai, ninguém mais o faria. Uma vez o pai vingado, e o país mergulhado em um banho de sangue, resta apenas uma invasão estrangeira para colocar ordem na casa.
Em Hamlet, não há menção de polícia, juízes, burocracia. As opções são ou o banho de sangue ou aceitar a injustiça: fora disso, não existe nenhuma alternativa, nenhuma esperança.
De certo modo, parece uma peça muito anterior à Orestéia, fruto de um momento político mais precário e menos civilizado. Um sintoma de o quanto regredimos em dois mil anos.
(Um texto meu sobre as quatro grandes tragédias de Shakesperare.)
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O colapso do velho sistema
Zeus concebe (ou permite, ou possibilita) a Guerra de Troia para vingar o insulto sofrido por Menelau e restaurar a justiça. Ártemis afirma, por seu lado, que essa carnificina também terá que ser vingada. Nas lendas anteriores, Ártemis exigia a punição de Agamemnon por ele ter abatido um de seus veados sagrados. Na Orestéia, não: Ésquilo, como todos os dramaturgos, muda sutilmente as suas fontes: aqui, a revolta de Ártemis é com a carnificina em si, cujo preço deve ser pago em sangue.
Agamemnon, portanto, não fez nada de errado, não excedeu sua incumbência: ele é destruído por Zeus (ou pelos deuses, ou por Ártemis) por ter feito exatamente o que Zeus ordenou da maneira que Zeus previu. A imagem das duas águias (Ag 50-77 MGK) demonstra isso tão explicitamente quanto é possível de ser feito em um drama poético.
Mais tarde, quando Orestes está prestes a assassinar Clitemnestra, ela implora pela vida e avisa que as Fúrias vão persegui-lo se matar a mãe. Ele responde que as Fúrias vão persegui-lo se não vingar o pai:
Clitemnestra
Insistes em matar a tua mãe, meu filho?
Orestes
Eu não! Tu mesma estás causando a tua morte!
Clitemnestra
Cuidado com a maldição de tua mãe!
Orestes
E como evitarei a de meu próprio pai
se demonstrar hesitação neste momento?
(Co 1180 MGK)
Estamos claramente diante de uma concepção cósmica de justiça (fundada na retribuição sangrenta em cima de retribuição sangrenta) que não tem como, não pode funcionar. A trilogia inteira é uma exposição dessa bancarrota moral, filosófica e política, e a celebração de sua alternativa. (Kitto, III.)
De certa forma, a atmosfera assombrada, opressiva de Ésquilo parece muito mais antiquada do que o frescor da Ilíada. Na verdade, é o oposto: seu objetivo como dramaturgo não era trazer o público de volta a esse mundo assombrado pelas Fúrias, mas levá-lo através desse mundo e para fora dele, mostrando a falência moral do velho sistema e indicando novos caminhos mais justos e mais racionais. (Dodds, II)
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Referências: A Companion to Greek Tragedy, John Ferguson, 1972; Tragédia grega, H. D. F. Kitto, 1939; A tragédia grega, Jacqueline de Rommily, 1970; A tragédia grega, Albin Lesky, 1937; Greek tragedy in action, Oliver Taplin, 1978; Os gregos e o irracional, E. R. Dodds, 1951, Introduction, Helene P. Foley, em Oresteia (Hackett, 1998); Introduction, Phillip Vellacott, em The Oresteian Trilogy (Penguin, 1956).
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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A Orestéia e o apogeu da Grécia Clássica é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 21 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/oresteia // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato