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Prisão Verdade

A primeira Prisão são as ferramentas que utilizamos para apreender as Prisões: o conhecimento, a certeza, a Verdade.

Para podermos nos libertar de nossas Prisões, precisamos primeiro conhecê-las. Como identificá-las com certeza? O que é uma Prisão de verdade?

Infelizmente, a primeira Prisão é justamente a caixinha de ferramentas que utilizamos para apreender as Prisões: o conhecimento, a certeza e, enfim, a Verdade.

(Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Verdade é a primeira. As inscrições para o curso estão abertas.)

O que está em jogo é a nossa vida.

* * *

Transformar ilusões, perceber realidade, praticar não-saber

Pratico zen budismo há mais de dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen. Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.*

O Curso das Prisões é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas. Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Para transformar as ilusões e perceber a realidade, ou seja, para praticar o segundo e o terceiro voto do Bodisatva, precisamos primeiro determinar o que é ilusão e o que é verdade. Uma das maneiras de fazer isso é adotando uma postura de não-saber, ou seja, praticando o primeiro voto dos Pacificadores.

Começamos o curso então pela Prisão Verdade pois ela está no cerne de três dos sete votos.

[*O texto dos votos: Os Quatro Votos do Bodisatva:as criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; as ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; a realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; o caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo. Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.]

* * *

Prisão Verdade ou Prisão Mentira?*

Como falar que a verdade é uma prisão em plena era da mentira? Tivemos recentemente, na presidência do Brasil e dos Estados Unidos, homens eleitos na base de notícias falsas e boatos repassados em redes sociais. E não foi por excesso de credulidade, mas também, paradoxalmente, por excesso de ceticismo: as notícias falsas se tornaram um problema justamente porque as pessoas estão tão céticas que, em seu ceticismo crédulo, acreditam ingenuamente em qualquer teoria alternativa dos fatos. Aliás, um dos grandes paradoxos dos tempos atuais é que foram exatamente as pessoas mais céticas e cínicas que se tornaram as maiores crédulas e ingênuas. (Antes da pandemia, que roteirista teria incluído em seus filmes uma comunidade de “negacionistas do apocalipse zumbi”?)

Além dos votos zen-budistas, também sou bacharel em História — fui treinado para pesquisar e investigar, descobrindo assim a verdade sobre os fatos do passado — e escritor de ficção — passei a vida inteira inventando histórias que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram. A verdade, portanto, está no centro do meu trabalho, seja para buscá-la ou evitá-la. Tudo o que faço profissionalmente diz sempre respeito à verdade, seja reflexão ou discurso, ataque ou defesa, repúdio ou fuga.

Naturalmente, ninguém precisa de mim para saber que a mentira é um problema. O que eu defino como “prisão” são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas. Ou seja, toda Prisão é sempre um conceito que, em um primeiro momento, nos parece bom, positivo, desejável. Tão bom, positivo, desejável que não vemos seus problemas, falhas, limitações. Nada que é tão autoevidentemente negativo quanto a mentira jamais poderia ser uma Prisão.

A verdade é sim, a princípio, claro, um valor positivo. Mas a questão é outra: será um valor positivo absoluto? Será que devemos buscar, falar a verdade sempre, doa a quem doer? Mais importante: existe essa verdade assim com V maiúsculo? Temos como sabê-la?

Nada é mais fácil e mais gostoso, mais preguiçoso e mais complacente, do que apontarmos o dedo e rirmos das nossas amigas e colegas que acreditam em fake news e caem em golpes. O principal foco de todos os textos das Prisões, entretanto, é nos fazer refletir sobre nós mesmas. Se você ler esses textos e só conseguir pensar nas prisões das outras pessoas, por favor, leia de novo. O único dedo que eu aponto é sempre para o espelho.

[*Essa subseção retrabalha alguns trechos da introdução “Porque mentir” do meu livro Mentiras Reunidas, lançado em 2023, que problematiza verdades e mentiras do começo ao fim.]

* * *

Não duvidar, não acreditar*

Às vezes, nas rodas de conversa que facilito, uma pessoa participante vem me questionar a veracidade da história de outra:

— Você acreditou nisso que a Roberta contou?

— Não.

— Pois é, duvido que tenha mesmo acontecido desse jeito!

— Bem, não duvidei da história dela em momento algum.

— Não foi isso que você disse?

— Eu não acreditei na história dela, mas também não duvidei. Não reconheci como verdade, nem rejeitei como mentira. Não imponho a mim mesmo o ônus de me posicionar criticamente em relação à veracidade das histórias que escuto.

[*Trechinho da sétima prática de atenção, “Ouvir com atenção plena” do meu livro Atenção.]

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Nem no lixo, nem no pedestal

Quando digo que a Verdade é uma prisão, não estou dizendo que ela é inútil, nociva ou que deve ser jogada fora. Defender que a Monogamia é uma prisão, por exemplo, não é uma crítica o casal que escolheu viver seu relacionamento de acordo com o pacto monogâmico, mas sim ao discurso hegemônico da nossa sociedade, que vende esse pacto como sendo a única maneira de organizarmos nossos relacionamentos e nunca abre espaço para as possibilidades alternativas. A Verdade é uma prisão porque ela é igualmente vendida como um valor inquestionável, intrinsecamente positivo, que devemos sempre buscar, respeitar, valorizar.

Se a vendedora diz que aquele carro só foi usado por uma velhinha para ir ao parque aos domingos; se a candidata à vaga de emprego diz que é formada em Engenharia, se a policial militar garante que a pessoa favelada que matou era uma bandida, é importante determinarmos a Verdade dos fatos. Tão importante, aliás, que nossa sociedade criou uma série de mecanismos institucionais pensando exatamente nesses casos: odômetros, diplomas, julgamentos. Todos, cada um do seu jeito, instrumentos para medir a verdade dos fatos. Todos, cada um do seu jeito, passíveis de serem manipulados, falsificados, adulterados.

Então, não, a Verdade não é para ser posta no lixo, mas também não é para ser colocada em um pedestal.

Um martelo não é “bom” nem “ruim”. Não faria sentido falar de um martelo nesses termos. Existem circunstâncias nas quais um martelo pode ser útil — por exemplo, se quero colocar um quadro na parede — e existem circunstâncias nas quais um martelo é ou inútil ou até nocivo, pois, se eu tentar resolver a situação com o martelo, posso piorar as coisas ainda mais — por exemplo, se quero passar uma camisa.

Se estou comprando um carro usado, ou contratando uma engenheira, a verdade é uma ferramenta útil. Esse odômetro foi adulterado? Esse número de CREA é válido?

Mas nem sempre é necessário buscar a verdade. Se uma amiga está desabafando comigo, contando uma história longa e dolorida, a verdade é uma ferramenta inútil, tão inútil quanto um martelo na hora de passar roupa. Pelo contrário, ficar questionando e interpelando minha amiga sobre a “verdade” da história que ela está contando só vai me atrapalhar no processo de acolher e aceitar sua dor.

A verdade importante naquele momento não é a verdade do que realmente aconteceu com a minha amiga, mas a verdade de que foi essa história que ela realmente escolheu me contar nesse momento, que é essa história, como está sendo contada agora, tudo o que tenho para trabalhar se quiser ajudá-la, acolhê-la. A veracidade dos fatos da história é completamente irrelevante. (Vivemos e morremos pelas narrativas que criamos. Somos seres que projetam sentido em tudo. Quem sou eu para interditar a narrativa de uma pessoa sobre si mesma? A minha verdade é a narrativa que criei para mim.)

A Verdade não é um valor, ela é uma ferramenta. Algumas vezes, é útil. Em outras, só atrapalha.

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A empatia da ficção

O livro Um Milhão de Pedacinhos lançado em 2003, rapidamente se tornou um best-seller. A história da degradação e posterior redenção de um viciado em drogas inspirou milhões de pessoas por todo o mundo. Algum tempo depois do lançamento, entretanto, o autor foi desmascarado como um grande mentiroso. Aparentemente, quase nada na história era verdade. Tudo foi distorcido ou exagerado. Sua agente literária o abandonou, sua editora cancelou seu contrato, sua maior fã, uma apresentadora de televisão, o renegou no ar, ao vivo. As mesmas milhões de pessoas por todo o mundo se sentiram traídas.

Eu não li Um Milhão de Pedacinhos. Não sei se é bom ou não. Mas, para as pessoas que leram e gostaram, para as pessoas que se sentiram tocadas pela mensagem, para as pessoas que aprenderam alguma coisa com o livro, que diferença faz tudo ter sido inventado ou não? Minha irmã, por exemplo, não consegue ler ficção: não lhe desperta nenhuma empatia. Diz ela:

— Por que eu iria me interessar em saber como nunca se desenrolou uma situação que nunca aconteceu entre pessoas que nunca existiram?

Mas será que a mensagem de Dom Quixote ou de Policarpo Quaresma deixa de ser verdadeira somente porque os personagens nunca existiram? De certo modo, Antígona e Capitu talvez sejam muito mais verdadeiras e reais — ecoando pelos séculos, existindo em inúmeros continentes, falando dezenas de línguas, tocando inúmeras vidas — do que nós, pessoas pretensamente verdadeiras e reais, mas tão restritas por nossas limitações físicas, geográficas, cronológicas.

A ficção se utiliza do artifício e da mentira para transmitir verdades mais verdadeiras do que seria capaz a própria verdade.

Esse texto que você está lendo também é um texto de ficção.*

[*Falo mais sobre isso no pós-escrito da Prisão Verdade.]

* * *

A Verdade sobre Capitu

Dom Casmurro, romance publicado por Machado de Assis em 1899, conta a história de um adultério. Ou não.

Capitu é casada com Bentinho, cujo melhor amigo é Escobar. Um belo dia, Escobar morre e, poucos meses depois, Capitu dá a luz a um filho que é a cara do falecido.

Durante mais de meio século, leu-se Dom Casmurro como um romance de adultério. Nunca houve dúvida quanto à infidelidade da sem-vergonha Capitu. Somente em 1960, em O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Helen Caldwell levantou publicamente a questão: mas será que era? (Não por acaso, a primeira pessoa a levantar essa possibilidade era não somente mulher, mas uma mulher estrangeira.)

Trinta anos depois, quando li Dom Casmurro no Ensino Médio, nossa professora fez o tradicional julgamento de Capitu. A maior parte da turma a considerava inocente (inclusive a professora) e um grupo menor defendia sua culpa. Sobrei eu pra ser juiz, o único que não tinha opinião formada. Meu papel era somente julgar qual dos lados tinha levantado mais fatos e argumentos para provar sua opinião. As discussões foram acaloradas; amizades, desfeitas. Houve gente me acusando nos corredores de “anti-Capitu (ou pró-Capitu) desde criancinha”. Como aspirante a escritor, ver tantas adolescentes com tantas leituras tão divergentes e apaixonantes do mesmo texto só comprovava os efeitos concretos que a ficção exercia sobre a realidade.

Anos e anos depois, já no doutorado de literatura, lemos Dom Casmurro de novo. Dessa vez, o tom foi outro. Nenhuma das minhas colegas de sala teve a temeridade de sugerir o adultério de Capitu, mas falou-se bastante do falocentrismo da literatura canônica. Um comentário que se ouviu muito no meu doutorado foram variações de:

— Como tanta gente pôde ler esse livro tão errado tanto tempo? É óbvio que o livro é sobre o ciúme louco e obsessivo de Bentinho, não sobre uma traição (que nunca existiu) da pobre Capitu! É tão óbvia a reticência do autor quanto à traição de Capitu que é simplesmente impossível ler o romance como um simples livro sobre adultério!

Mas pode-se argumentar que o fato de o livro, seu autor e suas pessoas leitoras estarem inseridas em uma tradição literária falocêntrica é que torna ainda mais provável o tal adultério. Afinal, se duas gerações de pessoas ao longo de sessenta anos viram o adultério de Capitu como autoevidente, então por definição o livro no mínimo permite essa leitura. Dizer o contrário equivale a arrogantemente imputar uma cegueira imbecil às pessoas leitoras do passado.

Ainda usando o romance de exemplo, as pessoas defensoras de Capitu alegam em seu favor a reticência de Bentinho: se houvesse realmente alguma prova concreta do adultério, ele teria dito e feito fanfarra. Se não fala nada, é porque não há o que dizer.

Já as primeiras pessoas a ler o livro talvez pensassem como José Veríssimo, um dos principais críticos literários da época, em seu História da Literatura Brasileira (1915):

“Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos.”

E então, pergunto eu, Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um “autor extremamente decente” e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido? Nunca saberemos. Não há possibilidade de haver uma resposta certa. Cada argumento sempre vai cortar para os dois lados.

Mais importante, que diferença faz?

Vai ver nem o próprio Machado sabia. Vai ver o romance não é nem sobre uma adúltera safada que trai um pobre burguesinho (a certeza do adultério), nem sobre um homem obcecado por ciúmes que persegue sua inocente esposa (a certeza do não-adultério). Vai ver é um romance sobre a dúvida. Vai ver é um romance sobre como essa nossa busca obsessiva e pueril por uma tal Verdade com V maiúsculo pode destruir nossas vidas.

* * *

As pessoas mentem

Fui um adolescente gordo. Sempre que alguém me encontrava, o comentário era o mesmo:

— Puxa, como você emagreceu!

Aquilo me intrigava. Afinal, eu sabia que não tinha emagrecido. Desenvolvi várias teorias para explicar esse paradoxo. Minha preferida era a seguinte:

As pessoas me rotulavam de gordo e pensavam em mim como “aquele gordo”. Portanto, quanto menos viam o verdadeiro-eu, de carne e osso, e mais interagiam somente com “aquele-gordo” das suas memórias, mais eu engordava em suas mentes, até que, finalmente, quando me encontravam, eu parecia de fato bem menos gordo do que em suas imagens mentais de mim.

Sustentei essa teoria por muitos anos, bastante orgulhoso da sofisticação meu raciocínio. Até que um dia me dei conta: As pessoas mentem. Mentem mal e mentem bem, mentem por carinho e mentem por malícia, mentem de propósito e mentem sem se dar conta, mas mentem o tempo inteiro.

Para mim, adolescente de pífio traquejo social, essa foi uma realização importante. Eu não precisava sempre falar a verdade! Quando uma pessoa de penteado horrível me pedia opinião sincera, eu podia dizer que “estava lindo”… e nada acontecia! Deus não me fulminava. A pessoa não enxergava a mentira nos meus olhos. Eu não corava de vergonha. Nada disso. Pelo contrário, o mundo se tornava um lugar melhor e mais agradável. As pessoas sorriam mais para mim. Eu era convidado para mais festinhas. Parecia mágica. No ano seguinte, eu já era presidente do grêmio.

O que mudou minha vida não foi nem a percepção de que mentiam para mim, e nem de que eu também podia mentir de volta. (Quase todo mundo concluiu isso muito mais cedo do que eu!) O que mudou minha vida foi quando me liberei da obrigação de questionar a veracidade do que as pessoas me diziam. E daí que mintam pra mim? O que me importa? Que diferença faz?

Vai ver a pessoa achou realmente que emagreci horrores. Vai ver a pessoa achou que sou um gordo disforme e, com a minha corpulência na cabeça e na ponta da língua, soltou o primeiro comentário simpático que pôde imaginar sobre esse tema. Vai ver ela simplesmente se treinou para dizer isso para toda pessoa gorda sem nem pensar. Vai ver ela gostou sinceramente do meu penteado. Vai ver ela achou meu penteado horrível e falou que gostou dele só porque gosta sinceramente de mim e quis poupar meus sentimentos. Vai ver ela achou o meu penteado horrível, caga para os meus sentimentos, mas falou que gostou dele porque pensa que pode precisar de mim no futuro. Se não tenho acesso às emoções e pensamentos profundos das pessoas, por que perder tempo interpelando-os? Só posso interagir com suas palavras e com suas ações. Somos o que fazemos.*

Afinal, que Verdade é essa que tanto valorizamos? Se a recepcionista do escritório aparece com um penteado (que eu acho) horrível, por que verbalizar essa (minha) Verdade? Serei eu por acaso fiscal dos penteados ruins do mundo? Vale a pena causar um desconforto mínimo que seja em outra pessoa em nome de uma Verdade trivial dessas? Se valorizo tanto a tal Verdade, por que não falar a Verdade, digamos, sobre os sapatos (que eu acho) incríveis que ela está usando hoje?

Talvez a melhor maneira de não usar a Verdade como arma seja somente refreando essa nossa ânsia egocêntrica por manifestar nossas “Verdades” não-solicitadas em assuntos que não nos dizem respeito — especialmente sobre os corpos de outras pessoas. Poucas atitudes são mais verdadeiras do que saber a hora de engolir em silêncio as nossas ó-tão-importantes verdades.**

[*Esse será um dos temas mais importantes e mais repetidos desse livro. Na 19ª prática de atenção, “Escolher agir com cuidado”, do meu livro Atenção., eu desenvolvo essa ideia mais a fundo.]

[**“Exercer a não-opinião” é a décima prática de atenção do meu livro Atenção.]

* * *

E se todas as pessoas estiverem erradas?*

Quando nos tornamos pessoas adultas, nossa mente é como um computador que veio de fábrica com vários programas pré-instalados. Não é nem que todos esses programas sejam lixo, mas também não é que sejam bons só porque foram instalados por pessoas em quem teoricamente confiamos (mães, professoras, amigas etc.) ou porque têm o aval da tradição e do costume. Só nós podemos ser as juízas de quais programas queremos que rodem em nosso próprio computador, escolhidos de acordo com nossas necessidades, personalizados para nosso uso pessoal. Não precisamos viver nossas vidas no modo default de fábrica.

Vovó sempre dizia que manga com leite era uma combinação fatal. (Um dia, tomamos e nada aconteceu.) O menino da casa ao lado sempre dizia que “baiano era tudo preguiçoso”. (Um dia, fizemos um trabalho com uma equipe da Bahia e ela era tão trabalhadora quanto qualquer outra.) A professora de espanhol sempre dizia que o Brasil era um exemplo de democracia racial. (Um dia, em uma clínica onde todas as pessoas médicas eram brancas e as faxineiras, negras, percebemos que não era bem assim.)

Pouco a pouco, enquanto crescemos, se estivermos prestando atenção, esses pequenos exemplos vão se acumulando mais e mais, até explodirem em uma crise de fé impossível de ser ignorada: se nossos pais e nossas mães, nossas professoras e nossas amigas, todas essas pessoas em quem confiamos para nos ensinar e nos formar, estavam erradas em tanta coisa que pudemos observar e comprovar… então, como podemos confiar em qualquer das outras coisas que nos ensinaram? Na melhor das hipóteses, algumas coisas que nos ensinaram estavam erradas e outras, certas. (Mas como diferenciá-las?) Na pior das hipóteses, tudo que nos ensinaram estava errado. Tudo.

De repente, nunca mais conseguiremos, com a mesma inocência de antes, responder a nenhuma pergunta dizendo:

— Porque meu pai disse. Porque minha professora me ensinou. Porque o padre me contou. Porque fui criado assim. Porque na minha terra fazemos desse jeito.

Nesse momento, começa nosso longo e tortuoso processo em direção a nos tornarmos pessoas humanas adultas pensantes.

[*As subseções “E se todas as pessoas estiverem erradas?”; “E se estivermos erradas?” e “Limpando o disco rígido” são trechos da 9ª prática de atenção, “Abraçar a não-certeza”, do meu livro Atenção.]

* * *

E se nós estivermos erradas?

Afinal, se pessoas que nos ensinaram tudo estavam erradas em tanta coisa, nós também devemos estar erradas em muita coisa. Mas o quê? Nós não sabemos o que não sabemos. Dentre as coisas que achamos que sabemos, quais realmente sabemos?

Nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo. Racionalmente, portanto, sabemos que estamos erradas em muitas das nossas certezas. Se pensamos em nossos Eus-de-dez-anos-atrás, podemos facilmente listar várias certezas equivocadas dessa pessoa que agora me parece tão distante. Por outro lado, hoje, vivemos imersas na segurança das nossas certezas, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes! (Afinal, se não achássemos que nossas opiniões estão certas, elas automaticamente deixariam de ser nossas opiniões.)

Entretanto, apesar de nossa imensa segurança em nossas certezas, a não ser que desejemos sinceramente nos colocar na insustentável posição de únicas pessoas do mundo que jamais estão erradas, temos que presumir que muitas de nossas certezas atuais estão equivocadas. Daqui a dez anos, se ainda estivermos vivas, quais serão as falsas certezas que veremos em nossos Eus-de-hoje? Em que estamos erradas hoje, apesar de jurarmos que estamos certas?*

[*Uma das melhores maneiras de observar esse fenômeno na prática é escrevendo um livro ao longo de mais de vinte anos. Comecei a escrever O Livro das Prisões em 2002 e, agora, revisando tudo para publicação em 2023, tem prisões que literalmente só sobrou o título e algumas, nem isso: desapareceram completamente. As besteiras que eu acreditava em 2003 ou 2013 literalmente me estapeiam a cara linha por linha.]

* * *

Limpando o disco rígido

“Não há nada no mundo mais bem distribuído do que o bom-senso”, escreveu Descartes, com um toque de ironia, na primeira frase do Discurso do método: “Mesmo aquelas pessoas que acham que poderiam ser mais ricas, ou mais cultas, ou mais bonitas, ou mais instruídas, consideram que possuem bom-senso na medida certa.”

Mas o que pode ser mais egocêntrico do que a própria ideia de bom-senso, esse critério autocentrado de medição do mundo? Todo homem-bomba se considera dotado do mais profundo bom-senso. Os grandes crimes da humanidade foram todos cometidos por pessoas do mais inimputável bom-senso, carregando suas verdades na ponta das baionetas.

Antes mesmo dos vinte anos de idade, é impressionante o lixo dos séculos que já se acumula em nossas mentes. “Sabemos” que loiras são burras e vaidosas; gays, afetados e promíscuos; mulatas, fogosas e sensuais. Que o governo melhor é aquele que governa menos. Que os homens devem sempre pagar a conta para as mulheres. E assim por diante, uma lista quase infinita de preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns. De onde vieram? O que estão fazendo nessas jovens mentes que não lhes pertencem? Como podemos nunca ter percebido a quantidade de lixo que apodrecia em nós?

Nessa idade, nossas mentes são ainda computadores praticamente recém-chegados da fábrica, mas já repletos de programas maliciosos, vírus, malwares.

Cabe a nós mesmas a tarefa de limpar o disco rígido, programa por programa. Para que serve esse programa? Quanto de memória ocupa? Vamos precisar dele no futuro? Está atravancando a capacidade de processamento do computador? Está entrando em conflito com outro programa mais útil?

Muito mais urgente do que instalar novos programas é desinstalar aqueles pré-instalados — alguns inúteis, outros nocivos — que impedem nosso bom funcionamento.

* * *

Tomar posse do conhecimento

Meu projeto não era uma simples rebeldia de adolescente bem-alimentado, rejeitando todas as verdades que recebera só para ser do contra. Eu não estava afirmando que todas as verdades que recebera estavam erradas, nem querendo rejeitá-las todas, mas apenas presumindo, como hipótese de trabalho, que eram falsas até segunda ordem. Até que pudesse transformar essas verdades de outras pessoas em um conhecimento que fosse meu.

Exemplo de uma “Verdade” que encontrei em minha mente: o melhor jeito de armazenar pão era fora da geladeira. E me questionei: por que eu “sei” isso? De onde veio essa “Verdade”? Da minha mãe, respondi. Ela sempre afirmou que era um absurdo colocar pão na geladeira. E eu, hoje, adulto pensante e experiente, o que achava? Bem, eu concordava. Fora da geladeira, as últimas fatias podiam até mofar, mas, dentro da geladeira, o pão inteiro já ficava ruim na hora. Pois bem. Esse conhecimento agora era meu.

A partir desse momento, eu não era mais uma criança que deixava o pão fora da geladeira porque era assim que a mãe fazia. Agora, eu era um adulto que armazenava o pão fora da geladeira por considerar, depois de alguma reflexão, que esse era o método mais apropriado.

* * *

A certeza, não a verdade

Uma amiga leu o primeiro rascunho desse texto e detectou uma contradição:

— No começo, você defende que não devemos ficar tão obcecadas com a Verdade, mas, logo depois, propõe questionarmos todas as Verdades do mundo para assim descobrirmos… o quê? A Verdade?!”

Não exatamente. A “Verdade” sobre a melhor maneira de armazenar pão eu já possuía, estabelecida, consagrada, convencionada dentro de mim. Se o que eu quisesse fosse apenas a Verdade sobre esse e outros fatos, o meu projeto não faria sentido. Só que não basta eu saber algo só porque minha mãe me ensinou — mesmo se essa informação por acaso estiver correta. (Mas, até que possa confirmá-la independentemente, preciso presumir que pode também por acaso estar errada.) Dado que sei que minha mãe me ensinou algumas coisas certas e algumas coisas erradas, para que eu possa considerar algo que ela me ensinou como “Verdade” eu preciso comprovar essa informação por outros meios. Preciso torná-la minha. Preciso transformar “algo que minha mãe ensinou”, ou seja, uma verdade que me foi transmitida, uma verdade endossada por uma figura de autoridade, uma verdade que, na melhor das hipóteses, será uma “verdade acidental”, em “um conhecimento que possuo”, um conhecimento adquirido por mim através de um método cético, através de uma reflexão racional, através de uma experiência prática. Mesmo que o resultado final seja idêntico, ainda que o meu conhecimento conquistado seja igual à verdade dada, a simples aplicação do método cético faz toda a diferença do mundo.

Trocar a pergunta “isso é verdade?” por “tenho certeza disso?” muda tudo.

A Verdade é algo dado: fala-se em descobrir ou revelar a verdade, nunca em produzir ou criar a verdade. A Verdade é algo que está lá, como a América, esperando para ser descoberta. A Verdade quase sempre precisa de uma figura de autoridade que lhe garanta e lhe revele, que lhe endosse e lhe transmita: de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais. A Verdade não precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, a Verdade, assim como a América, ainda estará lá.

Já a certeza é um conceito cognitivo: nossas certezas são construídas por nós. A certeza não pode ser passada de mãe para filha, de mestre para discípula, de Deus para mortais: cada pessoa precisa criar a sua. A certeza precisa do olhar de alguém: só pode existir certeza se houver uma agente humana que se utilize de sua razão para afirmar, na primeira pessoa, ativamente, “eu tenho certeza”. A certeza precisa da pessoa humana: quando a humanidade se extinguir, não restará mais ninguém para ter certeza de nada.

Não quero as verdades da minha mãe, não por uma rejeição pueril a ela, mas porque quero construir as minhas próprias certezas.

* * *

O método cartesiano de Descartes*

O método que estou propondo nada mais é do que minha variação pessoal do Método Cartesiano, proposto pelo filósofo francês René Descartes em seus livros Discurso do método (1637) e Meditações sobre filosofia primeira (1641), onde ele faz a pergunta inaugural da filosofia moderna: “O que eu sei?”

“Percebi faz algum tempo”, escreveu Descartes, “quantas coisas falsas eu tinha aceitado como verdadeiras desde a infância e o quão duvidoso e incerto era o edifício do conhecimento que eu tinha levantado sobre bases tão precárias. Por isso, se eu quisesse estabelecer algo de firme e duradouro nas ciências, era necessário, pelo menos uma vez em minha vida, me desfazer de todas as opiniões que até então dera crédito, derrubar todo esse edifício e começar outra vez a partir das primeiras fundações.

“Não é meu interesse, porém,” ele faz questão de afirmar, “dizer às outras pessoas o que fazer, mas simplesmente reformar meus próprios pensamentos e construir em um terreno que seja apenas meu.”

“O empreendimento me parece gigantesco,” continua ele, “mas as circunstâncias da minha vida, unindo o ócio e o conforto à certa maturidade, indicam que agora é a hora oportuna de me aplicar, com seriedade e liberdade, à demolição geral das minhas opiniões atuais.”

“Assim como acontece ao demolir uma velha casa,” escreveu, “quando se conservam os entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões mal alicerçadas, eu ia fazendo diversas observações e adquirindo muitas experiências, que me serviriam mais tarde para estabelecer outras mais corretas.”

“Antes de demolir a casa velha e reconstruí-la de novo, entretanto,” aponta, “era preciso ter onde morar enquanto durassem as obras, ou seja, ter ao menos uma certeza indubitável onde eu pudesse habitar.”

“Afinal,” diz ele, “se Deus me concedeu a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, não era para que eu me contentasse com as opiniões dos outros, e sim para que eu utilizasse o meu próprio juízo para analisá-las, segui-las, descartá-las.”

Assim, desconfiando da evidência dos seus sentidos, Descartes se propõe a desaprender todas as verdades sobre as quais não tivesse certeza. Finalmente, só lhe resta uma única certeza, o tijolo fundacional onde reerguerá o edifício do conhecimento: “Penso, logo existo”. Se ele tinha consciência de estar ali, pensando aquelas questões, então, era porque existia. Disso, e apenas disso, ele poderia ter certeza.

[*Essa subseção é uma paráfrase de vários trechos do Discurso do método (1637) e das Meditações sobre filosofia primeira (1641) pelo filósofo francês René Descartes.]

* * *

Ando, logo existo

Por que Descartes diz “penso, logo existo” e não “respiro, logo existo” ou “ando, logo existo”? Afinal, quem anda necessariamente existe, não? Seria possível, ao mesmo tempo, ser capaz de andar e não existir?

Uma das premissas fundamentais de Descartes é que nossos sentidos são falhos e sempre podem estar nos iludindo. Portanto, em algumas circunstâncias bem específicas, poderia até ser possível dizer “penso que estou andando, mas não estou andando” (um sonho, uma ilusão, uma realidade virtual simulada, etc), mas jamais faria sentido dizer “penso que estou pensando, mas não estou pensando”. Por isso, para Descartes, também teria sido possível formular a sua certeza primordial nos seguintes termos: “Penso que estou andando, logo existo”.

Para Descartes, o que importa, o que garante que ele existe, não é o ato mecânico de existir (ou de andar, ou de respirar) e sim sua consciência de que existe (ou de que anda, ou de que respira). Ou seja, uma vez mais, voltamos ao “penso” como condição primordial. Essa talvez seja a essência do Método Cartesiano: não basta a verdade de que estamos andando, precisamos da certeza de que estamos andando.

* * *

O quanto preciso saber para poder saber?

Quase sempre, quando me pedem opinião sobre acontecimentos do noticiário, o escândalo na Petrobrás, a crise no Oriente Médio, a transposição do rio São Francisco, minha resposta é a mesma:

— Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião.

Quase sempre, as pessoas interpretam essa frase como um convite para explicarem o assunto. Tudo bem: ouvir pessoas falando sobre seus interesses quase sempre é bastante educativo. Mas depois vem a inevitável pergunta:

— Bem, agora que te contei tudo, qual é a sua opinião sobre a (digamos) Guerra da Ucrânia?

E respondo:

— Perdão. Se alguém me perguntar qual é a sua opinião sobre isso, eu poderia até tentar reproduzir, mas continuo sem conhecimentos suficientes para poder emitir uma opinião minha.

Pois o quanto é necessário saber sobre um assunto para que possamos considerar que “sabemos” aquele assunto?

Se todas as nossas informações sobre um assunto vierem da mesma fonte, mesmo se muito abalizada, mesmo se muito querida, podemos realmente considerar que “sabemos” aquele assunto?

* * *

SUS: um estudo de caso

Uma das dificuldades de escrever um texto como esse é a seguinte: se não dou exemplos, o argumento fica abstrato demais e muitas pessoas leitoras se perdem; se dou exemplos, muitas pessoas se concentram somente neles, atacando-os ou defendendo-os, e perdem de vista o argumento.

Então, consciente dos riscos, considerei importante exemplificar com mais detalhes o método que estou descrevendo. Peço às pessoas leitoras que se apeguem mais ao argumento sendo desenvolvido e menos às minúcias do exemplo em si.

* * *

Um dia, muitos anos atrás, em uma conversa aleatória, me referi ao SUS, o Serviço Único de Saúde brasileiro, como “um serviço público completamente caótico e disfuncional”.

Minha companheira da época, sempre atenta às traições que cometia contra a pessoa que queria ser, logo questionou:

— Quem é que sabe que o SUS é “um serviço público completamente caótico e disfuncional”? Você ou sua família?

Era uma boa pergunta: por que eu “sabia” que o SUS era “um serviço público completamente caótico e disfuncional”? O que essa Verdade estava fazendo em minha mente, tão concreta e tão autoevidente, tão acrítica e tão não-problemática, ao ponto de ser distraidamente repetida por mim em conversas?

* * *

No meio social onde eu crescera, classe alta da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no final do século XX, era uma Verdade inquestionável e autoevidente, daquelas que naturalmente não precisam ser nem justificadas nem defendidas, que não só o SUS mas quase todos os serviços públicos, do transporte à educação, eram caóticos e disfuncionais.

Mais ainda, essa Verdade era indissociável de um certo liberalismo econômico de tendências conservadoras quase unânime entre essas mesmas pessoas, baseado em premissas também autoevidentes para elas, como a idealidade do Estado mínimo e a superioridade da iniciativa privada sobre os serviços públicos.

E, por incrível que pareça, apesar de eu ter me afastado desse ambiente há décadas justamente por rejeitar essas Verdades, ainda assim eu me pegava involuntariamente agindo como seu porta-voz!

Uma ressalva importante: somente o fato de essa Verdade quase hegemônica nessa classe social (de que o SUS e outros serviços públicos são caóticos e disfuncionais) estar perfeitamente alinhada com posição política quase hegemônica dessa mesma classe social (liberalismo econômico de tendências conservadoras) não quer dizer que essa Verdade seja necessariamente falsa. Afinal, nossas verdades estão quase sempre alinhadas às nossas posições políticas.

Mas de onde vinha essa Verdade? Como essas pessoas sabiam que o SUS era caótico e disfuncional? Tinham acesso a dados estatísticos que demonstravam a superioridade da medicina privada? Tiveram experiências pessoais terríveis no SUS?

Por ter crescido entre essas pessoas, eu sabia que a resposta para as duas últimas perguntas era “não”. Algumas delas, inclusive, pagavam seus planos de saúde particulares com muito sacrifício.

Entretanto, quando uma pessoa tem uma opinião que considera autoevidente, qualquer pergunta sobre ela já soa como uma crítica e um desafio:

— Ora, Alex, é óbvio que o SUS não funciona! Nem teria como funcionar! Você parece que gosta de ser do contra, só pode!

Então, fiz a pergunta com cuidado, enfatizando o “saber”:

— Como você sabe que o SUS é caótico e disfuncional?

* * *

Recebi variações das seguintes três respostas:

1. Era autoevidente que o SUS era caótico e disfuncional porque, por definição, qualquer serviço público sempre seria pior que um serviço privado e, além disso, o governo de um país em desenvolvimento como o Brasil jamais poderia oferecer um serviço médico para 200 milhões de pessoas com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares do Rio e de São Paulo;

(Quanto a isso, eu não tinha comentários: era um dogma de fé.)

2. As pessoas funcionárias de suas empresas ou as empregadas domésticas de suas casas contavam histórias de terror do SUS, de filas intermináveis, de esperas longuíssimas, etc.

(Apesar de serem de segunda mão, essas histórias de terror bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, se eu trabalhasse para essas pessoas, capitalistas até a raiz da alma, eu preferiria inventar que passei duas noites na fila do posto de saúde — logo, preciso de dois dias de folga, patroa! — do que dizer que fui atendido em meia hora na UPA, Unidade de Pronto Atendimento, perto de casa.)

3. Tinham visto/lido/ouvido várias reportagens sobre o caos do SUS na Veja/ Globo/CBN/Estadão/Jovem Pan, etc.

(Essas reportagens bem podiam ser verdade. Mas, por outro lado, esses veículos de mídia, além de compartilharem do mesmo liberalismo econômico de tendências conservadoras, também tinham um forte interesse financeiro em torpedear o SUS. Afinal, se o SUS funcionasse como deveria e fosse utilizado satisfatoriamente por todas as pessoas cidadãs brasileiras, esses veículos perderiam toda a enorme receita publicitária dos planos de saúde particulares. Então, presumindo que há tanto méritos quanto falhas no SUS, esses veículos sempre iriam cobrir com mais ênfase e mais destaque as falhas do que os méritos.)

* * *

Nesse ponto, alguma pessoa leitora talvez me interpele:

— Bem, Alex, se eles não podem dizer que o SUS é caótico e disfuncional, você também não pode dizer que o SUS é lindo e eficiente!

Sim. Tanto que em momento algum eu fiz essa afirmação.

* * *

Todas as propagandas oficiais do governo sobre o SUS têm o mesmo interesse explícito em enaltecê-lo que a grande mídia tradicional tem em torpedeá-lo. Uma anula a outra.

Seguramente existem dados e relatórios estatísticos extensos comparando o SUS à rede privada e estabelecendo metas e padrões para o atendimento às pessoas cidadãs. Mas quem lê esses relatórios? Provavelmente nem os membros do Congresso cujas decisões deveriam ser determinadas por esses dados.

Posso afirmar que, na UPA de Copacabana, sempre fui atendido tão bem quanto em todos os bons hospitais privados que já utilizei em três países. Mas foram atendimentos sem gravidade, em uma única UPA, em um bairro de elite, turístico e icônico, da segunda maior cidade do país, ex-capital e porta de entrada da América Latina. E se fosse câncer na próstata ou faca na barriga, em vez de pressão alta e infecção estomacal? E se fosse no interior do Pará, em vez de na zona sul da cidade do Rio de Janeiro?

Nenhuma das minhas muitas experiências pessoais e anedóticas na UPA de Copacabana me permite fazer extrapolações para o SUS como um todo, em um país de dimensões continentais, duzentos milhões de habitantes e a mais profunda desigualdade.

* * *

Apesar de todas as minhas muitas interações positivas com o SUS, não me sinto abalizado para afirmar que “o SUS é bom”.

Se você me perguntar sobre o SUS, vou te dar mesma opinião que tenho sobre a Guerra na Ucrânia:

— Não tenho conhecimento o suficiente sobre esse assunto para poder emitir uma opinião.

Já as pessoas entre as quais eu cresci continuam não hesitando em bater no peito para afirmar o autoevidente caos no SUS — mesmo sem nenhuma vivência pessoal ou dado estatístico sobre o SUS.

Então, afinal, o que é “saber”? Quanta certeza precisamos ter para podermos afirmar que “sabemos” de algo?

Algumas pessoas leitoras talvez considerem que estou propondo um padrão inalcançável. (Descartes foi acusado da mesma coisa.) Que, de acordo com esse método, seria praticamente impossível formar uma opinião. Que não teríamos nunca como saber nada com certeza.

Mas será que isso é tão ruim assim? Será que já não nos damos ao direito de ter e articular opiniões demais, sobre tudo, o tempo inteiro? Não seria melhor exercermos um saudável estado de não-opinião?*

[*“Exercer a não-opinião” é a décima prática de atenção do meu livro Atenção.]

* * *

O que significa “saber algo”?*

Sempre que acontece alguma tragédia, digamos, a crise financeira de 2008, muitas pessoas dizem que “sabiam”. Mas sabiam mesmo? Muitas podem até ter desconfiado, mas não sabiam. Porque saber significa, por definição, saber algo que é demonstravelmente verdade. Só podemos saber algo se esse algo é, ao mesmo tempo, verdade e, também, cognoscível (literalmente “que pode ser conhecido”). E as pessoas que achavam que uma crise poderia acontecer não podiam realmente “saber” disso, ou conclusivamente demonstrar isso, antes da crise acontecer. Por outro lado, muitas pessoas estudiosas da área, inteligentes e bem-informadas, não achavam que uma catástrofe era iminente, o que já demonstra, no mínimo, que a catástrofe não era cognoscível.

(Como escreve Gavin DeBecker, especialista em segurança, é fácil “prever” que um atentado vai acontecer quando alguém puxa uma arma, aponta e aperta o gatilho; a chave para uma previsão com o mínimo de utilidade é vir cedo o suficiente para dar tempo de fazer algo a respeito.[12])

Essa ideia de que algumas pessoas realmente sabiam antecipadamente que a catástrofe aconteceria é problemática não apenas pelo crédito indevido que recebem alguns especialistas, mas porque perpetua uma ilusão perniciosa: que o mundo é mais cognoscível do que ele realmente é. Nós achamos que entendemos o passado, e, por isso, presumimos que o futuro também é compreensível, mas o fato é que entendemos o passado muito menos do que imaginamos, como demonstra nossa própria linguagem. Por exemplo, nunca falamos “antes da viagem de carro, tive uma premonição que teríamos um acidente na estrada, mas nada aconteceu”, porque naturalmente esquecemos as intuições falhas. A própria frase é tão pouco usual que soa como non-sense.[13]

Nossa incapacidade de relembrar nossas intuições erradas nos faz, primeiro, subestimar o quanto eventos passados realmente nos surpreenderam e, assim, superestimar nossa capacidade de prever eventos inesperados futuros. Somos todas pautadas por um fortíssimo viés de confirmação, ou seja, por uma tendência a acreditar que aquilo que realmente aconteceu era a única coisa que poderia ter acontecido. Não tem como pensar História sem estarmos sempre conscientes dessa limitação.[14]

Uma de nossas principais falhas cognitivas é confiar na memória. Para a maioria de nós, nossas memórias do passado representam verdades fundamentais. Mas elas são muito mais frágeis do que nos parecem. Há 30 anos, a Challenger explodiu na decolagem. No dia seguinte, um professor pediu para as alunas escreverem onde estavam quando souberam da tragédia. Dois anos e meio depois, ele repetiu a pergunta. Nesse meio tempo, grande parte das alunas tinha formado novas memórias: diziam que estavam em lugares diferentes. Quando confrontadas com a descrição que tinham escrito no dia seguinte (!), eles ainda assim se aferraram às novas memórias: “sim, é a minha caligrafia, mas não era aqui que eu estava!”[15]

O que então nos faz ter certeza? A certeza é um sentimento, não uma conclusão lógica: mais importante, é um sentimento social. Para a maior parte de nossas certezas, tudo o que sabemos é que as pessoas mais importantes para nós têm essas mesmas certezas. Se estão tão seguras disso, algum valor deve ter, não?

Minha mãe, quando sugeri que tinha acreditado em mais um boato de Whatsapp, respondeu: “Meu filho, conheço a Tamara há trinta anos, por que ela iria mentir pra mim?” Naturalmente, se perguntássemos pra Tamara, ela diria que a mensagem tinha sido enviada por sua amiga de vinte anos, a Gláucia, e por que a Gláucia mentiria para ela? Etc.

O que a neurociência de ponta está confirmando no século XXI era o que Descartes já intuíra (eu diria, inclusive, “sabia”) no XVII e, por isso, elaborou o seu método de transformar as “verdades sociais do seu grupo” em “certezas pessoais dele”. Hoje, sabemos apenas que o tamanho do cercadinho de certezas que podemos efetivamente construir é ainda mais restrito do que Descartes imaginava, o que deveria nos estimular para agirmos ainda mais deliberadamente em busca de nossas próprias certezas.

[*Subseção baseada em Rápido e devagar, duas formas de pensar, de Daniel Kahneman, publicado no Brasil pela Objetiva em 2012.]

[**As virtudes do medo, de Gavin DeBecker é um dos livros que mais presenteei na vida e eu recomendo sem restrições.]

[***Uma vila de pescadores ficou famosa pela grande quantidade de crianças filhas de pescadores que previu que seus pais se perderiam no mar. Uma investigação revelou que praticamente todos os filhos pequenos de pescadores “prevêem” que seus pais vão se perder no mar. Quando os pais voltavam do mar sãos e salvos, as “previsões” eram esquecidas, nem eram lembradas, de fato. Quando acontecia uma tragédia, as crianças eram consideradas prescientes. Mas todas faziam a mesma previsão, sempre. A história completa está no conto “A falta que nos fazem os figos”, no meu livro Mentiras Reunidas.]

[****Esse será um dos temas mais importantes da Prisão Patriotismo.]

[*****O experimento da Challenger foi conduzido por Ulric Neisser e é citado em diversos livros. Recomendo Being Wrong, de Kathryn Schulz, publicado em 2010.]

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Nossas certezas são sociais*

Se os seres humanos são inteligentes (essa inteligência tão incrível da qual tanto nos orgulhamos e que nos distingue dos animais que massacramos sem a menor cerimônia por não dispor dela) é porque essa característica foi selecionada pela evolução – tanto quanto o radar dos morcegos ou os pescoços das girafas.

Apesar disso, experimentos demonstrando os limites e falhas da nossa inteligência se tornaram lugar comum nas ciências cognitivas: pensamos pouco, pensamos mal, somos fáceis de iludir, tomamos decisões equivocadas, não conseguimos perceber a realidade, etc etc. Mas se nossa inteligência é tão importante, como pode ser tão falha? Se é tão falha, como pode ser tão importante? Na verdade, se a função da inteligência fosse perceber a realidade e descobrir a verdade dos fatos, ela seria falha. Mas não é.

A inteligência humana, tal como foi selecionada pela evolução, serve basicamente para executar duas tarefas, ambas de vida ou morte em pequenos grupos de primatas hiperssociais tentando sobreviver nas savanas da África: criar justificativas para nossas ações e elaborar argumentos para convencer as outras pessoas. Ou seja, nossa inteligência é uma competência social, socialmente construída e perfeitamente adaptada às necessidades sociais que evoluiu para resolver. Só um cérebro com muita capacidade computacional para poder acompanhar quem é amiga de quem, quem está pegando quem, quem odeia quem, em um grupo de dezenas de primatas que precisam trabalhar juntos e que odeiam ficar sozinhos.

Se nossa inteligência muitas vezes “falha” em chegar à “Verdade”, ela é frequentemente muito bem sucedida em nos integrar ao grupo de macaquinhas peladas onde estamos. Esse fato é demonstrado por vários experimentos. Um dos mais interessantes (apavorantes?) é o seguinte: uma facilitadora mostra a um grupo de voluntárias uma imagem com três linhas retas, e depois uma imagem com uma única linha reta, e pergunta, “essa linha individual é equivalente em tamanho a qual dessas três?”

O teste foi elaborado de modo que, em condições normais, a taxa de acerto fosse próxima a 100%: a resposta correta era obviamente a linha C, pois as outras duas eram ou muito menor ou muito maior. Entretanto, só a última pessoa a responder era uma voluntária de verdade: todas as anteriores eram participantes do experimento. Quando todas davam a mesma resposta errada, uma grande proporção das voluntárias preferia ir contra a evidência dos seus sentidos e respondia da mesma maneira.

Mais tarde, na entrevista pós-teste, muitas voluntárias tentaram afirmar sua autonomia e disseram ter fingido conscientemente concordar com a resposta dominante, seja por razões políticas, por cautela, para não antagonizar o grupo inteiro, para não chamar atenção para si, porque acharam que não tinham entendido direito as instruções, para não desagradar os organizadores, etc. Como veremos na Prisão Respeito, esses são exatamente os motivos que as pessoas mais usam para justificar seu conformismo e sua obediência, mesmo em situações de violência e injustiça, mesmo contra seus próprios interesses. Aqui na Prisão Verdade, porém, quero falar sobre como nossa inteligência e, portanto, nossa percepção da realidade, são coletivas.

Além das pessoas conformistas acima, uma parcela grande das voluntárias estava plenamente convencida da resposta evidentemente errada que tinham dado. Ao longo do experimento e da discussão, foram sendo cooptadas sem nem se dar conta e, ao final, sinceramente acreditavam em uma resposta flagrantemente contra a evidência dos seus sentidos.**

A princípio, parece um experimento apavorante: “é por isso que as pessoas são tão ingênuas”, etc. Mas, digamos, maioria de nós nunca viu um micróbio. Para mim, na prática, o vírus do Covid-19 é como se fosse o bicho-papão: um ser lendário, que nunca vi, que os mais velhos dizem que existe para me assustar, e que demanda de mim certas ações, como dormir cedo e usar máscara, não deixar o pé pra fora da cama e tomar vacina. Mas acredito que o vírus existe, e uso máscara e tomo vacina, porque confio que a sabedoria dos anciãos da tribo (nesse caso, a comunidade científica) vale mais que a evidência empírica dos meus sentidos individuais.

Uma amiga querida sofria alucinações muito vívidas e, essas sim, apavorantes. De repente, estava na sala de aula e via cobras deslizando por entre as pernas das alunas. E o que a salvava de sair correndo gritando desesperada era justamente confiar mais na sabedoria coletiva do grupo do que em seus sentidos individuais. É possível que uma cobra tenha entrado na sala? Sim, claro, estamos no Brasil. Mas é possível que uma cobra tenha entrado na sala e esteja deslizando pelo chão tranquilamente sem que ninguém tenha feito um escândalo? Não. Então, enquanto estiver todo mundo calmo e tranqüilo, é porque é só uma alucinação e vou segurar aqui minha onda, pois já vai passar. E passava. Se a turma toda agia como se não houvesse uma cobra na sala, ela também iria agir como se não houvesse uma cobra na sala, mesmo ela vendo a cobra ali, ao vivo e a cores, se enroscando pelas pernas da mesa.

Nossa inteligência, perfeitamente bem adaptada ao nosso cotidiano de primatas hiperssociais, pode até não ser perfeita, mas, para os fins que se propõe, para os problemas que se adaptou para resolver, funciona muito bem, obrigada. Aquilo que antes parecia um defeito agora se revela uma vantagem. Achávamos que o martelo era uma ferramenta falha porque estávamos tentando usá-lo para passar roupas. Mas não é pra isso que ele serve.

O que nos resta? Conscientes de o quanto somos propensas a concordar com as posições de nosso grupo, podemos (tentar) observar esse mecanismo em funcionamento. Algumas vezes, de fato, como as participantes conformistas, será mais prudente e mais político concordarmos com as opiniões da maioria, mesmo que discordemos delas. Afinal, não dá para tudo ser uma batalha. Em outras, poderemos escolher com mais cuidado e mais deliberação aqueles preciosas ocasiões em que vamos decidir fincar o pé e impor limites à nossa família, ao nosso grupo, ao mundo.

[*Subseção baseada em The enigma of reason: a new theory of human understanding, de Hugo Mercier e Dan Sperber.]

[**Esse experimento foi conduzido por Solomon Asch em 1951, e é abordado em diversos livros, como Self Illusion, de 2012, escrito por Bruce Hood e Being Wrong,, de 2010, escrito por Kathryn Schulz. Stanley Milgram, que depois realizou um dos mais importantes experimentos sobre obediência e conformismo, não por acaso foi assistente de Asch. Mais sobre isso na Prisão Respeito.]

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Ler mais para saber menos, ler menos para saber mais*

Uma professora de História recomendava: se quiséssemos nos informar mais sobre algum assunto, deveríamos ler pelo menos dois livros inteiros sobre o tema. Por exemplo, para saber como Euclides da Cunha narraria a Guerra de Canudos, quais recortes escolheria, quais aspectos enfatizaria etc., poderíamos ler Os sertões. Mas, para nos informar minimamente sobre a Guerra de Canudos em si, precisaríamos ler, pelo menos, mais um livro sobre o assunto.

Para escrever a Prisão Verdade, por exemplo, reli o Discurso do método (1637) e as Meditações sobre filosofia primeira (1641), de Descartes. Li também quatro livros sobre ele, desde introduções como Descartes em 90 minutos (1996), de Paul Strathern, até o magistral Descartes: The project of pure enquiry (1978), de Bernard Williams**, passando por Descartes, de Margaret Wilson, e Descartes: Belief, scepticism and virtue (2001), de Richard Davies. Cito esses títulos não apenas para dar a bibliografia da Prisão Verdade, mas para levantar a seguinte questão: somente o livro de Williams, vastamente superior e realmente um clássico, já teria sido mais do que suficiente para eu escrever o meu texto. Mas aí eu seria refém da leitura de Williams de Descartes, por melhor que essa leitura fosse.

Então, quando eu escrevesse sobre Descartes aqui na Prisão Verdade, mesmo se o resultado final do texto fosse idêntico para as pessoas leitoras, eu estaria de fato canalizando o Descartes de Bernard Williams, visto através do prisma dos interesses e das limitações, dos preconceitos e da biografia de Bernard Williams. Se eu só tivesse lido Williams, o Descartes de Alex Castro estaria contido no Descartes de Bernard Williams.

Mas quero falar do meu Descartes, visto através do prisma dos meus interesses e das minhas limitações, dos meus preconceitos e da minha biografia. Eu me compadeço da morte de sua única filha, aos cinco anos; me revolto por ele ter finalmente aceito o convite da Rainha da Suécia, só para morrer lá, de frio, aos meros 53 anos; discordo violentamente da separação que faz entre mente e o corpo (quando falo que “você é o que você faz”, estou sendo radicalmente anti-cartesiano – sobre isso, leiam O erro de Descartes [1994], de António Damásio); considero que a maneira como prova a existência de Deus é tão desastrada, tão destoante do resto da sua obra, que não dá para saber se ele realmente tinha tanta fé que não percebeu que o seu método desprovava a existência de Deus, ou se foi apenas para evitar represálias da Igreja e fugir do destino de Galileu. Mais do que tudo, quero falar do Descartes que propôs o Método Cartesiano de ceticismo sistemático que eu, aqui do meu jeito torto e limitado, tento utilizar até hoje.

Ler apenas um livro dá uma falsa sensação de conhecimento. Passamos de não saber nada para saber muito sobre a Guerra de Canudos em poucos dias. Chega a ser inebriante e tentador pensar que “agora sim conheço a Guerra de Canudos!”. Mas não. Conhecemos apenas o recorte específico, as perspectivas e as opiniões, daquela pessoa autora sobre a Guerra de Canudos. E olhe lá. Ler um segundo livro sobre o mesmo assunto quebra esse efeito. Provavelmente, ambos os livros vão dialogar entre si, trocar citações ou trocar refutações, trocar elogios ou trocar farpas. De repente, nos damos conta de que a história da Guerra de Canudos não é tão simples quanto pensávamos, que existe muita discordância mesmo entre as pessoas que realmente conhecem a Guerra de Canudos, que a história da Guerra de Canudos ainda está sendo escrita e reescrita. Aquela interpretação sobre Antônio Conselheiro que nos parecia tão sólida e pouco problemática (empolgadas e inocentes, até citamos para as amigas!) é justamente a interpretação que o segundo livro desconstrói impiedosamente. E vice-versa.

No caso da Prisão Verdade, várias afirmativas bobas que eu teria feito sobre Descartes foram abortadas e nunca chegaram ao meu texto final, por eu ter percebido, lendo um livro contra o outro, que filósofos muito mais inteligentes que eu já vinham discutindo aquela questão há séculos sem conseguir chegar a um acordo.

Leiam mais de um livro sobre o mesmo assunto, ensinava a professora, não para saberem mais sobre o assunto, mas para se darem conta de sua enorme ignorância sobre o assunto.

* * *

Uma outra professora, essa de Filosofia, quando lhe pedi por recomendações de leitura antes das férias de verão, respondeu o seguinte:

— Quanto tempo, em média, você passaria lendo um livro de, digamos, duzentas páginas? Oito, dez horas ao longo de quatro, cinco dias? Então, economize o valor do livro, encontre um lugar tranquilo em sua casa e ocupe esse tempo fazendo a jardinagem do seu cérebro, podando galhos, arrancando ervas daninhas. Quantos preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares-comuns você não tem aí dentro? Em vez de absorver mais e mais novas verdades, em um verdadeiro frenesi acumulativo cultural, coloque o lixo para fora. Em vez de ler, “desleia”. Em vez de aprender, desaprenda.

[*Essa subseção reelabora trechos da nona prática de atenção, “Abraçar a não-certeza”, do meu livro Atenção.]

[**Para as pessoas que talvez tenham ficado confusas com a diferença entre os conceitos de Verdade, certeza e conhecimento utilizados no meu texto, recomendo o livro de Bernard Williams com mais ênfase ainda.]

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A única inteligência que importa é a coletiva*

O quanto nós sabemos do que sabemos? O quanto do nosso conhecimento é realmente nosso?

Por exemplo, em uma escala de 0 a 10, como você classificaria o seu conhecimento sobre como funciona uma descarga de privada? Se tiver se dado uma nota alta (quase todo mundo se dá), agora tente descrever para si mesma, sem olhar na internet e sem consultar nada, com o máximo de detalhes possível, esse funcionamento: o que acontece de fato quando se aperta o botão?, qual é o mecanismo?, etc. Nesse momento, a maioria das pessoas se dá conta que realmente não faz ideia como funciona uma privada. Aliás, não sabemos. Eu também não sei. E sim, eu também achava que sabia.

(Exemplo de uma boa descrição, escrita por Fernando Badô e publicada no site da revista Superinteressante em 18 de abril de 2011: “O primeiro componente essencial ao funcionamento de uma privada é o sifão. Esse tubo curvado faz com que o nível de água no vaso fique sempre constante. Se você fizer xixi, por exemplo, a água sobe até a curva do tubo e depois já escorre para o esgoto. Hora do aperto: alguém apertou a descarga. O botão aciona um sistema de alavancas que puxa um tampão no fundo da caixa d’água da privada. Com o buraco aberto na base da caixa d’água, a água escorre em direção ao vaso com toda a velocidade. A água liberada pela descarga percorre um cano circular, construído na própria cerâmica do vaso sanitário. Esse cano é todo furadinho, o que faz com que a água seja despejada igualmente por toda a volta do vaso para limpar as paredes internas da porcelana. A força da descarga cria um redemoinho na água da privada, fazendo com que toda a sujeira seja varrida do vaso e procure um lugar para onde escoar. A única saída para os 6,8 litros de água e excrementos é seguir em direção ao sifão. A energia do jato de água faz com que a água da descarga flua rapidamente pelo sifão, levando os detritos embora. Depois, a água volta a ficar na mesma altura no sifão e no vaso, mantendo o nível da água constante e impedindo que o cheiro do esgoto invada o banheiro. Depois da descarga, é hora de encher de novo. Com o tampão já de volta ao fundo da caixa d’água, a água começa a preencher o recipiente até que uma alavanca presa a uma boia trave a entrada de água, interrompendo o enchimento quando ela estiver cheia.”)

O fato de usarmos privadas todos os dias cria em nós uma falsa sensação de que “sabemos” como a descarga funciona. Na verdade, sabemos só que temos que apertar o botão para obter o efeito desejado, e praticamente mais nada. Outras pessoas, poucas pessoas, detém esse conhecimento e, graças a elas, todas nós usufruímos dele.

Nossa inteligência, nossa verdadeira inteligência, não reside em nossos cérebros individuais, mas sim na nossa mente coletiva. Para funcionarmos enquanto pessoas, dependemos não só do conhecimento depositado em nossos cérebros, mas, especialmente, nos conhecimentos depositados nos cérebros de outras pessoas. Em uma sociedade complexa como a nossa, nenhuma única pessoa conseguiria dominar nem cada detalhe de uma única coisa, nem das menores. Até os objetos mais simples exigem uma vasta e complexa rede de conhecimentos para serem idealizados, fabricados, testados, transportados, utilizados, descartados.

Uma de nossas maiores limitações mentais é justamente nossa dificuldade em separar, de um lado, o “conhecimento que está na nossas cabeças” e, do outro, o “conhecimento que está disponível para nós” em nossa “comunidade de conhecimento”. É como se a única maneira de funcionarmos em um universo tão complexo, tão incognoscível, fosse efetivamente ignorando essa complexidade e superestimando nossa minúscula inteligência. Achamos que entendemos o universo porque seria intolerável nos darmos conta de que não entendemos quase nada.

Nossa verdadeira inteligência, portanto, não é nossa inteligência individual, tão pequena, tão limitada, mas nossa inteligência coletiva. Nosso cérebro teria evoluído sob pressão de nossos grupos sociais, ficando mais desenvolvido quanto maiores e mais complexos ficavam nossos grupos humanos. A principal vantagem evolutiva do ser humano, portanto, seria não nosso cérebro individual, mas sim nosso cérebro social, nossa capacidade de compartilhar nossa atenção com outros seres humanos, de trabalharmos juntas em prol de um objetivo em comum. Não fomos feitos para sermos mestrqs do conhecimento individual, mas sim para participar melhor, de forma mais útil, de comunidades.

O que mais nos aprisiona na Prisão Verdade não é tanto nossa ignorância em si – que é constitutiva; de fato, sabemos quase nada – mas o autoengano que nos faz não perceber o quanto somos ignorantes.

[*Subseção baseada em Knowledge Illusion: Why We Never Think Alone, de Steven Sloan e Philip Fernbach.]

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O otário é seguro de si

Um dos meus hobbies é colecionar golpes e contos do vigário. Hoje em dia, as vigaristas estão ficando cada vez mais sofisticadas e cruéis. Ainda assim, grande parte dos golpes depende da colaboração da pessoa otária. E nada é mais definidor da pessoa otária do que sua certeza de não ser otária.

Uma conhecida comprou um iTralha novinho, última geração, na caixa, em um site de classificados, por apenas 800 reais. Recebeu uma caixa de pedregulhos. Quando foi reclamar, malandro já tinha sumido. Por que essa pessoa, tão inteligente em tantas coisas, caiu nesse golpe tão banal, tão previsível? Porque, em alguma medida, ela via as outras pessoas comprando seus iTralhas por vários mil reais na loja autorizada e pensava: “Vou lá eu ser otária de pagar esse dinheirão num iTralha? Nada! Eu tenho um esquema, eu conheço um site, eu dou meu jeito, eu sou esperta.”

Naturalmente, quando se compra um iTralha novinho, última geração, na caixa, por 800 reais, dá pra saber com certeza que teve malandragem, desonestidade, crime na história: porque não existe jeito honesto da pessoa obter um iTralha novo por esse preço. Então, das duas, uma: ou o malandro roubou esse iTralha de alguma pessoa otária, ou a otária é você.

Mas o que define a otária é a sua certeza de não ser otária. Ao comprar o telefone, a pessoa (convicta da sua não-otarice e se achando muito esperta) está implicitamente aceitando ser cúmplice do crime sofrido pela outra otária — não tão esperta quanto ela. O que ela nunca pensa é: “Hmm, se ele deu o golpe nessa outra otária, por que ele não daria um golpe em mim também?” E ela não pensa isso porque tem certeza que a otária não é, nunca poderia ser ela. Ao ter certeza de que não é otária e de que otárias são as outras, porém, a pessoa se torna a proverbial otária e cai no golpe. Nunca houve a “primeira otária”: a única otária sempre foi só ela.

Paradoxalmente, a pessoa que sabe que é otária, ou que desconfia que pode ser, nunca cai em golpes como esse: “Poxa, moço, um iTralha novinho, última geração, na caixa, por 800 reais, é tentador, né? Quase bom demais pra ser verdade! Mas, ó, não posso não, sou meio bobo, sabe, otário mesmo, fico caindo em golpes, já perdi tanto dinheiro, o senhor nem imagina!, minha esposa nem me deixa mais comprar essas coisas sem falar com ela, prefiro mesmo comprar na autorizada, pagando caro, sabe como é, mais seguro!”

Só é otária quem acha que não é. Quem acha que é, jamais será. Malandragem é metapoesia pura. E uma aula de ceticismo prático.

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Somos péssimas juízas de nós mesmas*

Somos péssimas juízas de nós mesmas: além de indulgentes, levamos excessivamente em conta nossas intenções. Já as outras pessoas têm a enorme vantagem de nos analisar somente por nossas ações.

No meu dia a dia, nas interações cotidianas com as pessoas, me vêm à mente dezenas de respostas ácidas, comentários grosseiros, patadas engraçadinhas, e eu, pessoa autocontrolada e bem-educada que sou, censuro quase todas antes de serem ditas. Então, antes de dormir, olhando para trás e pensando em todas as grosserias que, ao custo de muito esforço, não verbalizei, eu penso, satisfeito comigo mesma:

— Hoje, consegui não ser uma pessoa rude.

Mas a palavra-chave é quase.

Júlia, uma de minhas melhores amigas por mais de quinze anos, se dizia às vezes envergonhada pela minha rudeza. De início, esse comentário me horrorizava, eu me sentia um pobre injustiçado:

— Rude, eu?! Depois de tanto trabalho que tive o dia todo?! Depois de não xingar o cara que me cortou no trânsito?! Depois de não brigar com a garçonete que me sujou de café?!

Mas Júlia, ao contrário de mim, não tinha acesso às dez grosserias filtradas pela minha autocensura naquele dia, mas somente às duas patadas que eu não tinha conseguido segurar. Para ela, portanto, eu não era a pessoa autocontrolada e bem-educada que se abstivera de verbalizar dez grosserias — “Toma um biscoito, você merece!” —, mas sim a pessoa rude que, em um único dia, dera duas patadas grosseiras e gratuitas.

Não importa se passei décadas e décadas todos os dias nunca matando ninguém: basta passar alguns poucos segundos matando alguém e sou uma assassina. O que importa é o que eu faço.

[*Essa subseção reelabora trechos da nona prática de atenção, “Abraçar a não-certeza”, do meu livro Atenção.]

* * *

Não existe nenhuma Verdade a descobrir dentro de nós*

Não faz sentido falar em “autoconhecimento” ou “autodescobrimento”. Ao contrário da América, que já estava ali, concreta e existente mesmo antes de Cristóvão Colombo, o nosso verdadeiro Eu não está aqui, dentro de nós, deitado em berço esplêndido, só esperando para ser descoberto. E assim como Colombo não descobriu a América, pois ela já tinha sido descoberta e ocupada milhares de anos antes, não temos como “embarcar em uma viagem de autodescobrimento pessoal”, porque não existe nada para descobrir.

Ou melhor, existe sim. Dentro de nós, esperando para ser descoberto, existe o lixo dos séculos, acumulando e fedendo: gostos culturais, regras arbitrárias, fatos errados; o racismo e o machismo, os mais odiosos preconceitos, as mais imbecis superstições, a Outrofobia. Se olharmos dentro de nós e “autodescobrirmos” ou “autoconhecermos” que somos um homem branco hétero que não sente atração por mulheres negras, ou uma pessoa sudestina que acha que as baianas são preguiçosas, ou uma mulher que não consegue se achar bonita com pelos nas axilas… o que isso diz sobre nós enquanto pessoas? Rigorosamente nada. Por outro lado, diz muito sobre a sociedade onde crescemos e sobre as forças culturais às quais fomos expostas.

Se não há nada de essencial ou preexistente dentro de nós a conhecer ou a descobrir, há sim um infinito potencial a se construir. Nossa viagem não é nem de autoconhecimento, nem de autodescoberta, mas de autoconstrução. Nesse universo vasto e ilimitado, povoado por incontáveis seres sencientes, quanta importância escolhemos dar ao nosso Eu? Nesse mundo canalha e egoísta, quem queremos nos construir para ser?

[*Essa subseção reelabora trechos da décima oitava prática de atenção, “Desapegar do Eu”, do meu livro Atenção.]

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O que importa é o que fazemos*

Temos enorme dificuldade em perceber nossos próprios processos internos, tanto mentais quanto emocionais. Por isso, muitas vezes, quem está nos observando de fora, ou seja, nos avaliando por nossas ações de fato e não por nossas autojustificativas, consegue saber o que estamos sentindo melhor que nós mesmas – que nós autojulgamos com base em uma infinidade de informações que, muitas vezes, mais atrapalham que ajudam. Afinal, nós somos o que fazemos, não o que pensamos de nós mesmas.

Boas corretoras imobiliárias, por exemplo, prestam mais atenção na linguagem corporal de potenciais clientes do que naquilo que falam. Nada é mais comum, dizem as corretoras, do que clientes que dizem querer, por exemplo, uma casa antiga, mas que só de fato demonstram empolgação quando visitam apartamentos novos. Não é que as pessoas tenham mentido intencionalmente para a profissional que está procurando seu imóvel: é que elas, de fato, não sabem o que querem. E quem realmente sabe?

Nós não sabemos o que queremos e não sabemos o que sentimos. Quando sabemos, não conseguimos articular verbalmente. Quando conseguiríamos, não ousamos, porque temos vergonha, porque queremos agradar, porque pegaria mal, porque magoaria alguém. Se afirmamos amar espinafre mas nunca compramos espinafre, nunca colocamos espinafre no prato e, quando o prato vem com espinafre, não comemos… então, não amamos espinafre. Talvez até sinceramente acreditemos que amamos. Talvez até queiramos amar. Mas não amamos. Pelo menos, ainda não. Aquilo que fazemos (não comer espinafre) importa mais do que aquilo que falamos (“amo espinafre!”).

Nossa inteligência evoluiu, como vimos, para inventar explicações sofisticadas (e falsas) que justifiquem nossos comportamentos. O problema é que, depois, muitas vezes, elas passam a ditar a pauta de futuras emoções. Uma pessoa que terminou uma relação amorosa a contragosto, ou com muitas dúvidas, ainda gostando muito da ex-parceira, muitas vezes, para se sentir menos insegura por ter escolhido o término, vai construindo ao longo do tempo mais e mais razões lógicas e razoáveis para fundamentar a decisão que tomou e, assim, acaba desenvolvendo um ranço retrospectivo pela ex – fruto mais da necessidade de reafirmar sua decisão do que de qualquer falha da outra pessoa.

Nossos processos cognitivos tendem a encarar aquilo que sabemos que aconteceu como sendo mais previsível e inevitável do que era ou nos parecia antes que acontecesse. Ou seja, se terminei com ela, era óbvio que eu teria terminado com ela, esse relacionamento não tinha nenhum futuro. (É por causa desse mecanismo mental, aliás, que eu, como historiador, acho tão importante fazermos também uma história contra-factual das coisas que poderiam ter acontecido.)**

Uma velha teoria das emoções, formulada pelo psicólogo William James há mais de cem anos, vem sendo reabilitada pela neurociência: choramos não porque estamos tristes, mas ficamos tristes em resposta ao nosso choro; sinto frio porque percebo que estou tiritando os dentes, etc. No exemplo clássico de James, ao topar com um urso na floresta, não saímos correndo porque estamos com medo: primeiro, saímos correndo; depois, elaboramos retroativamente esse medo como explicação para nossa corrida desabalada. Ou seja, mais uma vez e sempre, somos o que fazemos.

Justamente por isso, outras pessoas muitas vezes conseguem avaliar melhor o que alguém está sentindo do que ela mesma, porque observam o que a pessoa de fato está fazendo enquanto a própria pessoa se perde em introspecções imprecisas, ou severas ou indulgentes. Não é a toa que, muitas vezes, em escolas e escritórios, as colegas já sabem que duas pessoas estão atraídas uma pela outra antes que elas mesmas se dêem conta. (Nossa percepção de macaquinhas gregárias e fofoqueiras nos adaptou para sermos particularmente eficientes em detectar qual macaquinho está pegando qual.)

Por isso, se existe alguma fonte de autoconhecimento realmente verdadeira, realmente útil ela seria não o mergulho em nós mesmas, ou uma introspecção autocentrada e traiçoeira, mas sim a observação de nossos próprios comportamentos, de maneira fria e objetiva, como outra pessoa nos observaria. E, então, ao mudar o modo como agimos estaríamos de fato mudando quem somos. Afinal, de novo e sempre, o que importa é o que fazemos. A verdade de quem somos é a verdade daquilo que de fato fazemos.***

Olhar dentro de nós serve não para autoconhecimento, ou seja, para descobrirmos “a verdade” sobre nós mesmas (que não existe) mas para autoconstrução, ou seja, para construirmos uma narrativa que dê conta da nossa experiência de pessoas humanas. Uma introspecção saudável, portanto, seria um trabalho não de arqueologia (a descoberta de uma verdade há muito enterrada etc) mas sim de crítica literária, onde nós mesmas, nossas ações, processos, sentimentos, seríamos o texto a ser interpretado. E uma das premissas da boa crítica literária é que não existe uma única verdade a ser descoberta em nenhum texto: pelo contrário, ela é a criação de uma nova verdade a partir daquele texto. Do mesmo jeito, uma introspecção saudável não seria uma viagem de descoberta, mas de autoconstrução, para criarmos, a partir de nós mesmas, uma narrativa que seja útil, significativa, benéfica para a pessoa que decidimos ser. Como toda autonarrativa é por definição ficcional, não existiriam autonarrativas verdadeiras ou falsas, mas somente mais úteis ou menos úteis, mais benéficas ou menos benéficas, para o projeto de pessoa que estou tentando me construir para ser.

Ironicamente, o objetivo de uma boa autonarrativa é permitir um certo desapego de nós mesmas. Qualquer autonarrativa que me faça continuamente ruminar as mesmas questões não é algo que me faz bem. Por outro lado, se eu consigo explicar para mim mesma uma experiência traumática de modo que ela não precise mais ser ruminada e reelaborada, então, posso enfim me libertar: ela deixa de ser algo que acontece em minha mente todo dia, toda hora, no presente, agora, para se transformar em algo que me aconteceu, uma vez, na história da minha vida, lá atrás.

Digamos que minha esposa me abandonou de repente sem me dar explicações. Uma autonarrativa possível é que fiz algo de péssimo, tão péssimo que ela nem quis me explicar, só fugiu. O problema dessa autonarrativa é que, verdadeira ou falsa, ela tende a consumir minha vida e dominar meus pensamentos por meses ou anos. Mas o que pode ter sido? Por que ela não me deu uma chance? E se eu perguntar a ela o que eu fiz?, etc. Uma autonarrativa mais benéfica é aquela que me permite, para bem ou para mal, desapegar dessa história, parar de ruminá-la e seguir com a minha vida. Pode ser desde “fiz o meu melhor, se não foi o suficiente para ela, paciência: se ela foi embora sem nem falar comigo, também não era a pessoa que eu achava que era” até “sou uma pessoa difícil, fiz tantas coisas que poderiam ter causado essa fuga: bem, ela tinha direito de ir embora, agora cabe a mim tentar ser uma pessoa melhor em futuros relacionamentos”.

A chave é sair de mim: uma pessoa saudável e bem-resolvida não é a que faz tudo certo (quem seria essa pessoa?) ou, pior, a que acha que faz tudo certo (quem teria um ego tão grande?) ou até mesmo aquela com quem só aconteceram coisas boas (ninguém tem tanta sorte), mas sim quem está em paz com sua história de vida, tanto os altos quanto os baixos, e com suas escolhas, tanto as certas quanto as erradas. Chamamos essas pessoas de bem-resolvidas justamente porque não passam o tempo todo se resolvendo, ou seja, pensando obsessivamente em si mesmas, em quem são, no que fizeram e no que erraram, no que lhes fizeram ou como erraram como elas. Pelo contrário, seu foco é em como agir melhor no futuro, de agora em diante. De um modo ou de outro, o objetivo de uma autonarrativa de sucesso é me libertar da prisão de mim mesmo, da minha obsessão narcísica comigo, com meu ego, com meus traumas, com meus pensamentos.

Penso sempre em uma pintora que foi estuprada três vezes ao longo de sua vida. Não é uma questão de perdoar nossos agressores, ou de se iludir que esse nosso mundo terrível é belo e justo, mas de decidir como será nossa vida daqui pra frente. Quando perguntaram à pintora como se recuperou, ela respondeu:

“Em um dado momento, temos que escolher quem permitimos que nos influencie. Eu poderia me permitir ser influenciada pelos três homens que me fuderam contra a vontade, ou podia escolher ser influenciada por Van Gogh. Escolhi Van Gogh.”****

[*Subseção baseada em Strangers to ourselves: discovering the adaptive unconscious, de Timothy D. Wilson, com alguns trechos da 19ª prática de atenção, “Escolher agir com cuidado”, do meu livro Atenção.]

[**Desenvolvo esse tema na Prisão Patriotismo.]

[***Desenvolvo essa ideia mais a fundo na 19ª prática de atenção, “Escolher agir com cuidado”, do meu livro Atenção.]

[****Essa história está em Pequenas delicadezas, de Cheryl Strayed, publicado em 2012.]

* * *

A certeza é uma sensação*

Nossa certeza, não interessa o quão certa nos pareça, não é fruto nem de uma escolha consciente, nem de um processo mental racional, mas sim um estado involuntário, como o amor ou a raiva, que funciona independente da razão e traz consigo uma terrível dissonância cognitiva: quanto mais estamos certas de uma coisa (e sabe-se lá como chegamos a essa certeza!), mais vamos nos aferrar a ela, mesmo contra todas as evidências.

Nesse ponto, alguma pessoa leitora poderia argumentar que talvez não suas emoções, ou suas intuições, ou seus gostos, mas, por favor, suas certezas são sim racionais. Como não seriam?

Afinal, toda questão realmente importante é importante demais para ter respostas simples. Sempre existe um outro lado. Então, deixada por si só, toda reflexão mais complexa tenderia à uma espiral infinita de um “sim, mas” girando em torno de outro, e mais outro, até a pessoa morrer de fome, paralisada no chão da caverna. Para que nossa espécie fosse viável se fazia necessário um interruptor mental para parar essas ruminações infinitas e acalmar nosso medo de não estarmos vendo alguma alternativa melhor para resolver nossos problemas. Tem que haver algo para sinalizar que parou a hora de pensar e começou a hora de agir, algo que não pode ser um novo pensamento racional, ou voltaríamos à estaca zero. Esse algo é a nossa sensação de certeza – não um pensamento, não uma conclusão lógica, mas uma sensação. Assim como a saciedade do meu estômago me informa que posso parar de comer, essa saciedade mental me informa que posso, enfim, parar de pensar. Já cheguei em algum lugar. Hora de levantar daqui e fazer alguma coisa.

Ninguém se sente um fracasso por não conseguir dar saltos de três vezes nossa altura (triviais para qualquer pulga), nem essa limitação nos impede de dar nossos pulinhos de poucos centímetros. Sentimos com clareza e com tranqüilidade quais são nossas limitações físicas e tudo bem. Mas não as mentais. Vivemos tomadas de uma certeza completamente ilusória de que estamos no controle de nossos pensamentos e de nossas certezas, que somos seres racionais que escolheram racionalmente nossas escolhas. Não nos ofenderíamos se alguém dissesse que não nadamos tão bem quanto um golfinho, mas ai de quem ousar afirmar que todas nós temos uma forte tendência a acreditar em fake news que confirmem o que já pensamos: “Eu não! Eu sou racional! Quem acredita em qualquer coisa é o outro lado!”

Nossa maior limitação mental, ironicamente, é não perceber nossas limitações mentais. Aliás, são nossas limitações mentais que nos impedem de perceber nossas limitações mentais.

Uma das muitas utilidades do método científico é separar com clareza, de um lado, aquilo que sei porque sinto que sei e, de outro, aquilo que sei porque consegui comprovar cientificamente e posso demonstrar se necessário. Quem não consegue entender essa diferença acaba caindo na ilusão das evidências anedóticas, como dizer “ah, homeopatia funciona, porque funcionou em mim”, sem se dar conta que tudo “funciona”, até não fazer nada vai funcionar em boa parte dos casos.

Nossos sentimentos de certeza ou convicção, essa sensação de que sabemos algo, que realmente sabemos algo, não são conclusões racionais ou escolhas deliberadas, mas exatamente, como dito, sensações. Qualquer ideia ou certeza que tenhamos, e que não possa ser comprovada independentemente, deve ser considerada uma opinião pessoal.

Ou, se preferirmos, uma hipótese de trabalho.

[*Subseção baseada em On Being Certain, de Robert Alan Burton.]

* * *

Toda certeza é uma hipótese

Descartes tinha uma confiança em sua racionalidade que nós, no século XXI, para bem ou para mal, já não temos. Seu método cartesiano de ceticismo sistemático ainda me parece eminentemente válido — de fato, necessário — tanto que escolhi abrir o Livro das Prisões com ele. Mas, sim, precisa ser matizado.

Para Descartes, a razão humana era um dom de Deus, um pedaço da sabedoria divina colocada em nós para que pudéssemos melhor compreender esse universo criado por Deus para nosso usufruto. Em teoria, nada, no livro da vida criado por Deus para nós, estaria fora do alcance do nosso entendimento.

De lá para cá, muita gente trabalhou duro para nos escorraçar desse pedestal. Até pouco tempo atrás, era autoevidente que nossa razão servia para apreendermos corretamente a realidade e resolvermos problemas. Em teoria, a evolução teria favorecido os seres humanos mais inteligentes, melhores em apreender a verdade do mundo e em resolver seus desafios. Cada vez mais, entretanto, novos estudos indicam que nossa razão é muito mais social do que lógica, muito mais coletiva do que individual.

Como conciliar, então, um método filosófico individual, como o de Descartes, com nossa inteligência necessariamente coletiva e social? Todo o Livro das Prisões estará sempre dançando no fio dessa navalha. Como ser individualista sem virar o rosto ao coletivo? Como pensar coletivamente sem perder nossa individualidade?

Talvez mais importante: como analisar nossas certezas, identificar Prisões, buscar uma vida mais significativa… se nossa principal ferramenta, nossa consciência, nossa razão, nossa inteligência é, se não falha (como vimos, ela é perfeita para o que se propõe), pelo menos tão inadequada para esse propósito? Como combinar, de um lado, a introspecção necessária para tomarmos decisões importantes em nossas vidas e, de outro, a consciência de que nossa percepção de nós mesmas, e da própria realidade, é tão limitada?

Mas a verdade é que só temos o que temos. Ou vamos nos render às nossas limitações e viver uma vida irrefletida, ou vamos tentar seguir o exemplo de Sócrates e viver uma vida examinada, mesmo se o final for um copo de veneno. É possível sermos 100% objetivas e racionais em nossas certezas? Não. Mas, ainda assim, precisamos escolher um caminho e um trabalho, pessoas para dividir nossas vidas ou quais pratos comer no almoço.

Se projeto que estou propondo nesse livro é identificar as Prisões que nos limitam, a primeira delas é justamente o nosso apego às verdades que recebemos e até mesmo às certezas que construímos. E a única maneira de tentar fugir dessa armadilha é sempre lembrando:

Toda certeza, na verdade, é apenas uma hipótese de trabalho.

Mas, por outro lado, o ceticismo, esse individualismo filosófico levado ao extremo, pode facilmente virar uma prisão. As pessoas se tornam terraplanistas não por serem crédulas que acreditam em tudo (se fossem, “acreditariam” na narrativa da terra redonda sem pensar duas vezes) mas por serem céticas que, talvez até aplicando o método cartesiano, não confiam nessa “sabedoria imposta pelos experts” e “tomam posse do conhecimento”. Paradoxalmente, portanto, são as pessoas mais céticas e mais cínicas que tendem a se tornar as maiores crédulas e ingênuas.

Para bem ou para mal, não há como fugir ao fato de que somos uma espécie gregária. Nosso maior diferencial, enquanto espécie, não é nem nossa inteligência, nem nossa linguagem, nem mesmo nosso polegar opositor, mas nossa capacidade de trabalhar juntos em equipe. Pelo contrário, nossa inteligência, nosso polegar opositor, até mesmo nossa linguagem, foram selecionados evolutivamente pois favoreciam maior coesão social. Nossa inteligência se desenvolveu não para “descobrir a verdade” ou “resolver problemas lógicos”, mas sim para convencer e agradar as outras pessoas do nosso grupo. Nossa linguagem se desenvolveu não para “gritar comandos” ou “descrever o mundo”, mas sim para fofoca, networking e autopromoção.*

Não podemos escolher não sermos pautadas por nossos grupos, mas podemos (em larga medida) escolher em qual grupo queremos estar. Quem tem amigas fumantes ou vegetarianas já está, para bem ou para mal, a meio caminho de se tornar fumante ou vegetariana. Não existe inteligência individual: nossa inteligência é coletiva e reside fora de nós, terceirizada em nossos amigos, familiares, parentes. Em nosso grupo, enfim.**

Uma pessoa terraplanista não é necessariamente mais burra ou mais crédula do que uma “terrabolista”: apenas escolheu confiar em experts diferentes. Todas nós confiamos em experts que nos certificam da “verdade” de uma série de conhecimentos que jamais teríamos como comprovar empiricamente. (Os conhecimentos que temos como comprovar e tornar nossos são uma fração minúscula.) Então, de certo modo, a decisão mais importante da vida é: Qual grupo escolheremos para pautar nossas vidas, nossos hábitos, nossas verdades? Em quais experts confiaremos para terceirizar nossos conhecimentos?

Ao escolher ler esse livro e não outro, você está permitindo que minhas palavras e pensamentos te influenciem de maneiras completamente inesperadas que nem eu nem você podemos prever. Tem certeza que quer mesmo fazer isso? Foi uma decisão consciente ou pegou esse livro a esmo? Se você ler o livro todo, talvez não consiga evitar de se deixar influenciar por mim. Mas a decisão de largar o livro agora ainda está nas suas mãos.

Ao aplicar o método cartesiano de Descartes na minha vida, tento manter sempre em mente que todas as verdades e certezas que vou tornando minhas não são nem verdades, nem certezas, nem minhas, mas hipóteses de trabalho, fruto de uma inteligência coletiva, avalizadas por experts. São teorias, que vou testando e retestando, confirmando ou descartando.

Afinal, o próprio Buda disse que não veio para ensinar doutrinas nem verdades, mas um método prático, que qualquer pessoa podia testar, praticar, descartar. (Esse, aliás, foi um dos aspectos mais revolucionários do seu ensinamento: que essa cura do sofrimento humano poderia ser realizada pelas próprias pessoas humanas, sem necessidade de intervenção divina.) Mais importante, ele defendia que seu ensinamento era como uma canoa: poderia ser muito útil para atravessar um rio, mas, depois do rio atravessado, sair carregando-a pela terra firme poderia ser mais oneroso do que positivo. As verdades, às vezes, por mais úteis que tenham sido, precisam ser descartadas depois de utilizadas.

Essa inteligência coletiva, terceirizada fora de nós, também pode ser chamada de “ideologia”: são as lentes pelas quais enxergamos o mundo, apreendemos a verdade, decidimos nosso caminho. Dependendo das lentes, entretanto, podemos não estar enxergando todos os caminhos possíveis. Não temos escolha de enxergar o mundo a não ser por essas lentes, mas podemos pelo menos tentar enxergar as lentes.

A Prisão Religião, continuação necessária da Prisão Verdade, é uma tentativa de enxergamos as lentes através das quais enxergamos, ou tentamos enxergar, nossas verdades.

[*Sobre isso, recomendo Grooming, Gossip, and the Evolution of Language, de Robin I.M. Dunbar, 1996.]

[**Esses temas serão desenvolvidos na Prisão Autossuficiência.]

* * *

Nada mais difícil que desafiar uma Prisão

Naturalmente, é fácil falar, difícil fazer. Aliás, tudo o que vou propor aqui é sempre, sempre difícil. As Prisões são, por definição, as maiores e mais hegemônicas certezas da sociedade. Ceder a elas sempre será mais fácil. Então, sempre que você ler algo aqui e virar os olhos pensando, “Aff, fácil falar, né?”, saiba que eu concordo com você e compartilho a frustração.

Entretanto, antes de empreender as tarefas mais difíceis e mais necessárias da vida precisamos perceber que são necessárias e, então, articular essa necessidade, para nós e para o mundo. O Livro das Prisões é a teoria, é a articulação das dificuldades. Atenção. são as práticas que eu tento exercer, eu aqui, na minha própria vida, para vencer essas dificuldades.

Deixo a última palavra com Descartes:

“Não quero dizer como cada pessoa deve conduzir sua razão, mas apenas mostrar como me esforcei para conduzir a minha. Só pessoas que se consideram superiores têm o atrevimento de ditar normas às outras e, quando erram em qualquer coisa, já são logo censuradas. Mas como não ofereço esse texto senão como uma história, ou talvez uma fábula, onde se encontrarão alguns exemplos para seguir e muitos outros para evitar, espero que será útil a alguns sem ser nocivo para ninguém, e que todas as pessoas serão gratas por minha franqueza.” (Discurso do método, parte I)

* * *

A verdade é que tudo é mentira, a mentira é que nada é verdade

Os textos das Prisões são textos de ficção, escritos por um autor de ficção, que assina um nome de ficção.

Talvez crônicas ensaísticas, talvez romance pós-moderno. Talvez histórias filosóficas, talvez ensaios narrativos.

Toda e qualquer anedota aparentemente autobiográfica nos meus textos foi inventada por mim, para fortalecer ou ilustrar um argumento, e não possui relação alguma com a realidade.

A verdade raramente é verossímil. Quanto mais verdadeiras parecerem as histórias, mais mentirosas serão.

Na verdade, quase todas são reais, mas nenhuma é verdadeira. Algumas que digo que aconteceram comigo na verdade aconteceram com outras pessoas. Algumas que digo que aconteceram com outras pessoas na verdade aconteceram comigo. E vice-versa.

Para evitar que meus textos se tornassem relatos egocêntricos da minha vida, todas as anedotas autobiográficas são consistentemente contraditórias, apenas acessórios a serviço de algum argumento sendo desenvolvido.

Eu sou irrelevante.

O que importa é a mensagem, nunca o mensageiro.

O que importa são as ideias sendo expostas, não a pessoa que as está expondo.

* * *

Talvez minhas intenções sejam as piores possíveis. Talvez eu tenha escrito o oposto do que realmente penso. Talvez eu tenha sido do contra só para criar polêmica. Talvez eu tenha dito tudo o que as pessoas queriam ouvir.

E daí? Minha mentira pode ser a sua verdade. Minha ironia, seu dogma.

Você, a pessoa destinatária, é muito mais importante do que eu, a remetente. É você que decifra, interpreta e contextualiza a mensagem. O meu texto vai dizer o que você disser que ele disse.

Se gosta do que escrevo, se meus textos lhe ensinam alguma coisa, se julga que minhas ideias têm algum valor, então, essa é uma verdade mais importante do que qualquer verdade sobre minha biografia ou minhas intenções.

Se não gosta, se não ensinam, se não têm valor, então a verdade sobre os detalhes da minha vida importa menos ainda.

Só o texto importa.

* * *

Alex Castro, na verdade, não existe.

Alex Castro é um mentiroso patológico: mente sobre sua vida, seus sentimentos, mente até sobre mentir. Não dá pra confiar em nada do que escreve. Principalmente sobre ele mesmo.

Alex Castro é um grande fingidor: ele mente para convencer os outros ou acredita em suas próprias fantasias?

Alex Castro é um narcisista que finge não ser? Ou finge que é o narcisista que não é?

Alex Castro não existe, mas você existe. Pode se apalpar. Se você pensa que está lendo esse texto, logo, você existe.

Alex Castro não importa, mas você importa

Alex Castro não existe, mas os minutos que você passa lendo os textos dele existem: para o bem ou para o mal, são concretos e foram perdidos para sempre.

Alex Castro não existe, mas tudo o que Alex Castro faz surgir em você, seja raiva ou desprezo, reflexão ou respeito, existe.

É só você, o tempo todo.

* * *

Fim da Prisão Verdade.

Próxima Prisão: Prisão Religião.

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 17h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há mais de dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

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Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

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4 respostas em “Prisão Verdade”

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