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Prisão Liberdade

Quem busca um curso chamado de As Prisões, quem tenta viver a não-monogamia na prática, entre muitos outros exemplos, tendem a ser pessoas com um interesse acima do normal em liberdade, ou, mais especificamente, em sua própria liberdade. Sentem-se tolhidas por amarras, cadeias, costumes — eu chamo de “Prisões” — e desejam ser mais livres.

Mas, paradoxalmente, a busca pela liberdade também pode ser uma prisão. A chave é lutarmos não pela liberdade de realizar nossos desejos, como uma vela que vai onde o vento sopra, mas sim pela liberdade de podermos escolher novos desejos, como o leme que determina o rumo a seguir. A verdadeira liberdade não é negativa, ou seja, estarmos livres de interferências externas, mas sim positiva: sermos livres para pautarmos nossos próprios atos.

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Prisão Monogamia

Nada pode ser mais capitalista e individualista do que a família nuclear monogâmica, com pessoas fechadas em grupos cada vez menores, exclusivos, isolados. Falar em não-monogamia é destravar a possibilidade de criarmos novos tipos de relacionamento, inclusive não-sexuais. E não tem como falar de relações românticas ou sexuais, de monogamia ou não monogamia, sem encarar de frente o fato de que, em nossa sociedade misógina, toda relação homem-mulher é sempre assimétrica.

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Prisão Autossuficiência

Um dos motivos que nos leva a querer trabalhar tanto para juntar tanto dinheiro é uma busca desesperada pela pretensa segurança da autossuficiência. Afinal, ninguém quer depender dos outros, não é? Como posso ser livre se não sou independente?

Nossa ânsia por autossuficiência não é acidental: apesar de sermos uma espécie gregária, apesar de nosso maior superpoder ser nossa capacidade única de nos unirmos para trabalharmos juntas em prol de objetivos comuns, o capitalismo nunca para de nos vender a autossuficiência como uma das qualidades mais importantes da vida.

Não é difícil de entender o porquê. Quem está bem inserida em sua comunidade, quem dispõe de uma extensa rede de apoio, pode resolver seus problemas comunitariamente – eu pinto sua parede, você me leva no aeroporto. Entretanto, se somos autossuficientes, ou seja, se estamos isoladas, todos os serviços precisam ser comprados, do Uber ao Marido de Aluguel.

Como parte da ideologia capitalista, a sociedade nos vende um ideal de autossuficiência individual que, além de impossível e indesejável, nos impede de enxergar a interdependência de todos os seres. Somos intensamente gregárias: não temos como não nos importar com a opinião das pessoas à nossa volta, não temos como não ser influenciadas e pautadas por elas. Mas temos sim como escolher quem serão essas pessoas que estarão a nossa volta.

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Prisão Trabalho

O problema não é o dinheiro: todas precisamos de dinheiro, ele garante nossa liberdade e nos permite viver nossas vidas nos nossos próprios termos. O problema não é o trabalho: somos seres criativos, gostamos, precisamos trabalhar, produzir, criar. O problema é só trabalharmos em prol dos projetos de outras pessoas, ao invés ou dos nossos projetos pessoais ou de projetos coletivos que nos sejam importantes. O problema é fazermos isso por muito tempo e por pouco dinheiro, que modo que não nos sobra nem tempo nem energia para nossos próprios projetos. Então, sim, tanto o trabalho quanto o dinheiro podem se tornar prisões.

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Prisão Respeito

A Autoridade sempre impõe não só o respeito e a obediência como virtudes autoevidentes, mas também um script da vida bem-sucedida. Acreditar nessa narrativa pode nos impedir de enxergar outras possibilidades, outros caminhos, outros scripts. Mas só temos como nos libertar dessa Autoridade quando percebemos que ela não é o Estado, ou nenhuma grande instituição, mas sim nós mesmas, infinitamente vigiando e punindo umas às outras.

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Prisão Patriotismo

Se nossa identidade de classe nos aprisiona, nossas muitas identidades tribais também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?

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Prisão Classe

Estamos algemadas à Prisão Classe quando simplesmente nos recusamos a encarar e reconhecer nossos privilégios de classe, mesmo quando eles estão em nossa cara, gritando e bufando.

Quando pergunto se as pessoas são ricas, elas ou dão respostas abstratas (“sou rico em oportunidades”) ou negam (“olha, eu até ganho bem, mas não me considero rica porque não consigo comprar tudo o que eu quero.”). Ninguém acha que é rica, ou que é privilegiada, pois isso acarretaria obrigações sociais que queremos evitar, uma autoimagem da qual fugimos. O privilegiado é sempre um Outro.

Mais ainda, nenhum privilégio de classe é apenas um privilégio de classe. Pois a distinções de classe permeiam tudo nessa nossa sociedade tão desigual. As mulheres ganham menos que os homens. As pessoas negras ganham menos que as pessoas brancas. Todos os privilégios são, fundamentalmente, privilégios de classe, desfrutados com maior ou menor intensidade dependendo de nossa classe social.

Por isso, é tão engraçado quando algum negacionista do racismo, já sem argumentos, diz: “Bem, mas isso não é uma questão racial, é uma questão econômica!” O que equivale a dizer: “Isso não é uma questão culinária, é uma questão gastronômica!” O racismo e a misoginia também são questões econômicas. Também são questões de classe.

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Prisão Religião

Religião é ideologia, ideologia é religião. Não é que a religião seja um tipo de ideologia. Não é que a ideologia funcione como se fosse uma religião. É que religião e ideologia são a mesma coisa: teorias abrangentes que utilizamos para fazer sentido da realidade, sejam elas o cristianismo ou o candomblé, o liberalismo ou o marxismo, o método científico ou a psicanálise freudiana.

Todas as pessoas, inclusive eu e você, enxergamos o mundo através de uma ou mais ideologias, e não há nada de errado nisso. (Pelo contrário, é impossível ser a-ideológico.) É só quando não conseguimos enxergar além das barras de nossa ideologia que ela pode se tornar uma prisão. Infelizmente, quase ninguém consegue: a gente não acredita no que quer, mas no que pode.

Um telescópio pode ser usado para enxergar galáxias a milhares de anos-luz de distância, mas nunca poderá ser usado para enxergar a si mesmo. Toda ideologia/religião dá conta de explicar o universo, mas não dá conta de explicar a si mesma. Toda ideologia/religião pode questionar ou interpelar tudo, menos suas próprias certezas fundantes.

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Prisão Verdade

Para podermos nos libertar de nossas Prisões, precisamos primeiro conhecê-las. Como identificá-las com certeza? O que é uma Prisão de verdade?

Infelizmente, a primeira Prisão é justamente a caixinha de ferramentas que utilizamos para apreender as Prisões: o conhecimento, a certeza e, enfim, a Verdade.

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Memórias de um caçador, de Turgueniev

Obra de estreia do maior nome da literatura russa no XIX, esse livro completamente inovador e revolucionário foi responsável direto pela abolição da escravatura no país. Como pôde esse menino rico ter escrito sobre servos de maneira tão bela, nunca sendo invasivo ou condescendente? Reconhecendo seu lugar de fala e sabendo fazer o que Tolstoi e Dostoievski nunca conseguiram: sumir atrás das palavras.

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Poesias de João da Cruz

O frade carmelita espanhol João da Cruz é talvez o maior poeta místico de todos os tempos. A oitava aula, Mística, do curso Grande Conversa Espanhola, será sobre sua vida e obra. Abaixo, as suas melhores poesias, em português e em espanhol.

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Calendários de aulas & encontros para 2023

As aulas e encontros são exclusivas para as mecenas do meu Apoia-se. (Repara só como são muitas as recompensas.) Todas as atividades são online, algumas com opção presencial. Em 2023, a aula avulsa mensal está sempre em diálogo com o tema daquele mês do Curso das Prisões. Das obras estudadas, todas obras-primas, cinco foram escritas por mulheres. Todos os meus cursos estão aqui. Seja mecenas.

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Como (des)ler literatura, uma aula

Passei toda uma vida lendo e ensinando Literatura. E, agora, percebo que, mais do que a própria Literatura, mais do que as obras em si, o que mais ensinei foi simplesmente a ler.

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Um dia, você terá morrido ontem

Um dia, você terá morrido ontem. Seu corpo ainda vai estar (provavelmente) inteiro e sólido. As pessoas que te amam ainda vão estar chorando. E, por toda volta, a vida vai continuar igual, em tecnicolor e dolby surround, pessoas compondo músicas, pessoas gozando, pessoas nascendo.

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A ausência da escravidão na literatura brasileira

Existe uma gigantesca lacuna na literatura oitocentista brasileira, uma ausência tão grande e tão inesperada que chama atenção: apesar de termos sido a maior economia escravista de todos os tempos, os dramas humanos inerentes à escravidão simplesmente não aparecem na literatura do período.

Foram sim escritas muitas obras, poemas e peças, contos e romances, que encararam de frente os horrores e dramas, os dilemas e os paradoxos de uma monarquia ocidental escravista em pleno século XIX, mas, tanto antes quanto depois da Abolição, essas obras foram sistematicamente desvalorizadas, esquecidas, descanonizadas.

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A escravidão, esquecida: Mariana, de Machado de Assis

A escravizada Mariana, protagonista do conto homônimo de Machado de Assis, criada no auge da campanha abolicionista, prontamente esquecida por seu criador e somente recuperada em meados do século XX, poderia formar um paralelo revelador com a própria escravidão, tema de debates polêmicos em sua época, prontamente esquecida por seus defensores e opositores assim que abolida e somente recuperada em sua importância histórica no século seguinte.

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Joaquim Nabuco em Massangana: um abolicionista nostálgico pela escravidão

Ao longo de todo o século XIX, a escravidão foi a grande vergonha nacional. Assim que é abolida, não há nada que nossa elite quer mais do que esquecer que ela jamais existiu. Entre a Abolição (1888) e o lançamento de Casa Grande & Senzala (1933), a escravidão praticamente desaparece da Grande Conversa Brasileira. Ninguém simboliza, representa, encarna esse processo melhor do que Joaquim Nabuco: ele foi, ao mesmo tempo, o maior inimigo da escravidão brasileira e, também, o primeiro a esquecer que ela jamais existiu.

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O herói negro do Martín Fierro

A história das leituras de Martín Fierro, de José Hernández, é a própria história da literatura argentina, em eterna tensão entre civilização e barbárie.

A abordagem borgiana do já polêmico Martín Fierro não poderia deixar de ser também polêmica. Seus contos hernandianos (“Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” e “El Fin”) e gauchescos (“La Otra Muerte”, “El Sur”, etc) são vistos tanto como traições ao gênero gauchesco e ataques ao Martín Fierro, quanto como homenagens a essa tradição literária nacionalista. De qualquer modo, todos concordam que Borges corrige e reescreve o Martín Fierro. Mas como? Qual é o eixo dessa reescritura?

O ponto central do debate é um julgamento moral sobre as escolhas, atitudes e ações do personagem Martín Fierro. Será ele um herói forte e virtuoso ou um desertor brigão e hipócrita? Devem os argentinos tomar o Martín Fierro como ideal heróico? Merece Martín Fierro ser um modelo a ser seguido?

Nesse julgamento moral do gaúcho, o principal argumento da acusação são as atitudes de Martín Fierro em relação a dois negros. Em La Ida, enquanto está bêbado, ele puxa uma briga com um negro, o mata na frente de sua mulher e ainda a humilha. Em La Vuelta, o irmão do Negro desafia Martín Fierro para uma payada: o gaúcho aceita mas acaba fugindo do duelo que se seguiria.

Por que Hernández utiliza dois negros para ilustrar as duas ações mais baixas do seu personagem? Como esses dois negros, em especial o segundo, são mostrados pelo autor em comparação com o protagonista? Qual é a atitude de Martín Fierro em relação aos dois negros? Dentro do plano da obra, qual o significado dessas baixezas por parte do protagonista? Ou seja, por que Hernández faz seu protagonista cometer tamanhas atrocidades?

Na esteira dessas perguntas, analisaremos também o conto “El Fin”, de Jorge Luis Borges. Por que Borges escolhe justamente essa relação entre Fierro e o Moreno para glossar? De que modo a interação entre ambos personagens é diferente em Borges e em Hernández? Afinal, Martín Fierro é ou não um herói do povo argentino? Estudaremos a figura do negro em Martín Fierro, avaliaremos como essas personagens são tratadas na obra ensaística borgiana sobre o poema e, por fim, consideraremos a recriação que Borges executa do Moreno em seu conto “El Fin”.

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Teoria dos grandes romances

Os Miseráveis é um dos romances mais longos de todos os tempos. E, em minha opinião, o melhor.

Naturalmente, vários outros romances têm qualidades técnicas e literárias equivalentes. Os meus finalistas seriam Guerra e Paz (Tolstoi, 1867, russo), Moby Dick (Melville, 1850, inglês), Cem anos de solidão (Garcia Márquez, 1967, espanhol), Manuscrito encontrado em Saragoça (Potocki, 1814, francês): todos possuem um interesse profundo, sincero, empático por cada personagem, até os menores — que, na prática, não são menores, pois explodem na página com profundidade e concretude inesquecíveis.

Mas, se o que me faz amar Homero é sua dureza, o que me faz amar Hugo (e colocar Os Miseráveis um nariz à frente de todos os outros romances que já li) é o seu olhar amoroso.

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Leituras 2020, comentadas

Não por acaso, o primeiro ano da grande pandemia também foi o ano em que mais li. Abaixo, alguns comentários sobre as minhas leituras em 2020. Antes, alguns avisos. Para quem tiver pressa, a lista está no fim do texto.