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Prisão Trabalho

O trabalho não é, por definição, aprisionante e terrível. Mas quando suga quase toda nossa energia vital e nos dá somente uns míseros tostões em troca, aí sim ele pode ser uma prisão.

O problema não é o dinheiro: todas precisamos de dinheiro, ele garante nossa liberdade e nos permite viver nossas vidas nos nossos próprios termos. O problema não é o trabalho: somos seres criativos, gostamos, precisamos trabalhar, produzir, criar. O problema é só trabalharmos em prol dos projetos de outras pessoas, ao invés ou dos nossos projetos pessoais ou de projetos coletivos que nos sejam importantes. O problema é fazermos isso por muito tempo e por pouco dinheiro, que modo que não nos sobra nem tempo nem energia para nossos próprios projetos. Então, sim, tanto o trabalho quanto o dinheiro podem se tornar prisões.

(Essa é a versão final completa da Prisão Trabalho. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Trabalho é a sexta, depois das Prisões VerdadeReligiãoClassePatriotismo e RespeitoAs inscrições para o curso estão abertas.)

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Introdução

O dinheiro não é o vilão. Ele nos permite viver, realizar nossos sonhos, e até salva nossa vida quando precisamos. Ter dinheiro é uma das formas mais concretas de ser livre. Entretanto, se o colocamos no centro de nosso universo, ele pode sim se tornar uma prisão. Fundamentalmente, o dinheiro só serve para comprar tempo. Mas, se vendemos todo o nosso tempo em troca de dinheiro, então esse dinheiro não serve pra nada. Fundamentalmente, a vida não é cara: nossa vida, porém, pode ser cara se fizermos escolhas caras. Aliás, o que é uma escolha?

O trabalho não é, por definição, aprisionante e terrível. Somos seres construtores, produtivos. Idealmente, o trabalho nos permite dar vazão ao nosso afã criador e, ao mesmo tempo, ganhar o dinheiro que precisamos para viver nossa vida e realizar nossos projetos pessoais. Muitas vezes, entretanto, o trabalho custa caro: ele suga quase toda nossa energia vital e nos dá somente uns míseros tostões em troca. Nesses casos, sim, o trabalho é uma prisão.

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Viver é mais barato do que parece

Cresci menino rico de condomínio da Barra da Tijuca. Depois, a família teve a sensatez de falir, uma experiência educacional que recomendo para todas as pessoas que já foram ricas.

No mundo onde me criei, água não era apenas água: era uma Perrier, garrafinha verde, de uma fonte naturalmente gasosa no sul da França; o relógio de pulso não era só um relógio de pulso, era um Hublot, lindo, discreto, minimalista, e assim por diante, da água mineral ao relógio de pulso, do carro à camiseta.

Para uma criança (que, como qualquer criança, só conhecia o seu próprio mundo), bastava um pouco de extrapolação e uma aritmética básica para concluir que viver era muito, muito caro. Eu precisaria ganhar uma quantidade abissal de dinheiro só para continuar vivendo como sempre tinha vivido. Só para ficar tudo igual.

Buscando essa quimera, no final da década de 1990, caí de cabeça na primeira bolha da internet. Fui a seminários de web marketing, fiz business plans, levantei seed money com venture capitalists, fundei a minha própria startup dotcom onde era o Chief Visionary Officer… e fali.

Nessa época, minha família já não estava mais em condições de me ajudar financeiramente. Vendi o carro (e o Hublot) para pagar as dívidas e fiquei a pé pela primeira vez desde os dezessete anos. Depois, meti o rabo entre as pernas e fui morar com a esposa em um quarto na casa da minha mãe, pagando aluguel.

Então, no primeiro domingo de 2002, abri os classificados e fui tentar descobrir um jeito de ganhar dinheiro. Aparentemente, minha única habilidade com demanda de mercado era falar inglês fluente, fruto da minha caríssima educação de primeiro mundo. Passei dois meses distribuindo currículos até receber a primeira resposta.

Eu nunca tinha andado de ônibus na vida. Segundo as histórias que circulavam no meu mundo, sempre contadas por pessoas que também nunca tinham andado de ônibus, você era obrigatoriamente assaltado a cada dez minutos, ou algo assim. Um horror.

E, agora, aqui estava eu pegando nove ônibus por dia, para dar duas ou três aulas em pontos diferentes da cidade.

Foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.

Percebi que não precisava ter medo da vida. Que não eram necessários quinze mil reais por mês para ter uma vida digna e ser feliz.

Com poucas horas de aulas em dias alternados da semana, eu já conseguia ganhar o suficiente para pagar as contas básicas. Se e quando eu precisasse de mais, bastava encher progressivamente os outros horários.

Em finais de 2002, eu e minha esposa já estávamos em nosso próprio apartamento alugado. Cozinhávamos em casa, andávamos de ônibus, baixávamos filmes da internet, tirávamos livros da biblioteca, íamos à praia, transávamos muito.

Ela fazia mestrado de manhã e trabalhava de vendedora de loja de roupas à tarde e à noite. Eu chegava no shopping algumas horas antes de ela sair, ficava na mega livraria lendo de graça aqueles novos romances brasileiros de cento e poucas páginas que se termina rapidinho, e voltávamos juntos pra casa.

Não consumíamos quase nada e, mesmo assim, apesar disso, talvez por isso, éramos felizes. Mais importante, éramos viáveis.

Algumas das pessoas mais felizes que conheci eram ex-ricas, escreveu uma vez o psicólogo Flávio Gikovate. Nossa sociedade é tão obcecada por dinheiro que pode ser libertador perdê-lo: percebe-se, de uma vez só, o quão pouca falta ele faz.

Para mim, essa certeza de que conseguia me sustentar sozinho, com esforço mínimo, foi talvez a revelação mais importante da minha vida.

Eu não precisava me escravizar dez horas por dia em um escritório sem janelas, realizando os projetos de outras pessoas, trocando a energia vital da minha juventude por água Perrier e por relógios Hublot.

Percebi que vender minha alma ao mercado de trabalho não era o único modo de viver.

Que se eu abdicasse da água Perrier e dos relógios Hublot, ou mesmo de água Petrópolis e de relógios Swatch, eu poderia trabalhar menos e ter mais tempo livre: criar mais, viver mais, dormir mais, transar mais, ir mais à praia.

E também ser um melhor filho, um melhor marido, um melhor amigo. Ouvir mais, ajudar mais, me doar mais.

Hoje, bebo água de um filtro de cerâmica São João e, depois de vender o Hublot, nunca mais usei relógio.

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Viver é barato, nossas escolhas é que são caras

Minha cidade conta com uma rede extensiva de transporte público, com passagens razoavelmente baratas. Se mesmo assim eu escolho ter carro, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.

O Estado brasileiro me oferece (não de graça, mas em troca dos meus impostos) saúde e educação, do nascimento à morte. Se mesmo eu escolho pagar de novo por educação ou saúde particular, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.

Existem diversas bibliotecas públicas na minha cidade, uma na minha própria rua, cheias de livros que ainda não li e provavelmente até gostaria. Se mesmo assim eu escolho pagar por um livro, pelos preços absurdos que nosso mercado editorial cobra, só pra matar minha vontade de ler esse livro agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.

Se escolho pagar quase oitenta reais pra ver no cinema um filme que poderia ver na TV aberta ou baixar de graça no computador, porque estou sentindo desejo de ver esse filme agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.

Os exemplos poderiam se multiplicar infinitamente, mas só porque o capitalismo inventou maneiras infinitas de encarecer minha vida, de me fazer querer pagar por algo que poderia ter de graça, só porque alguém enfiou na minha cabeça (dica: publicidade) que preciso ter aquilo, agora, daquele jeito!

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Dinheiro só serve para comprar tempo

A única coisa que tem realmente valor, a única coisa que estamos sempre comprando, é tempo. Achamos que vale a pena pagar oitenta reais por um filme que vai passar mais tarde na TV aberta de graça porque queremos ver agora, porque não queremos esperar, porque não temos tempo.

E só estamos dispostas a comprar tempo com dinheiro…. porque não temos tempo, mas temos dinheiro. E não temos tempo, somente dinheiro, porque escolhemos vender a maior parte do nosso tempo ao mercado de trabalho em troca de dinheiro.

O dinheiro, fundamentalmente, só serve para comprar tempo: mais tempo de vida, mais tempo de qualidade de vida, mais tempo com nossa família, mais tempo fazendo as coisas que queremos fazer.

Poucas mentiras são maiores que “tempo é dinheiro”. Porque o dinheiro perdido você pode até recuperar; o tempo perdido nunca mais volta. Porque o tempo é infinitamente mais precioso que o dinheiro. (Falar “tempo é dinheiro”, como se fossem equivalentes, é o mesmo contrassenso, digamos, que falar que “areia é diamante” ou que “bucho é picanha”.)

Por isso, embora seja inevitável vendermos parte do nosso tempo por dinheiro, será sempre o pior negócio do mundo vendermos todo o nosso tempo, não importa por quanto dinheiro.

Porque, se não temos tempo, então, todo o dinheiro do mundo não serve pra nada.

Os bilionários do submarino, quando perceberam que tinham um minuto de vida, eram as pessoas mais pobres do mundo.

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O que é uma escolha

Uma amiga me respondeu, indignada:

− Você não entende, Alex! Eu escolhi sim pagar um plano de saúde particular mas é só porque o SUS está um caos!

Mas escolher pagar um plano de saúde particular porque “o SUS está um caos” é a definição de escolha.

No nosso mundo imperfeito, não existe escolha entre opções perfeitas. Nem faria sentido, aliás. Em toda e qualquer escolha, em maior ou menor grau, existem prós e contras em todas as opções e escolhemos uma por considerar as outras piores.

Não estou afirmando que o SUS é “bom” ou que “funciona como deveria” e nem que é “ruim” ou que “não funciona como deveria”. Essa é uma opinião subjetiva que depende dos critérios e expectativas e experiências de vida de cada pessoa.

Estou afirmando que escolher um plano de saúde pago por considerar que “o SUS está um caos” não faz dessa escolha menos uma escolha. Considerar que “o SUS está um caos” é somente a razão dessa escolha.

Por outro lado, muitas pessoas que usam o SUS não escolheram usar o SUS: elas usam o SUS porque, de fato, concretamente, não têm dinheiro mesmo para pagar saúde particular.

Para comprovar que as pessoas que escolheram pagar plano de saúde particular fizeram, de fato, de verdade, uma escolha… basta compará-las com as pessoas para quem essa escolha nunca esteve aberta. (Esse foi o tema principal da Prisão Classe: no Brasil, as duas principais classes sociais são as pessoas-que-têm-escolhas e as pessoas-que-não-têm.)

Não estou criticando as pessoas que escolheram ter carro, contratar plano de saúde, ou comprar livros, ou estudar em escola particular. Estou somente dizendo que essas escolhas são escolhas.

Portanto, se eu escolher encarecer minha vida, não faz sentido então reclamar que “a vida” está cara: é a minha vida que está cara, por causa das escolhas caras que eu fiz.

Mas tudo que foi escolhido também pode ser desescolhido.

Se não, nem valia a pena escrever esse livro.

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O texto é para quem está lendo

Viajei o Brasil inteiro fazendo encontros “As Prisões” e muitas das ideias que vocês estão lendo aqui foram primeiro articuladas e desenvolvidas em diálogo com as participantes. Muitas vezes, quando eu apontava que nossa vida era cara porque fazíamos escolhas caras, era bem comum algumas pessoas se sentirem incomodadas, até desrespeitadas, e ficarem reativas:

− E o moço da favela, hein? Hein? E o moço da favela ouvindo isso? Você diria isso para um moço da favela? Será que ele não iria se sentir desrespeitado? Você não pensa na situação dos mais pobres?? Hein? Hein?

E minha resposta era sempre mais ou menos a seguinte:

− Mas eu não estou falando com o “moço da favela”: estou falando com você, que pagou caro para vir a esse evento (ou, no caso, ler esse livro!). Tudo que eu escrevo, tudo que eu estou falando, é pra você. Pra enfiar o dedo na sua ferida, pra te fazer colocar a mão na sua consciência, pra te fazer refletir sobre a sua vida e as suas escolhas. Quando o tal moço da favela vier me procurar, desrespeitado e emputecido, pode deixar que eu me resolvo com ele. A pergunta mais importante é: o que foi que eu disse que te deixou tão incomodado e tão ansioso que, ao invés de olhar para sua própria vida e para suas próprias escolhas, você achou necessário buscar refúgio nas críticas hipotéticas que poderia fazer um moço da favela hipotético?

Às vezes, até completava:

− Quando cutuco as certezas das pessoas bem-nascidas e bem-alimentadas, as outras pessoas, as que não tiveram tanta sorte, não se sentem incomodadas. Pelo contrário, até se divertem. Elas sabem que o cutucão não é com elas, é com você.

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O privilégio de ter escolhas

Vivemos em um país injusto e desigual. Então, quando falamos em escolhas, não podemos nunca esquecer do seguinte: talvez a grande divisão da nossa sociedade seja entre as pessoas que têm todas as escolhas e as pessoas que têm escolhas bastante limitadas. “Meritocracia” e “liberdade de escolha” são dois dos grandes mitos que nossa direita gosta de propagar para justificar e proteger seus privilégios. Para as pessoas privilegiadas, ignorando sempre que nem todas as pessoas tiveram as mesmas possibilidades de escolha que elas, é muito fácil e muito tentador apontar para as pessoas oprimidas e exploradas… e afirmar que elas são oprimidas e exploradas porque escolheram ser assim! Porque não trabalharam duro!

Então, esse aqui é um texto escrito por uma pessoa privilegiada, que teve todas as escolhas e possibilidades, para outras pessoas privilegiadas que também tiveram todas as escolhas e possibilidades. Mas, enquanto estamos aqui falando entre nós dentro de nossa bolha de privilégio, é importante não esquecer que estamos cercados de pessoas que não tiveram as mesmas vantagens que nós. Mais importante, não tiveram e não têm as mesmas escolhas. Se existe alguma luta política digna desse nome, é para que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades de escolha, ou seja, de liberdade, de potência, de autonomia.

Essas temas são mais desenvolvidos na Prisão Classe.

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Aviso prévio sobre valores e moedas

Os textos das Prisões estão sendo escritos e reescritos há mais de vinte anos. No começo da Prisão Dinheiro, publicada originalmente em 2003 e hoje incorporada à Prisão Trabalho, eu abria as minhas contas pessoais. Por exemplo, na época em que um salário mínimo era R$240, minhas despesas fixas mensais eram de mil, ou seja, quatro salários.

Mas entendo que, para leitoras jovens de hoje, e quem sabe do futuro, essa data, às vezes até antes de seu nascimento, pode estar em um passado longínquo e, portanto, esse valor não comunica nada. Corrigindo para valores de hoje, segundo o IGP-M, por exemplo, mil reais em 2003 equivalem mais ou menos a R$4.200 em 2023. Se formos pelo salário mínimo, quatro salários mínimos hoje somam R$5.280. Esses valores, entretanto, que hoje significam algo, em breve também já não vão significar mais nada.

Não são só os valores que vão mudando.

A minha vida mudou: entre 2003 e 2023, eu morei de aluguel, em república de estudantes no exterior, de favor em casa de amiga, em imóvel próprio, em imóvel alugado e pago por minha esposa, em imóvel do sogro. (Dá pra ver a história dos meus privilégios nessa breve lista, desde morar no exterior até herdar imóvel, desde ter uma esposa que ganha mais que eu até morar num imóvel da família dela, etc.)

O mundo também mudou: tanto na versão original, quanto nas diversas reescrituras posteriores, uma das minhas principais formas de economizar era não ter celular. Depois, abri uma exceção e comprei um burrofone, capaz apenas de fazer ligações telefônicas e mandar SMS. Em 2018, meu pai faleceu e comecei a usar o smartphone dele para testar. Quando pifou, considerei ficar sem, mas dois serviços bancários fundamentais pra mim simplesmente não têm como ser usados somente pela internet, então, em pleno 2023, comprei o meu primeiro smartphone, que ainda estou pagando.

Enfim, minha vida só terá acontecido nessa época, que só vai ficar mais longe, nunca mais perto. Tentarei contar a história, localizada no tempo e no espaço, mas com o mínimo de valores monetários que ficariam rapidamente irrelevantes.

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Minha vida, possível

Na virada de 2001 para 2002, fechei minha empresa, fui dar aulas em cursinhos de inglês e precisei diminuir radicalmente meus gastos. Cortei tudo, quase tudo, e conseguir reduzir minhas despesas mensais mínimas a um valor que parecia inacreditável a todas as pessoas do meu velho mundo. Elas me interpelavam:

− Mas, Alex, vale a pena viver assim? Viver não é apenas sobreviver. E os prazeres da vida?

Sexo é de graça. Passear em um parque, nadar no oceano (ou na represa), ver o pôr do sol no Arpoador (ou no mirante da sua cidade), tudo de graça. Livros podem ser lidos na biblioteca mais próxima ou baixados pirata pela internet – filmes e música, idem. Exercícios dá pra fazer em casa, na praia, no parque, na praça. Saúde, o Estado fornece de graça, inclusive meus remédios de pressão e diabetes. Arte, sempre tem peça, show, exposições gratuitas. Até mesmo a internet é fundamentalmente gratuita, pois qualquer café, shopping, quiosque oferece wi-fi – durante muitos anos, eu me recusava a ter em casa, para evitar distrações, e só usava assim.

Na verdade, sem ser excessivamente explorador, daria até para comer todas as refeições na casa das pessoas amigas. Henry Miller, em sua fase mais pobre de autor marginal, fazia uma escala de almoço com dezenas de pessoas conhecidas. Com um mínimo de quinze, que nem é tanta gente assim, já dá pra marcar de aparecer na casa de cada uma em, digamos, terças-feiras alternadas e, assim, manter o papo sempre em dia e não explorar demais nenhuma única pessoa. Em troca, Henry se comportava como o artista marginal divertido e interessante que esperavam que fosse. Devia ser um excelente negócio para todas as pessoas envolvidas: eu com certeza alimentaria Henry Miller duas vezes por mês só para ouvir as novidades da sua vida de sua própria boca.

Não estou dizendo que essa vida é desejável ou detestável, bonita ou feia, digna ou indigna, nenhum adjetivo positivo ou negativo.

Estou dizendo que é possível.

Para mim, quebrado em 2003, foi uma grande tranquilidade saber que me sustentava com mil reais – incluindo aí meu aluguel de R$600.

Então, se eu vivia e me mantinha com mil reais, sem me faltar nada de necessário, isso quer dizer que viveria muito bem (luxuosamente até) com dois mil reais.

Na prática, esse foi o número que usei. Considerava que minha despesa mensal era de dois mil reais e meu objetivo financeiro era nunca gastar mais que isso por mês.

Sendo bem sincero, me sentia até rico. Afinal, era o dobro dos meus gastos fixos. Mil reais de lambuja. Dava pra comprar uma geladeira novinha, o imprevisto dos imprevistos, e ainda ficar dentro do orçamento. Dava pra comprar aquele livro que não resisti. Dava pra pegar um táxi no dia em que estivesse carregando peso ou chovendo. Em suma, dava pra ser flexível na frugalidade.

O que sobrava, eu economizava.

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Como sanitizei as minhas finanças

Sempre escuto:

− Ai, Alex, você não acha que isso que você fez foi meio radical?

E sempre respondo:

− Claro que não. Acho que foi totalmente radical.

Sempre que passei por catástrofes financeiras (e não foi só uma), as dicas abaixo me ajudaram a criar uma nova cultura de consumo, menos imediatista e mais ponderada. São dicas de guerra. Radicais mesmo.

Hoje, por não ser mais necessário, já não aplico a maioria delas. Mas continuam na minha caixinha de ferramentas.

Vale a pena sempre repetir: eu não estou dizendo o que você, ou ninguém, deve fazer, até porque não te conheço. As dicas abaixo são o que eu de fato fiz em uma época bem específica da minha vida. Você, hoje, lendo isso, faz o que você quiser.

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1. — Cortei tudo o que podia ser cortado

Tudo mesmo. Terapia, aula de dança, e todos os serviços de assinatura, desde conteúdo impresso a TV a cabo ou streaming. Depois, a medida em que fui sentindo mais falta de uma ou de outra coisa, reativei alguns. Ou seja, joguei o ônus do trabalho em refazer o serviço, não em cancelar. Na despesa e não na economia. Muitos dos meus antigos gastos fixos não tinham nada de fixos: eram puro hábito, não fizeram a menor falta.

Ao cancelar tudo, as prioridades ficam mais claras. Uma pessoa pode perceber que, sem a leseira do streaming, se sente mais livre e mais bem-disposta. Outra, que não consegue dormir sem ouvir o David Attenborough descrevendo a vida das formigas do Himalaia. Não existe resposta certa. Cada pessoa sabe de si. Ao cancelar tudo, descobrimos quais são as coisas que realmente fazem falta e quais só estavam ocupando espaço e gerando despesa.

Essa medida também inclui fazer algumas mudanças que a maioria das pessoas nem sabe que é possível. Por exemplo, toda pessoa brasileira tem direito a uma conta bancária a custo zero, chamada “serviços essenciais.” É só pedir ao seu banco. Se resistirem, reclame no Banco Central. Mas é importante ter cuidado: para esse tipo de conta, os bancos em geral cobram muito mais caro por qualquer outro serviço, então verifiquem o pacote de preços. As operadoras de telefone e de internet também oferecem planos básicos populares, a custos reduzidíssimos, que elas matreiramente nem listam em seus sites, mas que são obrigadas pelo governo a oferecer e que não podem negar. Informe-se e exija.

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2. — Deixei os cartões em casa

Parei de andar com cartão de crédito. Levava o dobro de dinheiro vivo que precisaria em um dia comum e, antigamente, um cheque em branco dobradinho no fundo da carteira. Hoje, basta achar um caixa automático e tirar dinheiro com o polegar.

Fazendo minhas compras em dinheiro, eu via as notas fisicamente sumindo. Sua perda era algo real, concreto, visível, táctil.

Por outro lado, compras com cheques, cartões, pix são virtuais, abstratas, traiçoeiras. Os gastos se acumulam discretamente, sem percebermos. (É por isso que os shopping centers não têm janelas: para não vermos o tempo se escoando lá fora.)

Um dia, um cheque voltou e liguei pro meu gerente de banco, indignado:

− É impossível, tenho limite de dez mil no cheque especial!

Dez mil reais me parecia um valor altíssimo, impossível de ser alcançado. Mas tinha sido alcançado. O bom de bater no chão é que a gente acorda.

Nos últimos tempos, com a ubiqüidade do smartphone e do pix, ficou cada vez mais difícil andar “sem cartão”. Entretanto, não deixa de ser importante para percebermos um fato importante: tanta gente trabalhou tão duro para esse tipo de comodidade ser tão ubíqua… justamente porque sabem que, assim, consumimos muito mais.

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3. — Nunca mais comprei nada por impulso

Eu experimentava a roupa, namorava o livro, visualizava o sofá na minha sala… e ia embora. Saía correndo da loja e não olhava pra trás. Antes mesmo de chegar em casa, eu já tinha esquecido quase todos aqueles irresistíveis objetos de desejo. De longe, me pareciam tão inúteis, tão desnecessários. Me lembro de pensar com alívio: “ainda bem que não comprei aquela porcaria!” Alguns, entretanto, continuavam na minha cabeça. Nesses casos, valia a pena o trabalho de voltar até a loja e comprar. E, se não valer, é porque não valia o custo de comprar. O ônus da ação era do ato de gastar. Uma dica adicional é se apagar de qualquer aplicativo que percebemos que favorece compras de impulso. No meu caso, por exemplo, foram os aplicativos da Amazon e do iFood.

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4. — Criei uma medida de conversão

O real é muito abstrato, uma convenção que, no fundo, como todas moedas, não significa nada — ainda mais se você faz a maioria das suas compras virtualmente, com cartão ou pix. Boas medidas de conversão precisam ser concretas: ou uma hora de trabalho, ou alguma coisa que se compre com frequência.

Em 2002, o cursinho de inglês me pagava sete reais pela hora de aula. Para mim, nada poderia ser mais concreto, mais real, mais vivido do que aqueles sessenta minutos ensinando o present perfect.

Então, quando eu via a belíssima nova edição de Moby Dick, da Cosac Naify, por cem reais, ficava cheio de tesão pra comprar, mas pensava:

− Será que essa edição é realmente tão incrível assim que vale mesmo a pena trabalhar por quinze horas pra comprar um livro cujo texto eu posso ler de graça na internet, ou pegar na biblioteca ou emprestar de algumas das minhas trocentas pessoas amigas que devem ter?

Assim, eu conseguia desmascarar os luxos e os supérfluos (que adoram se disfarçar de “necessidades urgentes”) e, assim, colocava as minhas verdadeiras prioridades em perspectiva.

Outra boa medida de conversão é algo que se precise comprar sempre e que seja essencial para a vida.

Na época, minha principal fonte de proteínas era filezinho de peito de frango congelado. Por coincidência, bons tempos aqueles, o quilo custava os mesmos sete reais.

E eu pensava:

− O que vale mais a pena: a nova edição de Moby Dick ou quinze quilos de filezinho de peito? Por quanto tempo eu posso ficar comendo esses quinze quilos de frango sem me preocupar mais com comida? Afinal, eu vou ler mesmo esse livro? Se eu comprar quinze quilos de frango, eu vou comer tudo com certeza. Afinal, o que é mais importante? Quais são as minhas prioridades?

Algumas amigas achavam bizarro eu converter o preço de tudo para quilos de frango (“sério, não vou dar dez quilos de filezinho de peito pra ver essa banda tocar, não!”) mas o que importa é ser uma medida de conversão que faça sentido, que torne os gastos mais reais, mais concretos, mais mensuráveis.

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5. — Anotei todos os gastos em uma planilha

Saber o que estamos fazendo é sempre bom. Para mim, foi importante descobrir exatamente por quais orifícios eu estava sangrando dinheiro. Por exemplo, minhas diversas paradas para lanches, sucos, cafés, etc, custavam mais do que as minhas refeições propriamente ditas. Além disso, muitas vezes eu tinha vergonha (logo eu, a pessoa mais sem-vergonha do mundo) de gastar só para não ter que anotar depois e, assim, articular e imortalizar aquela pequena falta de controle. No mínimo, fazia com que eu pensasse mais sobre o que estava comprando.

Mas é importante não exagerar a importância desse passo. Saber o que estamos fazendo, por si só, não resolve nada. É como fazer exame de sangue todo ano, ver minha taxa de glicose subindo, e continuar comendo doce. É como aquele cara que estava estacionando e pediu ao outro, “avisa a hora que bater”, e daqui a pouco vem o estrondo da porrada e o grito lá detrás: “quatro e quinze!”

Tenho uma amiga que anotava fastidiosamente todas as porcarias inúteis que comprava mas era incapaz de parar de comprá-las. Quando conversávamos sobre isso, ela ainda tinha a cara-de-pau de puxar seu caderninho e mostrar:

− Mas como pode, Alex? Olha: eu anotei tudo!

O caderno, naturalmente, era um moleskine.

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6. — Passei a viver a vida à vista

Só usava dinheiro vivo ou, no máximo, cartão de débito. Cortei meus cartões de crédito. Joguei fora os talões de cheque. Desabilitei o cheque especial da conta bancária. Nunca fiz crediário ou financiamento.

O cheque especial, além de ter juros altíssimos, é psicologicamente traiçoeiro. Se tenho um limite de mil reais e estou em quinhentos negativos, é difícil não pensar que ainda tenho mais quinhentos pra gastar. Naturalmente, sei que é o contrário, mas e daí? Assim como as tarefas tendem a se alongar até preencher todo o tempo disponível, as dívidas também tendem a aumentar até preencher todo o limite de crédito. Pagar minha dívida do cheque especial tornou-se a minha prioridade de vida. E, assim que cheguei ao zero, pedi para o meu gerente de banco cancelar meu cheque especial. Hoje, na minha conta, zero é zero. Abaixo disso não desce.

Uma amiga uma vez me perguntou, em tom de medo

− Mas, Alex, cancelar o cheque especial? E… e se eu tiver uma emergência?

− Bem, − respondi, − se você tiver uma emergência, um dos piores modos de resolvê-la é se endividando. Você pode usar suas economias, apelar para a família ou pessoas amigas, vender alguma coisa, pegar mais um frila, ser criativa, pedir esmola em uma esquina movimentada com um cachorro fofo aos seus pés, literalmente qualquer coisa. No fim da lista, endividar-se no cheque especial.

Continuei:

− Digamos que você tinha um limite de mil reais no cheque especial, cancelou o maldito e agora tem uma emergência? O que fazer? Eu diria então que o seu banco certamente lhe emprestaria no mínimo esses mil reais, talvez mais, a juros menores. A vantagem é que agora o processo é ativo e não automático (você tem que efetivamente correr atrás do empréstimo) e você não vai ter aquela falsa impressão (que o cheque especial sempre passa) que esse dinheiro é “seu”.

E concluí:

− Porém, se você me diz que todo mês tem uma emergência que te faz pegar dinheiro emprestado (e o cheque especial obviamente é esse estado permanente de emergência), eu diria que você está em seríssimos lençóis e precisa mudar radicalmente seu estilo de vida. Pra ontem.

Antigamente, na idade da pedra hiper-inflacionada, os cheques eram imprescindíveis. (Em 1993, logo antes do Plano Real, eu sozinho gastava um talão a cada duas semanas.) Fiquei no SPC por cinco anos, mesmo depois de completamente sanitizar minhas finanças, por causa de um cheque pré-datado de míseros cinquenta reais que minha ex-mulher passou e cujo credor eu nunca mais consegui encontrar. Hoje, perderam totalmente sua função. Deve ter leitor desse livro que nunca nem viu.

Crediários e compras parceladas são duas coisas que nunca, nunca, nunca se deve fazer. Recentemente, voltei a parcelar no cartão de crédito somente as minhas duas compras mais vultuosas e mais regulares: computador e óculos. Mas, via de regra, se não tenho dinheiro pra comprar à vista, então é porque não posso comprar. Crediários e compras parceladas são jeitos traiçoeiros de me convencer que de fato posso pagar (e mais caro, ainda por cima) por coisas que de fato não posso pagar. Se quero comprar e não tenho dinheiro, faço um bom e velho “crediário prévio”, ou seja, todo mês economizo um pouquinho e, quando juntei o suficiente, compro à vista e peço um desconto. (A geladeira que precisei comprar de improviso esse mês teve desconto de 12% à vista.)

Naturalmente, se não consigo economizar pra comprar aquela TV tela plana que tanto desejo porque sempre acabo usando o dinheiro para pagar a conta de luz que está pra vencer, então, sinto muito, é porque realmente não posso comprar uma TV tela plana, nem se fosse parcelado. Aliás, se tivesse comprado parcelado, estaria hoje ainda mais no vermelho do que antes.

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7. — Percebi que viver no vermelho não era sustentável

Para quem deve dois mil no cheque especial, é insano gastar até mesmo cinco reais tomando um cafezinho na esquina. Quem deve dois mil no cheque especial não tem cinco reais para o cafezinho. Para todos os fins práticos, eu estaria me endividando, a juros escorchantes de 12% ao mês, pra tomar um café.

E comecei a me perguntar: vale mesmo a pena me endividar pra tomar um café? Pra almoçar? Pra ir ao cinema?

Enquanto existiu minha dívida no cheque especial, eu, realmente, de fato, pra todos os fins e efeitos, não tinha dinheiro pra nada. Como não podia deixar de sobreviver, eu era até obrigado a me endividar um pouco mais pra pagar as contas básicas. Mas só. Todo o resto foi cortado sumariamente. Para quem está pagando os juros escorchantes do cheque especial é loucura gastar dinheiro em qualquer outra coisa que não seja pagar a maldita dívida.

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8. — Percebi que nem toda dívida precisava ser paga

Se uma amiga me emprestou mil reais durante o maior aperto da minha vida, fugindo de um furacão e sem acesso à minha conta bancária (valeu, Renata!), pagá-la de volta é uma questão de honra.

Se devo mil reais pro banco, bem, posso estar certo que ele não está perdendo o sono por isso. Aliás, ele não tem sono. Ele não é uma pessoa. Ele não se ofende, não se magoa, não fica decepcionado comigo:

− Poxa, não acredito que o Alex me deu o calote nessa dívida, não esperava isso dele, ele sempre foi tão bom correntista… chuif…

Nada que eu possa fazer contra um banco será tão anti-ético quanto, hmm, basicamente tudo que ele faz comigo diariamente só por ter feito a bobagem de abrir uma conta-corrente lá.

(O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?, já se perguntou São Brecht.)

Algumas dívidas podem ser perdoadas em troca de parte do valor total à vista. Algumas dívidas (aquelas que não estão crescendo a 12% ao mês) podem simplesmente ser esquecidas e o pior que acontecerá é me colocarem no SPC.

Alias, já me colocaram no SPC. Fiquei lá por cinco anos. Minha vida mudou em rigorosamente nada. Acendi a luz, escancarei a porta do armário e… o bicho-papão na verdade era só um ursinho de pelúcia.

O problema é que nossa cultura capitalista trata a dívida como se fosse uma questão moral: “Temos que pagar nossas dívidas porque sim, porque somos pessoas honestas, porque é isso que se faz!” Mas todo o sistema financeiro se baseia justamente no fato de que não precisamos pagar nossas dívidas, que algumas dívidas simplesmente não serão pagas e que é esse risco inerente ao empréstimo que justifica a excrescência imoral que são os juros. Então, pelo contrário, não só as dívidas não precisam ser pagas como, se todos os devedores pagassem todas as suas dívidas no prazo, o sistema financeiro internacional quebraria no mesmo dia.

O livro Dívida: Os primeiros 5.000 anos, do antropólogo norte-americano David Graeber, começa com a seguinte história: em um coquetel, conversando com a advogada de uma fundação que ele faz questão de enfatizar que era uma pessoa de esquerda, ativista internacional, militante antiglobalização, etc, Graeber comenta sobre sua campanha para impedir que o FMI imponha austeridade aos países do terceiro mundo.

Em muitas culturas, diz ele, inclusive na hebraica citada na Bíblia, havia leis que obrigavam o perdão periódico — de sete em sete anos, etc — de todas as dívidas, para garantir que nenhuma pessoa passasse toda sua vida endividada. (No Brasil, temos algo que segue o mesmo princípio, que é a proibição de qualquer pessoa ficar com o nome sujo nos serviços de proteção ao crédito por mais de cinco anos.) Ao ouvir isso, entretanto, a advogada-do-bem ficou horrorizada:

− Mas… mas… esses países de fato pegaram esse dinheiro emprestado! As dívidas precisam ser pagas!

Mesmo na teoria econômica mais conservadora, porém, qualquer empréstimo traz em si um risco e, aliás, é a percepção desse risco que determina as taxas de juros. Apesar disso, essa ideia de que “as dívidas precisam ser pagas” é tão poderosa justamente porque não é uma afirmação econômica: é uma afirmação moral.

Graeber escreve todo o seu livro, um dos mais brilhantes que li nos últimos anos, justamente para contestar essa afirmação tão autoevidente e para demonstrar como o capitalismo, ao longo dos séculos, conseguiu transformar uma relação econômica em uma relação moral.

E, enquanto escrevo isso, o terceiro Governo Lula está implementando o programa Desenrola, especificamente para des-endividar a população. Veremos como vai funcionar.

* * *

9. — Parei de pagar por coisas que conseguia de graça

Alguns dos meus gastos mais aparentemente necessários eram, na verdade, coisas que eu poderia perfeitamente conseguir de graça. Sim, não seria tão fácil, rápido, cômodo (ou mesmo legal) quanto pagar por elas, mas era de graça.

Por exemplo, se já tenho internet de graça no trabalho ou na universidade, será que realmente preciso pagar pra ter em casa também? Será que não dá pra chegar mais cedo ou sair mais tarde do trabalho/escola e fazer minhas coisas pessoais na internet de lá? Em minha época de trabalhar em empresa no Brasil (era uma empresa de internet!) ou de estudar nos Estados Unidos, eu fiquei sem internet em casa. Quando voltei para o Brasil, continuei sem internet em casa: usava a internet de cafés, casas de suco, shopping center, da casa de pessoas amigas. Até a orla de Copacabana tinha wi-fi gratuito.

Não é realmente necessário pagar por academias de ginástica. Dá pra conseguir o mesmo efeito correndo, pedalando, fazendo exercícios no parque ou na orla, ou até mesmo em casa. Com um pequeno investimento inicial (muitas vezes pelo mesmo preço de uma ou duas mensalidades da velha academia), compra-se pesos, barras e aparelhos que permitem fazer em casa quase tudo o que se fazia na academia. Vários sites na internet ensinam como fazer essa transição. Além disso, várias pequenas mudanças no dia-a-dia têm um efeito cumulativo enorme. Não pegar mais elevador. Usar a escada pra tudo. Fazer a pé tudo o que pode ser feito a pé. (Eu caminhava uma hora por dia até a minha universidade. Conheço uma amiga que caminha duas. É um momento excelente pra estar sozinho consigo mesmo, meditar, relaxar, economizar.) Talvez não seja tão prático ou tão cômodo quanto a academia. Talvez exija mais disciplina e autocontrole. Mas é de graça.

Por fim, parei de pagar por conteúdo que está disponível de graça na internet. Apoio a pirataria.

Se você conseguir ler os meus livros sem pagar, leia. Se gostar, passe adiante. Se mudar a sua vida, visite meu site e faça uma doação. Eu vivo disso e agradeço. Para um escritor, ser lido é mais importante que ser vendido. Quem é muito lido, será muito vendido.

Uma coisa é doar para artistas independentes que divulgam seu trabalho gratuitamente na rede. (Eu sou um deles: sobrevivo das doações que fazem os meus mecenas. Para doar, visite minha página de mecenato.) Uma coisa é doar para grupos sem fins lucrativos que produzem e mantém sites e softwares abertos que uso e que melhoram minha vida. (Faço questão de doar para o LibreOffice, o genérico do Microsoft Office, para a Wikipedia e para o software de som e vídeo VLC.)

Porém, quando um grande conglomerado de mídia escolhe disponibilizar seu conteúdo de graça pela internet, eu parto do princípio que foi uma decisão empresarial muito bem pensada e muito bem embasada, que tem como fim último trazer mais lucros aos sócios e acionistas. Na prática, não estão oferecendo nada de graça: se não estamos pagando é porque o cliente não somos nós. O cliente são os anunciantes. Nós somos o produto sendo vendido.

* * *

10. — Parei de gastar tanto dinheiro comendo e bebendo na rua

Sentar com pessoas queridas em uma mesa de bar não precisa custar quase nada: já passei longas e prazerosas noites só fumando, ou tomando uma ou duas águas, e deixando menos de dez reais na mesa. Bastava já sair jantado de casa. Para ficar o dia na universidade norte-americana, levava uma marmita com um tupperware de comida, frutas, iogurte; na brasileira, já cheguei muitas vezes um pouquinho mais cedo ou saí um pouco mais tarde para filar almoço ou janta quase de graça no bandejão. Hoje, sempre tenho um saquinho de nozes sortidas na bolsa — muitas vezes, ele me salva de comer porcarias engorduradas.

Quando passei a anotar todos os meus gastos, percebi que almoçar em restaurantes vagabundos tinha um custo desproporcional em relação à qualidade. Pelo custo de três refeições completamente banais, eu poderia ir a um dos melhores restaurantes da cidade e ter uma refeição sublime, memorável, que custaria o triplo mas seria vinte vezes melhor. Hoje, um almoço de trinta reais é um almoço que eu faria igual ou melhor em casa, por um terço do preço. Não vale a pena.

* * *

11. — Parei de comprar tanto livro

Como a maioria das pessoas meio intelectuais meio de esquerda do eixo Morumbi-Leblon, eu também adorava passar na Travessa da Vila mais próxima e gastar centenas de reais em lançamentos — todos com belíssimo projeto gráfico! Então, expunha orgulhosamente meus troféus na estante ou na mesinha de centro… e, no máximo, lia um ou outro. Mas é obsceno abrir mão de um dinheiro que faria falta em troca de livros que provavelmente não iria ler.

Passei então a comprar um livro de cada vez. E só se ele for passar na frente de todos os outros da minha lista. Só se for pra ser lido agora, assim que sair da livraria, hoje mesmo. Se é pra comprar a linda, divina, chiquerrérrima nova edição de Moby Dick da Cosac Naify por cem reais só para colocá-la na minha pilha de leituras futuras, entre A Montanha Mágica e Em Busca do Tempo Perdido, é melhor simplesmente colocar uma nota de cinquenta em cada um desses dois livros. Pelo menos, o dinheiro fica ali, líquido e disponível; pode ser usado como marcador de página; e, se e quando eu finalmente tiver aquela vontade súbita de ler agora, sempre posso pegar as duas notas e correr até a livraria mais próxima. Não faz sentido comprar hoje um livro que vou acabar lendo apenas daqui a dois anos. Melhor guardar o dinheiro e comprar o livro daqui a dois anos, no dia em que for lê-lo.

Além disso, existem diversas bibliotecas públicas e universitárias na minha cidade, muitas das quais deixam até retirar livros. Dando alguns exemplos só do Rio de Janeiro: tanto o Real Gabinete Português de Leitura, no centro (a biblioteca mais linda do mundo) quanto o Instituto Cervantes, em Botafogo, permitem o empréstimo de livros mediante uma baratíssima taxa anual; a biblioteca da PUC-RJ idem, mas só para ex-alunas. Nenhum investimento se paga tão rápido quanto essas matrículas. Certamente devem haver bibliotecas assim na sua cidade.

Por fim, tenho pessoas amigas cujas estantes são verdadeira retrospectiva das listas dos mais vendidos dos últimos vinte anos: 1968 A Elite da Tropa que Não Acabou Marley, Olga e Eu na Estação Carandiru do Nome da Vinci do Mundo das Comédias da Vida Privada de Sofia da Arte da Felicidade do Queijo do Pai Rico, etc etc. Então, nunca mais comprei esse tipo de livro. Não porque sou um intelectual esnobe que estava lendo a edição da Cosac Naify de Moby Dick — que, aliás, a editora faliu e nunca comprei. Mas porque não faz sentido comprar livros que metade das pessoas que conheço tem. Eu pego emprestado.

Sempre que estou na livraria, com o livro na mão, na ânsia de comprar, eu me pergunto:

− Vou mesmo começar a ler esse livro hoje? Se não hoje, vou ler esse livro alguma vez na vida? Vale a pena gastar sessenta reais em um livro que provavelmente não vou ler? Alguma pessoa que conheço tem esse livro pra me emprestar? Vou ter onde guardar tanto livro? Vou ter dinheiro para pagar a mudança de tantos livros? Vale a pena?

Acabo só efetivamente comprando os livros que pretendo usar para o trabalho. Que vou sublinhar, rabiscar. Senão, pego emprestado na biblioteca ou de um amigo, baixo uma cópia pirata, ou mesmo, se for curto, leio inteiro na própria livraria. Essa, aliás, é a principal função social da megalivraria de shopping, praticamente um programa de distribuição de renda: eu jamais seria capaz de sentar em uma livraria independente e ler um livro de cabo a rabo.

Hoje, tenho uma estante só para “livros que estão de saída”: aqueles que eu não quero mais e vou vender pro sebo na próxima oportunidade. Nos últimos dez anos, saíram muito mais livros do que entraram na minha casa.

Algumas pessoas usam seus livros como caçadores usavam cabeças de animais:

− Olha o antílope que eu cacei! Olha o Quarup que eu li!

Tenho outra política: se já li o livro e não vou ler de novo, passo adiante. Vendo para um sebo. Doo para uma biblioteca. Repasso a um amigo. Qualquer coisa é melhor do que deixá-lo ocioso entre os meus troféus. Não tem sentido entupir minha casa com livros que não vou mais vai ler.

Entretanto, mesmo depois de doar ou vender quase 90% dos meus livros, ainda assim vivo em uma casa cheia de livros. E, de vez em quando, alguém entra e diz, espantado:

− Puxa, você leu tudo isso?

E respondo:

− Não. Os que eu li já foram embora. Esses são os que eu não li ainda.

* * *

12. — Parei de ter celular

(Essa subseção fica aqui como um artefato arqueológico, para lembrar aos mais jovens que já houve época onde era possível decidir não ter celular.)

Resisti bravamente ao meu primeiro celular. Só cedi, em 1998, quando fui contratado de assistente particular de um executivo norte-americano montando uma start-up de internet no Rio de Janeiro. Parte integrante do trabalho era estar sempre disponível para ele. Quando fui morar nos Estados Unidos, passei o primeiro ano sem celular. Na São Francisco de 2005, eu estava começando a sair com uma pessoa e ela simplesmente não acreditou em mim: “Pode me dar o número, vai. Juro que não sou grudenta. Não vou ligar todo dia!” Celular já era tão ubíquo que ela sinceramente achava mais provável eu estar lhe dando o cano do que ter escolhido não ter essa engenhoca. Minha rotina era simples: eu ou estava em casa, no meu fixo, ou estava em sala de aula, e não podia atender. Então, pra quê celular? No ano seguinte, já em Nova Orleans, acabei comprando um celular por outro motivo prático e bem específico: eu não tinha carro e, ainda mais logo depois do Furacão Katrina, era uma cidade com transporte público catastrófico, poucos táxis e quase nenhum orelhão. Sem um celular para chamar táxis, minha mobilidade ficava muito restrita.

Ainda assim, estava invicto de smartphones. Se alcoólatra não pode beber, muito menos carregar a garrafa no bolso. Se eu tivesse a internet comigo sempre, nunca mais olharia para cima. Me tornaria mais uma daquelas pessoas incapazes de qualquer interação humana que não seja mediada por um retângulo luminoso. Enfim, em um dia dos namorados particularmente feliz, em 2013, voltando de um passeio lindo com a pessoa que eu amava, esqueci o celular no táxi e, talvez influenciado pela alegria, decidi que pronto, não teria mais celular. Chega de andar com essa coleira no bolso.

Um amigo tentou me convencer que ele precisava sim, e muito de celular. Mas, conversando sobre sua rotina, apontei que ele passava quase todo o seu tempo ou no trabalho ou em casa (dois lugares onde havia telefone fixo), ou dirigindo entre esses dois pontos (e é proibido usar celular nessa situação). Nos fins de semana, ele passava 90% do tempo em casa, dormindo, vendo TV, fazendo churrasco, brincando com os filhos, transando com a esposa. Ou seja, ele precisava tanto de celular… exatamente quando?

As poucas horas em que ficava “descoberto” (como se não ter celular fosse um perigo de vida) justificavam mesmo não só o enorme custo financeiro de um celular, mas também, muito pior, o enorme custo psicológico de ter essa coleira sempre no bolso, sempre nos puxando, sempre nos chamando, sempre nos distraindo, sempre nos impedindo de estar plenamente no momento?

Me disse outra amiga:

− Ai, Alex, você não entende! E se precisarem falar comigo numa emergência?

E respondi:

− Quantas vezes, de fato, de verdade, já te chamaram numa emergência? Você tem realmente tantas emergências assim na sua vida? Pense em quanto dinheiro você gastou em celulares desde que comprou o seu primeiro, quinze anos atrás. Some o custo do aparelho, da assinatura, das ligações adicionais, dos apps que comprou, das capinhas descoladas, etc. (Vai ser um número bem grande.) Agora, divida esse número pelo número de emergências nas quais você salvou a sua vida ou a vida de alguém por ter celular. No meu caso, não dá pra dividir cinquenta mil reais por zero. Já gastei cinquenta mil reais me preparando para estar preparado para essa pretensa emergência que nunca aconteceu. Desisti.

Não estou criticando o celular. O celular é uma engenhosa invenção humana. Assim como a diálise. Mas eu também só filtraria meu sangue se fosse realmente necessário. Durante muito tempo, não foi.

Em 2018, morreu meu pai e acabei herdando o smartphone dele. Foi o meu primeiro. Usei quase nada, até que bateu a pandemia. Comecei a dar cursos online e organizar os grupos pelo Whatsapp. Pronto. Aí, infelizmente, virou ferramenta de trabalho. Hoje, infelizmente, duas ferramentas financeiras fundamentais para a minha vida só estão disponíveis para serem usadas pelo celular.

Aí, nesse momento, essa subseção perdeu a razão de ser. O que passou a ser verdade pra mim muito tarde já era verdade para muitas pessoas há muito tempo: subitamente, o capitalismo construiu nossas vidas em tamanha simbiose com essas geringonças que já não é possível viver sem elas. Clang, fez a armadilha, se fechando. A luta agora é para não deixar essa ferramenta nos dominar.

* * *

13. — Parei de ter carro

Um dia, na universidade, uma colega me viu chegando de táxi e me chamou (brincando ma non troppo) de “riquinho”. Ela vivia com a mesma bolsa de estudos que eu, mas, como boa norte-americana, tinha carro. Sentamos para tomar um café e colocamos no papel os nossos custos com transporte: ela e seu carro, eu e meus táxis e carros alugados. Ao final de um ano, eu gastava 30% a menos que ela para fazer rigorosamente as mesmas coisas. Incluindo viagens de fim de semana para cidades próximas. Naturalmente, meus custos verdadeiros eram muito, muito menores, pois eu me deslocava preferencialmente de bonde ou a pé, e usava táxi somente em alguns poucos trajetos, na chuva, carregando peso, etc. (Em Nova Orleans, havia pouquíssimas linhas de ônibus e não me serviam de nada.)

Em 2023, um carro econômico, que custou R$50 mil e roda cerca de 1.200 quilômetros por mês, tem um custo médio mensal de R$1.500 − sem levar em conta seguro do carro, custo da documentação, taxa de juros de um financiamento e possíveis multas de trânsito. Em um ano, por baixo, são dezoito mil reais. (Existem vários links e estudos sobre os custos ocultos dos automóveis no Brasil. Os números pra 2023 eu tirei daqui.) Eu, que durante muitos anos morei na Barra, Itanhangá ou Freguesia e trabalhei e estudei no centro do Rio, rodava só no trajeto casa-trabalho-escola cerca de 1.500km mensais.

Em 2012, na minha rua, em Copacabana, uma vaga de carro na garagem custava sessenta mil reais – nem imagino quanto está custando em 2023. Os custos ocultos de ter um automóvel são numerosos: amortização, leasing, seguro, impostos, manutenção, consertos, gasolina, estacionamento, juros, multas. Pra não falar no custo mais importante: o custo de oportunidade de tudo o que você poderia estar fazendo com dezoito mil reais por ano. Se você morar relativamente perto do trabalho e uma corrida de táxi nesse trajeto custar até R$37, você pode ir e voltar do trabalho de táxi todo dia por esses mesmos mil e quinhentos reais mensais. Sem ter precisado se descapitalizar previamente em cinquenta mil. Sem custos ocultos e imponderáveis, como estacionamento, roubo, batida e conserto. Sem nunca mais precisar procurar vaga ou fazer baliza. (Aliás, se você mora somente a R$37 de táxi do seu trabalho, também poderia perfeitamente ir de ônibus ou a pé. Aliás, se mora mais longe, poderia vir morar mais perto — justamente para não precisar ter carro e poder ir a pé.)

Alugar carros também é mais barato do que parece. Hoje, em Copacabana, usando agregadores de descontos como o rentcars.com, alugo um automóvel por cem reais diários. Nos dias em que tenho compromissos em pontos extremos da cidade, ou em que terei que fazer compras ou transportar volumes, vale mais a pena alugar um carro do que pegar vários táxis. Ainda mais se for pra dividir o custo com minha companheira. Em fins de semana prolongados na serra ou na praia, sai muito mais barato irmos os dois de carro alugado do que de ônibus.

E, naturalmente, o mais barato mesmo é largar de mão o seu elitismo e utilizar o transporte público. Ando muito de ônibus no Rio e em São Paulo. Apesar do que dizem as pessoas que nunca andaram de ônibus, são cidades excepcionalmente bem servidas nesse quesito.

Mas, afinal, para que serve carro? Qual é a verdadeira função de um automóvel?

Na primeira vez em que fiquei sem carro na idade adulta, eu não me senti preso, isolado, impedido de ir e vir. Nada disso. Pelo contrário, continuei livre e conectado e indo-e-vindo, só tendo um pouquinho mais de trabalho. Eu me senti emasculado.

Só fui perceber o quanto emasculado eu me sentia quando, nas primeiras vezes em que voltei a dirigir, senti meu corpo ser inundado por uma potência e uma hombridade como poucas vezes experimentara na vida. Minhas próprias sensações deixaram bem claro para mim qual era a função do automóvel na minha vida. Hoje, minha necessidade de ir-e-vir eu resolvo com ônibus ou com metrô. Minha hombridade e minha potência vão bem, obrigado.

* * *

14. — Vim morar mais perto

Morar perto do trabalho é um dos principais e mais previsíveis indicadores de felicidade na vida de uma pessoa. Em minha encarnação empresarial, eu morava na Barra da Tijuca, trabalhava no centro do Rio e dirigia no mínimo 75km por dia. Assim que quebrei, vendi o carro e me mudei para o subúrbio de Jacarepaguá, no mesmo quarteirão do curso de inglês onde trabalhava. Depois, em Nova Orleans, morava a três quilômetros da universidade, uma caminhada tranquila de uma hora ida e volta todo dia. É uma questão de estilo de vida. Não quero perder minha vida no transporte. A vida é mais que isso.

Uma leitora reclamou:

− Alex, você fala como se fosse tudo muito fácil. No lugar onde eu moro, eu simplesmente não tenho como não ter carro!

Mas então a questão não é nem mais o carro: por que você escolheu morar em um lugar que lhe traz tantas despesas?

Muitas vezes, a gente toma decisões importantes com base num determinado contexto, e, então, o contexto muda, esquecemos de repensar as decisões. Uma amiga morava em um apartamento caro, muito maior do que precisava, que só alugou porque era do lado de um emprego estressante e muito bem pago. Um dia, o site que tinha sido seu hobby começou a lhe gerar uma renda tão boa que começou a pensar em largar o emprego, mas, disse ela, só ainda não fazia isso por medo de não conseguir pagar o aluguel. Ela demorou a entender porque eu estava gargalhando.

− Por que você está rindo, Alex? O aluguel aqui é super caro!

− Sim! Mas você só paga esse aluguel caro porque ele te permite ir a pé para o emprego que te estressa mas paga muito bem. O apartamento só existe por causa do emprego. Se você largar o emprego, pode também pode largar do apartamento e ir viver do seu site em qualquer lugar do Brasil, até em frente à praia em João Pessoa. Não largar o emprego por medo de não poder pagar o apartamento que só existe por causa do emprego é um contrassenso.

De um modo bem concreto, se moro em um bairro barato e afastado onde pago um aluguel baixo (digamos, R$1500), mas que me força a ter um carro (que me custa R$1500 de manutenção mensal), eu estaria financeiramente na mesma se morasse em um bairro mais bem localizado, mais perto do meu trabalho, mais perto da vida cultural da cidade, onde o aluguel fosse o dobro mas não precisasse de automóvel. Aliás, provavelmente estaria melhor: sem perder tanto tempo no trânsito, menos estressado, mais perto das coisas importantes para mim.

Se moro, digamos, na zona oeste de São Paulo e aceitaria um trabalho na zona norte, mesmo significando três horas por dia no trânsito, mas não aceitaria um emprego em Limeira, a 130km de distância, porque é longe demais, então claramente tenho um círculo imaginário dentro do qual é factível trabalhar. O problema é que o círculo da maioria das pessoas que conheço é inviavelmente grande. Para a pessoa que eu sou hoje, meu antigo trajeto casa-trabalho, entre a Barra e o centro, 75km e três horas diariamente, é tão inviável e intolerável quanto morar em Limeira e trabalhar em São Paulo. É uma questão de estabelecer prioridades: se gosto muito da minha casa e não abro mão dela, será que não vale a pena procurar outro trabalho mais próximo?; se gosto muito do meu trabalho e não abro mão dele, será que não vale a pena procurar outra casa mais próxima? (Naturalmente, quase nunca as questões são assim tão fáceis. Mas é importante pelo menos podermos articular essas questões e medir essas escolhas. Que são, repito, escolhas.)

Segundo um estudo do psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, ao optar por um trajeto casa-trabalho mais longo, as pessoas estariam cometendo um “erro de ponderação”, ou seja, uma escolha na qual não levariam em conta justamente as variáveis mais importantes.

“Suponha duas opções de moradia: um apartamento de três quartos localizado no centro da cidade, a dez minutos do trabalho, ou uma McMansão de cinco quartos no subúrbio, a 45 minutos. … A maior parte [das pessoas] escolherá a casa maior. Afinal de contas, um terceiro banheiro ou um quarto adicional são muito importantes para quando os avós vêm passar o Natal, e dirigir duas horas todo dia não é tão ruim assim. … [Q]uanto mais tempo as pessoas demorar para se decidir, mais importante parece aquele espaço adicional. Vão imaginar todo tipo de hipótese (uma grande festa, jantar de ação de graças, mais um filho) na qual aquela mansão no subúrbio seria uma necessidade absoluta. Enquanto isso, a ansiedade no trânsito parecerá mais e mais insignificante, ao menos quando comparada aos benefícios de mais um banheiro. Mas… o banheiro extra é um adicional completamente supérfluo durante pelo menos 362 ou 363 dias por ano, ao passo que um longo percurso rapidamente se torna um fardo diário.”

Se escolhi morar longe do trabalho por causa de um lindo jardim ou de espaçoso quarto de hóspedes, mas todo dia passo duas horas a mais no trânsito, será que vale mesmo a pena? Duas horas a mais no trânsito todo dia… por um quintal que uso quando? Um quarto de hóspedes útil quantas vezes por ano? Vale mais a pena morar num apartamento menor perto do trabalho. E, quando der vontade de curtir um jardim, vou ao Jardim Botânico; quando minha mãe visitar, lhe coloco em um excelente hotel.

Por fim, a pandemia de 2020 nos ensinou que muitas das atividades que precisávamos ir de casa para o escritório para realizar… podem ser até feitas melhor de casa. Prevejo que isso vai causar mudanças sísmicas e imprevisíveis na natureza do trabalho e até mesmo no layout urbano das cidades — que foram desenhadas prevendo que grande parte da população se deslocaria para e do centro todos os dias. Se uma parte significativa das pessoas começar a trabalhar de casa, por exemplo, morar em apartamentos menores mas perto do trabalho vai deixar de ser uma vantagem.

* * *

15. — Comecei a caminhar mais

O artista plástico brasileiro Paulo Nazareth caminhou de Belo Horizonte a Nova York em seis meses e quinze dias. Durante o percurso, para levar um pouco da poeira da América Latina para os EUA, não lavou os pés: só quando chegou no rio Hudson. A caminhada de Nazareth é parte de um projeto artístico, mas as pessoas costumavam andar enormes distâncias simplesmente para chegar em seu destino. Caminhar é o mais antigo meio de transporte da humanidade. O Homo sapiens (provavelmente) chegou nas Américas pelo Estreito de Bhering e, em menos de mil anos, sempre completamente a pé, colonizou todas as Américas. O filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau morava em Genebra e caminhava até Paris — uma distância de quinhentos quilômetros, mas ladeira abaixo. A volta não sei se Rosseau fazia a pé também.

Eu sempre soube que poderia trocar o carro por metrô, ônibus ou táxi, ou até mesmo bicicleta, mas demorei muito até me dar conta de como é fácil, barato e saudável simplesmente… caminhar. O tempo que passamos presos no trânsito nos faz superestimar distâncias que, na verdade, são bem pequenas: Em São Paulo, de Perdizes até a Praça Roosevelt, no centro, são apenas 5km. Da USP para a Paulista, só 6km. Do Parque do Ibirapuera ao Estádio do Pacaembu, outros 6km. No Rio, em 4km se vai do Mirante do Leblon ao Arpoador. E, com mais 4km, se chega ao Leme, sempre pela orla. Tudo é mais próximo do que parece: do Shopping Rio Sul até o Aeroporto Santos Dumont, passando por boa parte da zona sul, são somente 5km. Percorrer seis quilômetros de carro na hora do rush pode levar mais de duas horas: caminhando, demora sempre apenas uma. Na primeira opção, você gasta dinheiro, se estressa e acumula gordurinhas na cintura. Na segunda, você economiza e emagrece.

* * *

Por que queremos o que queremos?

Pois então. Parei de comprar por impulso. Quando quero muito comprar alguma coisa, eu fico querendo. Quase sempre, passa. Se continuo querendo por vários dias, vou lá e compro. Até aí, tudo bem.

Mas, um dia, comecei a me questionar: por que quero tanto comprar essa merda? Por que tenho esses súbitos desejos de consumir xarope açucarado ou carne prensada entre duas fatias de pão?

Quando estou andando pela rua e subitamente penso no meu avô, não é porque meu avô surgiu espontaneamente no meu cérebro, mas porque passei por uma loja onde estava tocando uma música que ele gostava. Às vezes, basta um acorde. Quase sempre, nem percebo de forma consciente. Ainda assim, fatalmente, alguns passos depois, sou tomado por uma súbita saudade do meu avô.

E, se houvesse uma franquia do meu avô em cada esquina onde eu pudesse saciar esse desejo pelo meu avô por dez reais — ou quinze, com batata grande — eu não conseguiria mesmo resistir.*

[*Recomendo o livro Vamos às Compras, de Paco Underhill, que destrincha todos os truques que o capitalismo usa para nos fazer consumir mais.]

* * *

O horror da publicidade

Poucas coisas me horrorizam tanto quanto a publicidade.

Existem coisas piores, como genocídio, escravidão, jornalismo esportivo, jiló, mas elas pelo menos são vistas como diabólicas. O que me horroriza na publicidade é o fato de ela ser socialmente aceita. Me horroriza existir toda uma disciplina, com universidades, livros, seminários, voltada exclusivamente para nos fazer passar a querer coisas inúteis que antes não queríamos. Me horroriza pessoas aparentemente honestas e decentes escolherem dedicar suas vidas ao aperfeiçoamento da lavagem cerebral. Me horroriza ver essas pessoas usando todas as mais recentes ferramentas da ciência para nos manipular tão abertamente. Me horroriza uma atividade tão intrinsecamente perversa estar no mesmo nível de aceitação popular que construir prédio e operar fígado, ensinar sociologia e jogar futebol.

Há muito tempo, não assisto TV nem ouço rádio, não leio jornais nem revistas. A publicidade é como se fosse uma língua — cuja sintaxe é repleta de dedos apontados e pontos de exclamação, sorrisos brancos e hálito puro — e a minha fluência foi se enferrujando pela falta de uso. Agora, estou ressensibilizado. Qualquer merchandising me horroriza. Qualquer outdoor me agride.

No vagão das mulheres, no metrô, uma intimidadora lâmina de barbear de dois metros de altura ordena: “Tenha as pernas mais bonitas do Brasil!” No mesmo vagão, na TV, uma empresa quer enviar amostras grátis de maquiagem e ainda cobrar por isso: “Seja uma mulher com muitos produtos de beleza”.

Aquilo tudo me é tão chocante que eu olho em volta, buscando o contato visual com alguém, buscando por outra passageira tão indignada quanto eu, buscando com uma interlocutora para dizer:

− Caralho! Uma lâmina de barbear gigante dando ordens sobre nossas pernas! Você reparou na violência? No autoritarismo? Na ameaça velada?

Mas não. As pessoas estão todas tranquilas e normais, esperando chegar a próxima estação. Nada ali é estranho ou fora do comum. Não se sentiram agredidas. Em um único comercial do Big Brother, veem meia dúzia de anúncios mais violentos e mais autoritários. Nem entenderiam o meu horror.

Vivo em um mundo onde as cenas cotidianas que mais me enchem de horror são vistas com normalidade por quase todas as pessoas a minha volta. A exploração, a desigualdade, o racismo, a misoginia. Tudo aceitável e dentro dos padrões do bom funcionamento da sociedade.

Então, sinto que estou sempre escrevendo textos de horror. Talvez essa seja a melhor definição de arte engajada: tornar contagioso o horror.

* * *

“Ah, Alex, viver assim pode ser fácil pra você, mas na minha vida, não daria!”

Ao ler um texto como esse, muitas pessoas leitoras sentem uma ânsia irrefreável de ou apontar que a vida delas é diferente da minha (“para quem trabalha fora de casa não dá pra só gastar tão pouco transporte”, etc) ou de interpelar a minha vida pessoal (“sendo dono de imóvel é fácil!”, “duvido que gaste só isso de luz, água, telefone!”, etc). Não tenho nada contra. Acho inclusive que estão certas. A questão é se essa atitude é a mais proveitosa para suas próprias vidas.

Porque esse texto não é sobre a minha vida. A minha vida está apenas sendo utilizada como exemplo porque é a vida de quem escreveu o texto. Naturalmente, os exemplos específicos da minha vida não vão se aplicar às vidas das pessoas leitoras.

Hoje, sou dono de imóvel. Mas não era quando esse texto foi originalmente publicado em 2005, e muito menos nas duas vezes em que quebrei antes disso. Em 2004, por exemplo, eu e minha esposa pagávamos R$600 por um quarto e sala em Jacarepaguá, subúrbio do Rio. Em 2008, já sozinho, pagava trezentos e cinquenta dólares por um quarto em uma república de estudantes em Nova Orleans. O fato de eu ser dono ou não de um imóvel, hoje ou ontem, faz muito pouca diferença para a mensagem geral do texto e, mais importante, para o que o texto pode significar na sua vida.

O objetivo desse texto não é demonstrar que só dá para viver assim quem tem uma vida idêntica à minha ou que a minha vida é o máximo e todas devem me imitar. (Que texto idiota seria esse!)

O objetivo desse texto é, através dos exemplos da minha vida, tão única e singular quanto a de qualquer pessoa, transmitir um novo jeito de pensar nossas despesas e nosso consumo, nossas necessidades e nossos prazeres, para que então cada um de nós possa decidir por conta própria o que quer fazer de nossas vidas tão únicas e tão singulares.

Se você acabou de ler esse texto e escolheu passar os minutos seguintes pensando em como eu sou privilegiado e sem-noção, tudo bem. Eu certamente não discordo. Mas o meu objetivo ao escrever esse texto foi te fazer olhar para si mesma, repensar suas decisões e questionar suas certezas e, talvez, quem sabe, enxergar algumas das infinitas possibilidades que lhe estão abertas.

Só você pode decidir qual dessas duas atitudes (questionar a mim ou se questionar) é mais frutífera e transformadora na sua vida.

* * *

A decisão econômica de ter filhos

A crítica mais frequente a essas minhas reflexões é:

− Ora, Alex, tudo é muito fácil se você não tem filhos!

E eu respondo:

− Sim. Esse é o principal argumento para não ter filhos.

Minha vida só é fácil porque eu, de forma consciente e consistente, fiz escolhas que simplificaram a vida. Porque, entre outras coisas, abdiquei das muitas delícias de ser pai para não ter que sofrer o peso dos muitos encargos. Então, por um lado, eu não tenho um mini-me para ensinar a gostar de poesia medieval (até parece que iria dar certo!) e para me olhar com orgulho de filho, e por outro, nunca vou me endividar pagando aparelho ortodôntico e escolinha de inglês. Fiz minhas escolhas e estou feliz com elas. Não reclamo das minhas escolhas e nem da vida que essas escolhas construíram. Minhas escolhas não são críticas às escolhas de outras pessoas.

Quando alguém que fez a escolha de ter filhos aponta para alguém que fez a escolha de não ter e diz – em tom de recriminação, como se fosse uma crítica − que a vida dessa pessoa é fácil… bem, talvez isso revele mais sobre sua própria ambivalência em relação à sua escolha do que qualquer coisa sobre a outra pessoa.

Cada escolha traz ônus e bônus que só sabe quem a escolheu.

E, naturalmente, quando lutamos pelo aborto, não estamos realmente lutando pelo aborto (ninguém tem como sonho de vida ou plano de futuro realizar um aborto!): nossa luta é para que nenhuma mulher nunca mais tenha que levar a termo uma gravidez contra sua vontade.

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Roberto Rivera (1976-2009)

Quando morei numa república de estudantes em Nova Orleans, um de meus colegas de casa foi um médico texano chamado Roberto Rivera, um homem aberto, inteligente, interessante, humano. Durante o Katrina, em agosto de 2005, trabalhava na Emergência de um dos maiores hospitais públicos da cidade e viveu momentos indescritíveis de intenso horror no pós-furacão.

Quando morou comigo, no ano seguinte, estava terminando sua residência em Ortopedia. Sabia que não queria mais ser médico, sentia-se intelectualmente limitado na profissão, tinha cursado só para seguir os passos do pai, mas já não podia largar. Como pagaria suas enormes dívidas estudantis? Para o banco, o empréstimo para estudantes de medicina é de baixíssimo risco, mas para o estudante, o risco é alto: a medicina torna-se literalmente um caminho sem volta. Um empréstimo que se paga facilmente com um salário de médico em início de carreira torna-se sufocante e inviável para alguém em praticamente qualquer outra profissão. Roberto queria terminar sua residência, pegar seu diploma e fazer uma pós em literatura (já possuía graduação em cinema), mas com a bolsa de estudos que receberia por um doutorado ele não pagaria nem os juros de suas dívidas. Ou seja, simplesmente não podia mais voltar atrás. Suas dívidas efetivamente o impediam de recomeçar do zero, de tomar uma decisão radical, de seguir por um novo caminho. Por causa das dívidas, Roberto estava obrigado a permanecer na estrada já trilhada, a exercer a profissão que esperavam dele, a continuar tudo igual. Talvez tivesse sido bem melhor pra ele simplesmente nunca ter tido acesso a esse empréstimo.

Resolveu a questão do melhor jeito que pôde: conseguiu um emprego como médico do trabalho, fazendo avaliações funcionais; um serviço absolutamente burocrático que não lhe exigia nada, nem mesmo concentração. Graças aos excelentes salários médicos, somente dois dias por semana já bastavam pra ele ir pagando suas dívidas e vivendo frugalmente. No tempo livre, corria atrás dos seus projetos pessoais: lia, aprendeu piano, começou a fazer comédia stand-up. Vivia sua vida com liberdade.

Em agosto de 2008, nos encontramos pela última vez na véspera do furacão Gustav. (Nada pode ser mais Nova Orleans do que esbarrar nos amigos fazendo compras para a evacuação forçada da cidade.) Ele tinha acabado de entregar seu apartamento e estava prestes a mochilar pela América Central. Não chegou a ir. No ano seguinte, em abril, me pediu para ser sua referência na adoção de um cachorrinho. Apoiei e dei força: ele era ótimo com o meu Oliver. Foi nossa última troca de emails. Ninguém entrou em contato comigo. Penso sempre nesse cachorrinho, que nunca conheci e que teria sido um grande companheiro do Oliver. Mas Roberto, ao invés de assumir um compromisso com a vida por mais quinze anos, preferiu morrer. Em julho, no Texas, cometeu suicídio.

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Não existe liberdade sem independência financeira

O endividamento progressivo e irremediável de toda uma classe econômica é uma das mais perfeitas ferramentas de controle social jamais inventadas. Nos EUA, a maioria das pessoas (que não vêm de família rica e não ganham bolsa de estudos) precisa tomar dinheiro emprestado para pagar a universidade e se sustentar. Quando se formam, já estão sobrecarregadas com enormes dívidas, que passam muitos e muitos anos obedientemente pagando — como ovelhinhas bem-ajustadas e bem-comportadas que são, já tendo internalizado o código de ética capitalista que diz ser mais ético sacrificar suas famílias do que dar um calote num banco. Num banco! (No Brasil, com a ascensão da nova classe média e com a proliferação de novas linhas de crédito e novas universidades caça-níqueis, estamos indo pelo mesmo caminho.)

Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de pessoas escravizadas. Quem passa o primeiro terço da sua vida profissional afogada em dívidas vai ser muito menos apta a participar ativamente de sua comunidade como uma cidadã. Pior: quanto mais pobre, mais dívidas terá e menos poderá de fato participar, deixando, mais uma vez, a arena política e a vida pública nas mãos das pessoas mais ricas e mais ociosas. Jovens assim, sob o peso de tantas dívidas, tornam-se mais conservadoras e alienadas, mais avessas aos riscos, mais atraídas por empregos seguros e medíocres, menos propensas às atividades intelectuais, acadêmicas, artísticas, atléticas e também (para não dizerem que o argumento é esquerdista) empresariais e empreendedoras. (Aliás, o pensador que melhor desenvolve esse argumento é o canadense John Ralston Saul, de direita.)

Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de ovelhinhas mansas, de pessoas tão preocupadas em não serem despedidas ou em arrumar um jeito de pagar a próxima mensalidade escolar da filha, que simplesmente não têm tempo nem disposição para questionar o governo, exercer a cidadania, participar da comunidade, ajudar quem precisa. Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de pessoas tão amedrontadas e acuadas que preferem abrir mão de seus direitos, de seus ideais, de seus princípios, autorizar o governo a filmar as ruas e a grampear os telefones, tudo o que quiserem fazer, se somente isso lhes fizer se sentir um pouco menos de medo.

Parafraseando um velho ditado, quem tem dívida, tem medo. E quem tem medo, não é livre. A verdadeira liberdade apenas pode existir com independência financeira e sem medo.

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O melhor modo de conseguir dinheiro ainda é o trabalho

Mas… e se você conseguir essa tal de liberdade aí? Sabe o que fazer com ela? Quando você não está vendendo seu tempo livre e sua energia vital para realizar os projetos de outras pessoas em troca de dinheiro… quem é você?

O trabalho não é, por definição, aprisionante e terrível. Somos seres construtores, produtivos. Idealmente, o trabalho nos permite dar vazão ao nosso afã criador e, ao mesmo tempo, ganhar o dinheiro que precisamos para viver nossa vida e realizar nossos projetos pessoais. Muitas vezes, entretanto, o trabalho custa caro: ele suga quase toda nossa energia vital e nos dá somente uns míseros tostões em troca. Nesses casos, sim, o trabalho é uma prisão.

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A segunda-feira é inocente

Se eu detesto a maldita segunda-feira…

A culpa não é desse período de tempo em que a Terra demora para girar em torno de si mesma que convencionamos chamar de segunda-feira, mas que também poderia se chamar paralelepípedo, clitóris ou Carlos Arthur. Mas das escolhas erradas que fiz ao longo da vida e me levaram ao ponto de detestar o dia em que volto à vida profissional que criei como o fruto cumulativo das minhas escolhas. E quem diz que essas decisões foram erradas é o meu desespero durante a semana, o meu porre de sexta à noite, minha ressaca de sábado, minha melancolia de domingo e meu mau-humor de segunda. Enquanto isso, a segunda-feira, coitada, fica lá paradona no calendário e nunca fez mal a ninguém. O que foi que eu fiz com a minha própria vida?

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Quem são meus ícones?

Há muitos anos, eu odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas. Mas pensava:

− O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, também consigo.

E lá ia eu me torturar mais um pouco. Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença. Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:

 − Se elas conseguem, eu também consigo!

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Do que temos medo?

Muitas vezes, jovens pessoas pré-universitárias me fazem uma variação do comentário:

− Ah, eu queria muito fazer ABC mas vou fazer XYZ, sabe como é, ABC não dá dinheiro…

Morando com o pai e a mãe, vivendo de mesada, ainda nem sabendo quanto custa a vida… e já abdicando de fazer o que gosta por medo desse custo! E pergunto:

− Você tem medo exatamente do quê?

Gosto muito de fazer essa pergunta. Quando pensamos concretamente sobre nossos medos, acabamos percebendo que o bicho-papão dentro do armário era só um ursinho de pelúcia caolho. E elas respondem algo como:

− Ah, sei lá, de não conseguir me sustentar, né?

Quem nos coloca tanto medo na cabeça justo na época em que estamos mais borbulhantes de potencial? Ser rico é difícil, mas se sustentar é fácil. Todo mundo que fez artes cênicas e oceanografia se sustenta. Quem não fez, de um jeito ou de outro, também. Talvez não dê pra comprar todas as porcarias que são anunciadas na televisão, carro do ano ou o novo iTralha, mas dá pra se sustentar sim. E ser uma pessoa plena e satisfeita.

Então, exatamente do quê temos medo? De não conseguir sobreviver ou de não conseguir consumir? De não conseguir pagar nossas contas ou de sermos a única pessoa da turma sem carro ou sem iPorra? Vale mesmo a pena abdicar de uma vida produtiva e significativa, trabalhando em atividades que fazem sentido pra nós, só para podermos comprar mais roupa de grife ou trocarmos de carro mais vezes?

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Trabalhar para viver ou viver para trabalhar

Quando larguei meus estudos nos Estados Unidos e voltei para o Brasil, meu plano era ser escritor em tempo integral. Viver de literatura. Tralálá. Como tantas pessoas escritoras antes de mim, resolvi ganhar a vida traduzindo e, enquanto isso, escreveria minha ficção literária. Se Machado e Clarice, Eça e Nelson, produziram suas obras assim, por que não eu?

Depois de um processo seletivo rigoroso que se arrastou por quase um ano, consegui uma colocação de tradutor de literatura na maior editora do Brasil. Pagavam vinte e cinco reais por página. Eu traduzia uma página por hora, em média. Então, trabalhando só pela manhã, das oito ao meio dia, conseguia ganhar cem reais por dia, quinhentos por semana, dois mil por mês – na época, o salário mínimo era R$545. Com esse valor, já conseguia sobreviver com folga na minha rotina espartana. Mais importante, teria o resto do dia e os fins de semana completamente livres para fazer o que quisesse: ler, dormir, transar, trabalhar nos meus projetos literários, até mesmo pegar frilas remunerados, se quisesse mais dinheiro. Ou seja, essas quatro horas diárias traduzindo, que poderiam ser feitas em casa ou mesmo viajando, me possibilitariam a liberdade de viver minha vida nos meus próprios termos. Ou seja, tudo o que um emprego saudável idealmente tem que ser.

Só não antecipei um pequeno probleminha: Para mim, traduzir se revelou uma das atividades mais chatas, tediosas, enlouquecedoras da humanidade. Frequentemente, as quatro horas se transformavam em oito, nove, dez. Eu adiava o começo do trabalho tudo quanto podia. Limpava a privada, lavava a louça, esfregava o chão. “Deixa só limpar o filtro do ar-condicionado e já começo.” Minha casa nunca esteve tão limpa. Quando finalmente começava, bastava uma hora de tradução para liquefazer meu cérebro e eu implorava uma pausa para mim mesmo: “Deixa só eu dar uma olhadinha na internet por cinco minutinhos…” Três horas depois, tendo assistido todos os vídeos de gatinho disponíveis no ciberespaço, lá estava eu ainda tentando me esforçar para voltar ao trabalho. Para mais uma hora de tortura. No final do dia, eu estava exausto, cansado, sem energia para mais nada — e tinha produzido somente as tais quatro páginas (às vezes, menos) que deveria ter terminado até o meio dia.

Depois de alguns meses, percebi que tinha caído na armadilha. Não por culpa do trabalho em si, reparem, mas por minha incompatibilidade com ele. O fato é que eu estava vivendo para trabalhar, não trabalhando para viver. A tradução não estava possibilitando que me dedicasse aos meus projetos pessoais: pelo contrário, ela estava sugando o tempo livre e a energia vital que dedicaria a esses projetos. Eu traduzia da manhã à noite e, quando ia dormir, era para descansar e estar desperto e atento e apto para traduzir o dia seguinte inteiro também. Clang!

E, pior, estava me vendendo barato. Nem quinze mil reais, nem qualquer soma imaginável de dinheiro, valem todo o nosso tempo e energia vital. E estava me deixando escravizar por dois mil. (Suje-se gordo!, disse o personagem corrupto no conto de Machado de Assis.)

Resisti muito à decisão. Tinha quarenta anos e era praticamente inimpregável, com cada vez menos habilidades que o mercado valorizava e remunerava. Bem ou mal, traduzir literatura era minha área. Clarice Lispector vivia disso! Será que não podia me esforçar mais um pouquinho? Será que não podia me esforçar mais um pouquinho para ser como as pessoas que amavam aquilo que para mim era tortura? Pior, era a última atividade remunerada que eu podia exercer que meu pai entenderia, que acalmava um pouco o seu medo perene de que eu um dia acabaria mendigando nas ruas: “Sim, pai, estou traduzindo literatura para a maior editora do Brasil, ganho tanto, faço tantas páginas em tantas horas, consigo tirar tanto por mês, tudo vai ficar bem.” E agora, nem isso.

Algumas vezes, as pessoas leem esses meus textos e comentam, revoltadas:

− Ah, Alex, do jeito que você fala parece tudo muito fácil, né?

Nada do que falo aqui é fácil. Nadinha. Se fosse fácil, não precisa escrever esse livro. Demorei três anos e seis livros para tomar a decisão de sair da editora. Só eu sei como foi difícil. Mas, pra mim, foi necessário.

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Quanto nos custa o nosso trabalho?

Bruno, como tantos homens no começo dos trinta, vive pra sua carreira, trabalha demais e está sempre cansado. Chega em casa com o corpo tão moído e o cérebro tão entorpecido que não consegue fazer nada de útil ou produtivo a não ser se embatatar diante da TV e zapear entre seriados.

Em 2004, quando passei uma semana em sua casa, tinha acabado de comprar o DVD da primeira temporada da Super-Máquina, uma das séries mais idiotas da década de oitenta. Para assistir as aventuras de um agente secreto cabeludo que viaja pelos EUA resolvendo crimes com seu carro falante inteligente, Bruno pagou duzentos reais – na época, quase o valor de um salário mínimo, que era R$260.

Entre confidências de fim de noite, confessou admirar minha vida. Disse querer muito ver a vida como vejo, não dar tanta importância às coisas bobas, saber relaxar mais, viver de forma simples e serena. Respondi que viver a minha vida era muito fácil. Trabalhar menos, gastar menos, nada poderia ser mais simples. Mas tinha um preço: era preciso sair do circo de consumo. Abdicar de ser consumidor.

E o DVD da Super-Máquina era o exemplo perfeito. Ele tinha sido comprado com duzentos reais que Bruno ganhara trabalhando quinze horas por dia, às vezes seis dias por semana, em um emprego exaustivo e massacrante.

− Ah, poxa, eu mereço uma diversãozinha leve! – disse ele, mais pra si mesmo do que para mim. Afinal, o DVD custara somente meia hora do seu trabalho, não era nenhum grande sacrifício. (Para fins de comparação, nessa época, eu ganhava sete reais a hora num cursinho de inglês do subúrbio e teria tido que trabalhar trinta horas para comprar o DVD.)

Então, de fato, se Bruno trabalhasse menos e ganhasse menos, se não tivesse um trabalho com tanta pressão e com tantas responsabilidades, ele não teria duzentos reais dando sopa assim para gastar em besteira. Provavelmente, teria que investir esses duzentos reais em arroz, feijão, leite, batata.

Mas, por outro lado, se não trabalhasse quinze horas por dia, às vezes seis dias por semana, em um emprego escravizantes que lhe sugava a alma e lhe cuspia de volta em casa completamente incapaz de qualquer atividade remotamente produtiva, ele não estaria sempre exausto e não precisaria anestesiar sua consciência assistindo DVDs de seriados idiotas.

É tudo uma coisa só, una, indivisível, duas partes inextricáveis do mesmo mecanismo: o mesmo mercado que nos possibilita os meios de consumir é o que nos faz precisar consumir.

De um modo bem real, Bruno não tem “tempo livre”. Quando não está trabalhando, está descansando o cérebro de tanto trabalho e se preparando para poder trabalhar mais. Mesmo quando está longe do trabalho, seu tempo é sempre definido em função do trabalho.

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O tempo livre não é livre

O rabugento Theodor Adorno, um dos principais expoentes da assim chamada Escola de Frankfurt, é um dos meus pensadores preferidos do século XX. Ao lado de Max Horkheimer, ele expôs uma das verdades mais incômodas da nossa civilização: como o projeto iluminista, tão secular e racional, desembocou (fatalmente?) no nazismo. Depois de sair de sua Alemanha natal, morou nos Estados Unidos pelo resto da vida, onde foi um dos principais observadores e teóricos da indústria de entretenimento em massa que começava a se consolidar. Adorno é daqueles poucos pensadores que é tão lúcido e interessante que se lê por prazer. Seu curto ensaio, “Tempo livre”, disponível no livro Indústria cultural e sociedade, é dos mais acessíveis de sua obra.

Segundo Adorno, antes de mais nada, o “tempo livre” não é livre, mas está acorrentado ao seu oposto. É uma paródia de si mesmo. A ética de trabalho capitalista teria contribuído para tornar o “tempo livre” cada vez mais vazio e irrelevante:

“Por um lado, durante o trabalho, devemos estar sempre atentos e não fazer gracinhas. Essa é a base do trabalho assalariado e já internalizamos essas leis. Por outro, nosso tempo livre não deve ter nada a ver com nosso trabalho, presumivelmente para que possamos trabalhar de forma ainda mais eficiente depois. Por isso, a maior parte das atividades de lazer são vazias e inócuas.”

Lendo os jornais, Adorno repara que os repórteres sempre perguntam às celebridades por seus hobbies e começa a refletir sobre a existência ou não de seus próprios hobbies:

“Levo muito a sério todas as atividades que exerço fora dos limites da minha profissão. Ficaria horrorizado de imaginar que são hobbies — um passatempo, uma distração. Na minha vida, produzir música, ouvir música, ler com toda a minha atenção, são atividades fundamentais. Chamá-las de hobbies seria uma ofensa.”

A própria onipresença da pergunta “qual é o seu hobby” indicaria uma presunção de que todas as pessoas têm um hobby e, consequentemente, que você seria uma excêntrica se não tivesse. Existiria até uma “ideologia do hobby”, criada pelo capitalismo para lucrar em cima do tempo livre, essa nossa “liberdade organizada e compulsória”. Por exemplo, continua ele, acampar costumava ser uma atitude anti-establishment, de quem não aguentava mais ser sufocado por regras sociais e queria somente ir para o meio do mato dormir sob as estrelas. Em breve, entretanto, essa necessidade começou a ser canalizada, estimulada e institucionalizada pela indústria do camping:

“A indústria do camping, por si só, não teria como forçar ninguém a comprar tendas e trailers, e nem gigantescas quantidades de equipamento, se essa necessidade já não existisse nas próprias pessoas. Mas o que a indústria faz é pegar essa ‘necessidade de liberdade’ e funcionalizá-la, estendê-la e transformá-la em um negócio. Aquilo que as pessoas queriam é agora jogado de volta na cara delas. O tempo livre é tão facilmente cooptado porque as pessoas já internalizaram sua não-liberdade. Mesmo nos momentos em que se sentem mais livres, não têm noção de como são completamente não-livres.”

Para Adorno, a educação infantil efetivamente bloquearia o desenvolvimento da imaginação. E essa falta de imaginação, cultivada e inculcada pela sociedade, deixaria as pessoas inertes e indefesas em seu tempo livre. A própria pergunta “o que fazer com o tempo livre”, como se fosse uma questão de esmolas e não de direitos humanos, como se estivéssemos decidindo o que fazer com as sobras do jantar e não pensando uma questão humana fundamental, seria fruto dessa falta de imaginação.

“As pessoas hoje em dia fazem tão pouco com seu tempo livre porque sua falta de imaginação as tornou incapazes de apreciar a liberdade. Tanto lhes negaram a liberdade, seu valor foi tão depreciado por tanto tempo, que elas não a querem mais. O que precisam agora é de diversão inócua, sempre fornecida com condescendência e desprezo pelo conservadorismo cultural, para que possam recuperar suas forças para trabalhar ainda mais. Afinal, de acordo com a organização social que o conservadorismo cultural defende, é só isso que se espera delas. Essa é a razão pela qual as pessoas continuam acorrentadas aos seus trabalhos, e ao sistema que as treina para sempre trabalhar, mesmo quando esse sistema já não precisa nem exige a sua força de trabalho.”

O esporte, para Adorno, seria uma das principais arenas onde as pessoas treinariam, inculcariam e sublimariam muitos dos comportamentos exigidos e valorizados pelo mercado de trabalho, como raça, dedicação, competitividade, disciplina, etc:

“Frequentemente é no esporte que as pessoas pela primeira vez infligem em si mesmas (ao mesmo tempo em que que celebram isso como um triunfo de sua liberdade) precisamente aquilo que a sociedade irá infligir neles depois e que eles precisam aprender a gostar.”

Portanto, conclui ele, o tempo livre não é o oposto de trabalho. Em um sistema que idealiza o emprego em tempo integral, o tempo livre nada mais é do que uma continuação sub-reptícia do trabalho.

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O tempo (realmente) livre não é lucrativo

As atividades mais incríveis e prazerosas da vida são completamente (ou quase) gratuitas: estar com as pessoas que amamos, dormir, transar, se exercitar, passear, caminhar pela natureza, nadar no mar ou em uma lagoa, ler, escrever. Mas todas exigem que estejamos inteiras, atentas, capazes, aptas. E é justamente isso que a maioria dos empregos rouba de nós, em troca de uma compensação inadequada, em troca de uma compensação que não compensa tudo o que nos foi tirado.

Quem trabalha menos, ganha menos e tem mais tempo livre, pode se dedicar mais a essas atividades (semi) gratuitas e naturalmente refratárias ao circo do consumo. Quem trabalha muito, ganha muito dinheiro e não tem mais quase nenhum tempo livre, acaba naturalmente resolvendo todas suas questões com dinheiro. Afinal, na falta de tempo e de energia, a única ferramenta que lhe sobrou em abundância é o dinheiro.

David Cain ficou nove meses mochilando pelo mundo e, depois, voltou ao mercado de trabalho. No artigo “Seu estilo de vida foi projetado”, ele compartilha algumas coisas que percebeu:

“Faz poucos dias que voltei ao trabalho, e já percebi que as atividades mais integrais estão rapidamente sumindo da minha vida: caminhar, me exercitar, ler, meditar e escrever. A similaridade evidente entre estas atividades é que elas custam muito pouco ou nenhum dinheiro, mas exigem tempo. (…) Enquanto estava fora, eu não pensaria duas vezes antes de decidir passar o dia explorando um parque nacional ou parar por algumas horas para ler um livro na praia. Agora esse tipo de coisa está fora de questão. Fazer qualquer uma dessas coisas me tomaria um dia inteirinho do meu precioso fim de semana! (…) [O] dia de trabalho de oito horas é muito lucrativo para grandes empresas, não graças à quantidade de trabalho realizada nessas oito horas (o trabalhador médio de escritório trabalha de fato por menos de três dessas oito horas), mas porque faz com as pessoas se tornem mais propensas a comprar. Fazer com que as pessoas tenham pouco tempo livre significa que elas vão pagar bem mais por conveniência, gratificação e qualquer outro alívio que possam comprar. Faz com que elas continuem assistindo televisão, e os seus comerciais. As mantém pouco ambiciosas fora do trabalho. Fomos conduzidos a uma cultura projetada para nos deixar cansados, famintos por indulgência, dispostos a pagar muito por conveniência e entretenimento e, mais importante, vagamente insatisfeitos com as nossas vidas, a ponto de continuar querendo coisas que não temos. Nós compramos tanto porque sempre parece que tem alguma coisa faltando na nossa vida.”

A escritora francesa Simone Weil, intelectual fundamental do século XX, trabalhou como operária metalúrgica por um ano e, mais tarde, escreveu sobre como a vida da fábrica humilha e oprime as pessoas trabalhadoras. Sobre a jornada de trabalho, ela disse:

“[Algumas reformas sociais] anunciam uma diminuição, aliás ridiculamente exagerada, da duração do trabalho; mas transformar o povo numa massa ociosa, escrava duas horas por dia, não é nem desejável — se fosse possível — nem moralmente viável, caso fosse materialmente realizável. Ninguém aceitaria ser escravo por duas horas; a escravidão, para ser aceita, deve durar por dia o bastante para quebrar alguma coisa dentro do homem.” (Em “Experiência da vida de fábrica. Marselha, 1941-1942”, disponível em “A condição operária e outros estudos sobre a opressão”)

Pessoas inteiras, atentas, capazes, aptas, não são reféns do consumo. Portanto, o mundo inteiro foi projetado para que você nunca, nunca esteja assim — mas sempre buscando estar. Não tem problema. Basta tomar um espresso machiato de manhã, comprar um day pass de luxe no nosso fitness spa, beber um vinhozinho francês à noite, e então dormir no nosso colchão super premium, e garantimos que amanhã você estará inteira, atenta, capaz e apta. Se não estiver, bem, temos outros produtos que, arrá, esses sim vão resolver. Pode confiar.

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O capitalismo é canalha, mas não te força a nada

A humanidade sempre sonhou que o avanço tecnológico libertaria o nosso tempo. No século XIX, demorava-se um mês pra fazer cem sapatos. Com os avanços da tecnologia, podemos fazer esses cem sapatos em um dia. Não é perfeito? Mais tempo para brincar, passear, andar sob o sol. Enquanto isso, o capitalismo nos acena com cada vez mais produtos interessantes (iTralhas, TVs de plasma, carros com GPS turbo de fábrica), que nos obrigam a trabalhar cada vez mais para poder ganhar cada vez mais dinheiro para consumir cada vez. E quanto mais consumimos, mais queremos consumir, e mais temos que trabalhar pra poder consumir ainda mais.

Sem estimular essa nossa ganância primordial, o capitalismo quebra. Seria desperdício, pensa o sapateiro, fazer cem sapatos em um dia e deixar o equipamento ocioso. É muito tentador fazermos três mil sapatos por mês. Podemos expandir os negócios, ganhar mais dinheiro, economizar, ter mais segurança. Sei lá, pode acontecer alguma coisa, o futuro a gente nunca sabe. É melhor aproveitar pra ganhar agora. (Quase dá pra ouvir o clang metálico quando a armadilha se fecha.)

Apesar de insidioso e perverso, de roubar pirulitos de criancinhas e repassar correntes, o capitalismo tem a grande qualidade de nunca forçar ninguém a comprar xarope açucarado ou retângulos luminosos chineses. Nós, os consumidores, escolhemos acreditar nos discursos que queremos acreditar. Tudo nos impulsiona a querer comer carne prensada entre duas fatias de pão, de anúncios na TV a outdoors. Inventaram toda uma disciplina para nos fazer comprar mais lixo. Desde a neurociência até a cromoterapia, essa indústria milionária contratou toda a ajuda possível para nos convencer a comprar desodorante para mascarar os cheiros que essa mesma indústria inventou que são ruins.

E, ainda assim, incrivelmente, contra toda a lógica e contra toda a expectativa, é de fato incrivelmente fácil não-comprar dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. O ônus da ação é completamente deles: tudo o que você precisa fazer é nunca entrar na casa do palhaço e pedir a carne prensada no pão. Para quebrar o escravizador paradigma capitalista de mais trabalho e mais consumo, mais consumo e mais trabalho, basta um simples ato de vontade. Basta você dizer para si mesma:

− Não, eu não vou pegar esse emprego, porque ele vai me fazer passar dez horas por dia utilizando minha finita energia vital para realizar os objetivos de outras pessoas, e ninguém merece isso. Ele paga oito mil por mês e, sim, preciso de oito mil por mês se quiser comprar o DVD da Super Máquina, ou passar férias em Bonito, ou comprar um novo home theather, mas não preciso de oito mil pra viver. A minha vida vale mais. Oito mil não paga a minha vida. Oito mil não me compra.

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Uma vida inviável

A baixa classe média, logo acima da pobreza, com medo de cair nela e precisando de símbolos de status visíveis para se distinguir dela a todo custo, é a principal vítima de um perverso jogo de aparências que inflige em si mesma.

Meu amigo João Carlos, jornalista formado por uma universidade topo de linha, trabalha de redator em uma grande cadeia varejista e ganha R$4 mil líquidos por mês. Seus empregadores esperam que ele esteja sempre inteirado das últimas novidades culturais, que seja lido e viajado, que conheça os últimos livros e filmes, que fale inglês e espanhol e que ainda trabalhe todo dia de roupa social. Fazendo um cálculo rápido, ver três filmes no cinema, comprar dois livros, assinar dois streamings e um grande jornal já custam quase um sexto do salário mensal de João Carlos — sem nem começar a levar em conta tudo o que gasta almoçando fora, pagando aluguel, renovando seu guarda-roupa e mantendo seu carro.

João Carlos precisa almoçar fora, pois não pode ser o único da equipe comendo uma marmita na copa. (O que pensariam dele? Poderia prejudicar sua futura ascensão na empresa!) Então, todo dia, ele vai com colegas para o restaurante mais barato das redondezas, onde o almoço executivo é quarenta reais e a conta final não sai por menos de sessenta. Sessenta reais por almoço vezes vinte e dois dias úteis no mês, e João Carlos gasta R$1.320 comendo fora. Quase um terço de sua renda líquida. Em única refeição. Sem contar café da manhã e jantar. Sem computar todas as vezes que ele e colegas escapam do escritório no meio da tarde pra tomar um cappuccino doppio de quinze reais na franquia de café da esquina.

O custo anual de manter um automóvel no Rio ou em São Paulo é de dezoito mil reais por ano, sem nem levar em conta o valor do carro em si. Mas João precisa desse passivo anual de dezoito mil, pois não poderia jamais ir de ônibus pro trabalho. Os ônibus estão sempre cheios e apertados, ele chegaria suado e amarrotado — e teria que trabalhar ao lado de pessoas impecáveis, que vieram para o escritório dirigindo seus carros no ar condicionado. “Eu mereço esse pequeno luxo!”, ele me disse uma vez. (Não é pequeno, João: são dezoito mil reais por ano.)

Pela manhã, João Carlos não pode chegar arriscar chegar atrasado, pois o chefe olharia feio e ele seria o primeiro a rodar na próxima leva de demissões. Como o trânsito é imprevisível, ele sai muito cedo, dirige tenso por todo o trajeto com medo do imprevisto fatal que lhe atrasaria e quase sempre acaba chegando bem antes da hora.

No fim do expediente, entretanto, ele nunca, nunca saiu às cinco. A única outra funcionária que fazia questão de sair sempre às cinco — sabe como é, parece que tinha família e outras prioridades de vida — foi demitida na primeira leva de “reestruturamento de pessoal” logo depois de contratada. Disse o chefe: “Essa daí não vestia a camisa”! Então, João Carlos sai do escritório lá pelas sete, oito. Quando não acontece uma emergência profissional, claro. Nas muitas noites em que fica realmente até tarde (como “oito da noite” virou horário normal, “até tarde” passou a significar “até de madrugada”), a empresa compra pizzas para todos e João Carlos, sem nenhuma vergonha ou autoconsciência, até com orgulho, ainda posta nas redes sociais a marca da sua escravidão, com a legenda: “Eba! Dia de pizza de firma!” Postado às 22:30. Ontem. E anteontem também.

João Carlos, que é pago por quarenta horas semanais, passa cerca de sessenta no escritório. Sem contar o tempo que passa realizando atividades que só existem em função do trabalho, como se arrumando de manhã, almoçando fora e se deslocando entre casa e escritório. (Quantas horas será que sobram?) A empresa desconversa sobre horas extras e João Carlos nem fala no assunto, não quer parecer chato ou insistente: “Hora extra é coisa de peão, eu vou ser gerente”. João Carlos poderia doar essas vinte horas de trabalho semanais para alguma instituição de caridade, ensinar inglês na periferia ou servir sopa no abrigo, mas escolhe doá-las para uma grande empresa multinacional cujo lucro, ano passado, foram alguns bilhões.

Quando chega em casa, João Carlos também não está livre. Os chefes e os colegas ligam, mandam mensagens e emails. Tem sempre algum dever de casa, alguma coisa pra fazer, algum texto pra ler.  Se o chefe passa o link de um artigo relacionado ao trabalho às nove da noite, pergunta sobre ele às nove da manhã do dia seguinte e João Carlos não leu, pega supermal. Cadê o comprometimento? Teve um sábado em que deu um chabu e toda a equipe foi reconvocada correndo para a firma. Só uma moça não apareceu: parece que estava passeando com a família e não levou o celular. Como disse o chefe de João Carlos enquanto entrevistava novas pessoas para o cargo dela: “Ninguém é insubstituível!”

João Carlos não tem renda suficiente para pagar um plano de saúde que considere decente mas foi educado para se achar acima do SUS, que seria somente para pessoas pobres e miseráveis que morrem na fila do hospital, etc. Então, acaba fazendo um sacrifício financeiro desproporcional para pagar um plano de saúde de baixa qualidade, que não dá direito a quase nada e provavelmente vai jogá-lo nos braços do SUS se precisar de atenção médica intensa. Tomara que isso nunca aconteça: seria fatal para sua autoestima e para sua autoimagem se ver ou ser visto como uma “dessas pessoas” que usam o SUS.

João Carlos ainda não tem filhos ou filhas mas também faria um sacrifício financeiro excepcional para colocá-las todas em escola particular. Imagine o que pensariam dele se vissem sua filhinha saindo do prédio para pegar o ônibus (!) vestindo um uniforme da rede pública! Sua esposa pediria o divórcio e o juiz, entendendo a seriedade da situação, talvez até considerasse que matricular a filha em escola pública quando se tem recursos (mas tem mesmo?) para uma particular qualifica como maus-tratos e negligência. Perigava de João Carlos perder a guarda e ainda ir preso.

Finalmente, talvez o mais cruel. Os bancos, sabendo do inviável estilo de vida que João Carlos impôs a si mesmo, lhe oferecem crédito facilitado e pré-aprovado, cheques especiais e cartões de crédito, e ele, que não pode ser o único da empresa que não passa o verão em Ubatuba, que não almoça com o chefe em restaurante, que não tem carro, acaba aceitando. (*CLANG*)

Naturalmente, João Carlos não tem como morar sozinho: a conta não fecharia. Aliás, a conta já não fecha, mas morando sozinho seria inviável até se endividando. Portanto, aos trinta e seis anos, ele ainda mora com os pais, ainda no mesmo quarto onde cresceu, ainda cercado por muitos dos brinquedos da infância, ainda tomando o chocolate quente da mãe, ainda sem nunca ter lavado sua própria roupa, esfregado sua própria privada, cozinhado sua própria comida.

João se acha muito maduro, muito adulto, muito independente. Diz que na casa dos pais ele vive com toda a liberdade e independência, e que ainda está economizando. “Um dia, vou comprar um apartamento.” Enquanto isso, os pais, funcionários públicos aposentados, morrem de orgulho do filhão e seu emprego prestigioso em uma sólida multinacional que conhecem desde criancinhas.

Dei aulas em uma universidade norte-americana por vários anos. Um dia, o João Carlos me perguntou se os meus alunos eram assim tão imaturos quanto parecia nos filmes. Respondi que não. Sim, as pessoas que eu ensinava tinham dezoito anos, estavam morando sozinhas pela primeira vez, bebiam demais e faziam muita, muita merda. (Eu sei bem. Minha universidade era considerada a melhor party school dos EUA.) Apesar das bebedeiras e das fraternidades, meus alunos norte-americanos, aos dezoito, eram mais maduros, mais autônomos, mais independentes do que certamente todos os meus amigos-brasileiros-classe-média-morando-com-os-pais aos dezoito.

Concretamente, de fato, na ponta do lápis, João Carlos paga para trabalhar. O emprego de prestígio na verdade não é nem mesmo um subemprego: é um trabalho voluntário. O que o conglomerado multinacional lhe paga não é um salário: é um pró-labore que cobre alguns dos custos (mas não todos) que ele incorre em seu voluntariado.

Se João saísse da casa dos pais toda manhã e passasse o dia mendigando, ele gastaria menos com despesas fixas, teria mais liberdade de ir e vir ao ar livre e, certamente, no fim do mês, ainda lhe sobraria mais dinheiro para gastar no que quisesse.

* * *

O aumento de padrão de vida é uma armadilha

Não somos movidos a dinheiro: somos movidos a status. Quando vamos entrando na classe média, quase sempre pela porta de trás, tímidas ainda, nem reparamos nas aves de rapina começando a circular sobre nossas cabeças. Subitamente, aos olhos do deus-mercado, nos vemos transformadas em consumidoras em potencial, futuras correntistas, prováveis investidoras, escravas predestinadas. Lá adiante, dentro de uma gaiola dourada, incríveis brinquedinhos reluzentes com os quais nunca tinham nos deixado brincar. Como resistir? Finalmente, estamos tão entretidas com o joguinho do celular que nem ouvimos quando fecham a gaiola e jogam a chave fora. *Clang*

Conheço pessoas amigas que ralaram anos a fio em empregos terríveis, sofreram todo tipo de privação, aguentaram tudo estoicamente: pagaram suas contas com sufoco, mantiveram sua dignidade com esforço, não se deixaram corromper. E, no entanto, bastou começarem a ganhar um pouco a mais para se perderem completamente. O labirinto só tem porta de entrada.

Funciona mais ou menos assim.

Primeiro, você arruma um trabalho. Fica quase envaidecido de alguém achar que merece o salário que lhe ofereceram e se promete fazer um excelente serviço! É o começo da sua vida profissional. Uau! Aí vem a fase da demanda reprimida: começa a consumir todas aquelas coisas que não podia comprar quando ainda não tinha o trabalho. Seus gastos fixos crescem: leasing de carro, aluguel de apartamento maior, mais serviços de streaming, plano de previdência privada, etc.  Talvez por descontrole, talvez por uma emergência, se endivida pela primeira vez. Mas tudo bem, você paga até o final do ano. Tem o seu salário certo, é só questão de se organizar. Percebe subitamente que precisa manter aquele emprego, senão não conseguirá pagar o leasing, a previdência, as parcelas da viagem do ano passado, etc. Pensa nos seus gastos mensais antes do emprego e simplesmente não consegue entender como sobrevivia com tão pouco. Vida sem carro, sem restaurante, sem iTralha, etc, não é vida! Sente medo. Trabalha ainda mais duro pra não perder o emprego. Fica estressado de tanto trabalhar, de tanto se preocupar, de tanto ter medo. Começa a tomar remédios. Brocha pela primeira vez. Mais e mais cabelos na escova. Cansado física e emocionalmente, consome ainda mais. Séries idiotas, pornografia japonesa, livros que não vai ler nunca, qualquer coisa pra descansar sua cabeça e desacelerar seus nervos, de modo que possa acordar no dia seguinte capaz de trabalhar mais quinze horas. Ou então, livros sobre seu trabalho, quem mexeu no queijo do meu chefe, inglês pra executivos apressados, para tornar-se ainda mais eficiente e não ser — deus me ajude — demitido. Já não tem mais tempo livre, pois todo o seu tempo, mesmo quando não está no trabalho, gira em torno do trabalho. Ninguém é insubstituível, diz seu chefe. (Um mês depois, o chefe é demitido!) De tanto consumir nervosamente, suas dívidas crescem, espalhadas por tantos lugares que nem dá pra acompanhar. Graças ao seu alto salário, o banco lhe deu um limite gigantesco no cheque especial, que você achou que jamais atingiria, e fica chocado ao atingir. Mal sabe quantos pagamentos parcelados ainda vão bater no cartão de crédito. E o leasing do carro, meu deus? Se arrepende de ficar pagando por dez meses por uma viagem de cinco dias que nem foi tão legal assim, mas todo mundo do escritório estava indo, você não poderia ser o único que não conhecia a Europa. A cada compra, você se pergunta: “qual é o melhor cartão de crédito pra usar? qual é mesmo o dia do vencimento do Visa? será que já estourei o Mastercard?” Desespero no trabalho. Horas extras, frilas, puxação de saco desenfreada. A economia está em crise, se for despedido agora é o fim de tudo. É tudo ou nada. Mais e mais remédios, menos e menos libido. Tudo o que pode fazer agora com as mulheres é dedá-las rapidinho. Você nem liga: quem precisa de mulher se tem a pornografia japonesa na internet? Dívidas crescem. Tenta pegar um empréstimo rápido em uma financeira e descobre que seu nome está sujo na praça por causa de um cheque pré-datado que nem lembra mais pra quem foi. Sem esse empréstimo, a financeira (outra) vai tomar seu carro! E como vai chegar no trabalho sem carro? Seu bairro de rico não tem serviço de transporte público decente. Com que cara vou ficar na empresa se souberem que não tenho carro? É o fim de tudo, etc. E assim vai indo.

Não sei como termina. O final é sempre diferente, mas nunca é bonito.

* * *

Viver fazendo tanta economia já não é uma prisão?

Amanda começou a ganhar bem depois de anos ganhando pouco. Naturalmente, bateu a demanda reprimida. Precisava de um novo sofá pra sala, consertar o carro e refazer a fiação do banheiro — e agora podia pagar! Até aí, tudo bem. O importante é não cair na armadilha do “aumento do padrão de vida”.

Se ela antes passava o mês com R$3 mil, hoje continua podendo. Se está ganhando R$8 mil, não precisa aumentar o padrão de consumo para oito: pode continuar gastando três e economizar cinco. Consertar o carro, comprar o sofá e refazer a fiação do banheiro não saía por mais de dez, quize mil reais, ou seja, apenas dois meses do novo salário para satisfazer suas demandas mais reprimidas. Ela podia pode até se dar um aumento: agora, em vez de viver com R$3 mil, podia se permitir viver com quatro mil e economizar metade do seu salário líquido. Um excelente negócio.

Mas Amanda, depois de anos de contenção de gastos, sentia que tanta austeridade não era justa e resolveu usar meus próprios termos contra mim:

− Pôxa, Alex, vou ter que continuar vivendo nessa prisão, nessa vida monástica, nessa pobreza absoluta sem poder consumir nada? Logo agora que tenho a renda pra comprar e sou livre pra consumir? Não posso ser livre? Tenho que continuar presa? Não é você que fala tanto em liberdade?!

Amanda já estava com o corpo todo dentro da gaiola, faltava só trancar.

Se você ganhar oito mil reais por mês e consumir oito mil reais por mês, expliquei, você não vai ser livre. Pelo contrário, se tornará prisioneira do seu emprego, pois precisará dele pra manter esse novo padrão de consumo. Seu trabalho logo vai tomar conta de todos os aspectos de sua vida e te dominar completamente. Por mais que goste dele, em breve você se tornará uma trabalhadora chata e medíocre: não terá nem mais coragem de tomar uma atitude diferente, ter uma nova ideia, criticar o chefe. Afinal, se for despedida, como continuaria morando nesse novo apartamento, dirigindo esse novo carro, pagando essa dúzia de streamings? Ganhar oito mil reais por mês e consumir oito mil reais por mês é praticamente a definição de não-liberdade.

Por outro lado, se você se der um pequeno aumento e passar a viver com quatro mil reais por mês, vai poder economizar a mesma quantia. Sua vida vai continuar quase tão boa ou tão ruim quanto sempre foi, só um pouco melhor (ao menos, você sabe que é sustentável) com um benefício: vai estar construindo um lastro. Ao final de um ano, terá R$48 mil economizados. Com esse dinheiro, mesmo se for demitida, mesmo se pedir demissão, ou mesmo se só te der na telha sair do emprego, você sabe que vive por um ano, sem precisar trabalhar nem mudar nada no seu estilo de vida.

A segurança que terá é o exato oposto do medo sufocante de quem ganha oito e gasta oito. Agora, não é você que precisa do emprego, é o emprego que precisa de você. Se quiser, pode parar de trabalhar e procurar outra colocação melhor. Se quiser, pode ficar um ano sem fazer nada e, depois disso, estará exatamente onde está hoje, sem perder nada e tendo ganho um ano de ócio — um bem precioso que não tem preço. Ou melhor, tem: R$48 mil. (Quem disse que “tempo é dinheiro”, mentiu. Tempo é muito mais importante que dinheiro. O dinheiro que perdemos volta. O tempo, nunca.)

Em meros quatro anos, a duração de um curso universitário, você junta duzentos mil reais, que é um tipo de liberdade por si só: uma poupança que pode te permitir abrir um negócio, começar uma carreira, mudar de rumo, se enfiar em um pequeno sítio no interior, comprar um veleiro usado. Não precisará ter medo do chefe, medo de arriscar, medo de perder o emprego. Pelo contrário, vai poder amar seu trabalho e se dedicar a ele de maneira mais saudável, sem precisar lhe hipotecar sua subjetividade ou colocá-lo no centro da sua vida. Não ter medo de perder o emprego vai te tornar uma profissional melhor, mais criativa, mais eficiente, mais original — especialmente se comparada às suas colegas bundonas e apavoradas — e, provavelmente, diminuirá as suas chances de acabar realmente perdendo o emprego. (Como se isso fosse uma grande tragédia, aliás!)

Mais importante, vai viver livre do medo, e não sentir medo já é uma recompensa por si só.

* * *

Você veste a camisa da empresa, mas ela não veste a sua

Nesse momento, em um dos encontros “As Prisões”, uma moça se levantou e apontou para o marido:

− O fulano aqui é igualzinho. Ele trabalha de designer numa agência de publicidade, ganha bem, economiza tudo, e todo mês ameaça se demitir. Outro dia, essa semana mesmo, a agência ganhou uma nova conta de um cliente que sempre humilha os subalternos. Meu marido chegou pro chefe e disse, o mais delicadamente possível: olha, se for pra trabalhar nesse projeto, eu vou preferir procurar outra agência. O chefe sabia que não era blefe. Resultado: os colegas dele não tiveram escolha, ele teve.

A relação entre funcionária e empresa é sempre um jogo de poder. Ninguém está fazendo favor a ninguém. A funcionária que se auto-ilude e “veste a camisa” da empresa precisa saber que a empresa nunca vestirá a camisa dela: será demitida, sem hesitação e sem dó, assim que essa for a decisão economicamente mais acertada. O único poder de barganha da funcionária é a possibilidade de levar sua força de trabalho e energia vital para outra empresa. E a funcionária só pode exercer esse ínfimo poder (que é tudo o que temos) se tiver um lastro financeiro.

A cada vez que você cede e se permite comprar alguma porcaria cara, é uma tripla rasteira que está se dando: vende mais um pouco da sua energia vital ao mercado de trabalho para pagar por isso hoje; alimenta e estimula o mecanismo consumista que te tritura e te escraviza; e deixa de adicionar mais um tijolinho no edifício das suas economias.

Nesse mundo regido a dinheiro, nossas economias são a nossa liberdade.

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“Ninguém é insubstituível!”

Há muito tempo, em uma galáxia muito distante, eu era um funcionário insolente, que achava que merecia respeito e vivia pedindo aumento. Um dia, a chefa olhou para mim e disse:

− Olha aqui, menino, o seu trabalho eu arrumo vinte que fazem igual. Ninguém é insubstituível.

Aquilo calou fundo. A chefa estava coberta de razão. O mais sensato seria ter tomado consciência da minha insignificância, metido o rabinho entre as pernas e nunca mais pedido aumento. Mas nunca fui uma pessoa sensata: pelo contrário, decidi que nunca mais seria substituível.

Hoje em dia, já faz décadas que não tenho nenhum vínculo empregatício ou institucional. Ganho meu dinheiro exclusivamente vendendo meu serviço e minha experiência, minha produção e meu conhecimento, para pessoas que me acompanham e me admiram, que querem consumir o meu trabalho porque é o meu trabalho.

Apesar dos meus imensos privilégios, não cheguei nesse ponto por ser um gênio da raça ou por ter herdado uma fortuna. Foi um longo processo, uma pequena decisão atrás da outra, algumas temerárias, todas necessárias: abdiquei de atividades que, apesar de pagarem bem, qualquer outra pessoa poderia fazer (como a tradução) e me concentrei naquelas pequenas coisas, talvez nem tão lucrativas, onde eu poderia fazer uma verdadeira contribuição pessoal, original, única.

Então, de manhã cedo, quando acordo com preguiça, quando não estou com vontade de levantar, quando imploro ao universo para me deixar dormir mais um pouco, eu me autorespondo sempre a mesma resposta:

− Não dá pra você não ir. As pessoas pagaram para te ver. Pelo seu trabalho. Você é insubstituível. Agora, aguenta!

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Trabalhar no que se ama

É hipócrita e elitista defender que “temos que trabalhar no que amamos“. Essa possibilidade está aberta para pouquíssimas pessoas. A enorme maioria da população humana, todas pessoas tão incríveis e complexas como eu e você, com um cérebro poderoso e subjetividade profunda, estão fadadas a trabalhar em empregos chatos e repetitivos, entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones. A questão não é se amamos ou não essas atividades remuneradas que executamos, mas se o salário que nos pagam em troca das horas de trabalho é maior ou menor do que tudo que esse emprego nos suga em termos de tempo e energia vital. A questão é se nos resta tempo (realmente) livre e energia vital produtiva para viver nossas vidas plenas de pessoas humanas quando não estamos entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones.

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Como ficar rica

Na imprensa internacional, o uruguaio Pepe Mujica era conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”, por causa de seu estilo de vida simples. Mas, segundo ele, pobres são aqueles que precisam de muito para viver. Sua vida austera teria como objetivo se manter livre:

“Eu não sou pobre. Pobre são aqueles que precisam de muito para viver, esses são os verdadeiros pobres, eu tenho o suficiente. Sou austero, sóbrio, carrego poucas coisas comigo, porque para viver não preciso muito mais do que tenho. Luto pela liberdade e liberdade é ter tempo para fazer o que se gosta. O indivíduo não é livre quando trabalha, porque está submetido à lei da necessidade. Deve-se trabalhar muito, mas não me venham com essa história de que a vida é só isso.”

Pessoa rica é quem pode comprar tudo o que quer. Existem duas maneiras de conseguir isso: A difícil (e que não é garantida) é trabalhar muito durante toda a vida, vender a alma ao mercado, passar boa parte do tempo realizando os objetivos de outras pessoas em troca de dinheiro, e assim por diante. A fácil (e garantida) é decidir se tornar o tipo de pessoa que não quer comprar quase nada.

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A armadilha das oito horas diárias de trabalho

Oito horas para trabalhar, oito horas para dormir, oito horas para a sua vida pessoal. Parece um trato razoável. Faz sentido. Durmo as oito horas necessárias, dou metade das horas acordadas para o trabalho e, com o dinheiro que recebo, faço o que quero da minha vida com a outra metade. Pena que quase nunca funciona assim, não é?

Pra começar, o tempo em que estamos nos preparando para trabalhar e o tempo em que estamos nos recuperando de ter trabalhado é todo subtraído das nossas horas pessoais.

Digamos que eu trabalhe das oito às cinco. Preciso acordar às cinco da manhã, para poder preparar meu café da manhã, comer, fazer a barba, tomar banho, me arrumar. Depois, pego a condução às seis. O trajeto demora no mínimo uma hora, às vezes uma hora e meia, às vezes duas. Para garantir que não vou chegar atrasado, tenho que sair duas horas antes.

Só então começam a contar as tais oito horas. Na verdade, nove. Mais um roubo. Aquela hora de almoço também é trabalho. Não posso fazer o que quiser. Estou longe da minha casa, com uma roupa que normalmente não usaria, nada nesse cenário é livre.

Finalmente, cinco da tarde. Agora é hora de esperar mais duas horas, no mínimo, ou vou ser o vagabundo descomprometido que corre pra sair quando acaba o expediente. Saindo do escritório às sete, consigo chegar em casa entre oito e nove da noite. Quase sempre às nove. Aí é hora de tirar a roupa, tomar banho, fazer o jantar, comer, lavar a louça. Tudo isso, feito enquanto me arrasto de cansado, demora cerca de duas horas.

Às onze da noite, finalmente, estou limpo e bem-alimentado, mas ainda, e cada vez mais, exausto. Eu me deixo cair em frente à televisão e vou assistir alguma série idiota, e meu cérebro vai lentamente se entorpecendo. Antes da meia-noite, eu durmo. Para acordar cinco horas depois.

Nada no cenário acima é incomum. Não é uma rotina que seria vista como anormal ou particularmente desagradável. Para a maioria das pessoas trabalhadoras assalariadas, essa é a vida como ela é, a vida como deve ser. A vida é isso.

Para mim, é um cenário de horror. As oito horas que essa pessoa deveria trabalhar simplesmente lhe ocupam o dia inteiro e ainda lhe roubam três horas de sono. Além de não dormir as oito horas necessárias (algo que vai destruir sua saúde a curto, médio e longo prazo), essa pessoa simplesmente não tem nenhuma hora livre. O tempo que ela tem para si mesma não existe.

Minha definição de tempo livre é simples: tempo livre é quando somos capazes de ser produtivas para nós mesmas.

Então, se chegamos do trabalho tão exaustos que não conseguimos fazer nada, a não ser passivamente ver TV, esse tempo não é livre. Esse tempo é do trabalho. Esse tempo é consequência direta e continuação necessária das horas que passamos trabalhando.

Se saio do trabalho às cinco, caminho meia hora até em casa, onde chego bem-disposto, e depois de comer e tomar banho, e talvez até tirar um cochilo, lá pelas sete eu estou limpa e livre e descansada e pronta para compor uma ópera ou jogar uma partida de tênis, fazer mais uma posição do kamasutra com a esposa ou ler poesia, então sim, esse tempo é livre.

O tempo livre é aquele no qual estamos aptas e capazes e atentas para trabalhar nos nossos projetos pessoais, e não mais estamos trabalhando nos projetos pessoais dos outros.

Naturalmente, para isso, precisamos ter um projeto pessoal. Qualquer que seja. Então, quando não estamos realizando os projetos pessoais-jurídicos da empresa para a qual trabalhamos, quais dos nossos projetos pessoais estamos realizando? Aliás, temos projetos pessoais? E, se não temos, por que não temos?

Sim, a vida passa muito rápido. Estudo, escola, carreira, vestibular, casamento, filhas, promoção. Nunca temos tempo para parar e pensar. Para ficar meia hora que seja, sozinhas, caladas, pensando. Para descobrir… quem somos? O que queremos?

Mas… por quê? Por que nunca temos esse tempo? Por que tudo no mundo em que vivemos é feito para que nunca tenhamos a oportunidade de parar e pensar e descobrir quem somos? As pessoas que sabem quem são e o que querem usam o seu trabalho como uma ferramenta para realizar seus sonhos e projetos. As pessoas que sabem quem são e o que querem são muito, muito mais difíceis de escravizar.

* * *

O pacto do trabalho

O pacto do trabalho funciona mais ou menos assim. Eu, uma pessoa física, quero fazer muitas coisas. Escrever um romance, morar num barco, conhecer Vancouver. Para fazer essas coisas (vamos chamá-las de “projetos pessoais”), eu preciso de dinheiro. Infelizmente, não tenho dinheiro. A ACME, uma pessoa jurídica, quer fazer muitas coisas. Fabricar, vender, anunciar seus produtos. Para fazer essas coisas (vamos chamá-las de “projetos pessoais-jurídicos”), ela precisa de corpos. Infelizmente, ela é uma entidade incorpórea.

Então, fazemos um acordo. Durante algumas horas por dia, em vez de utilizar meu próprio corpo para os meus próprios projetos pessoais (como seria o mais razoável), eu me comprometo a utilizar meu corpo para realizar os projetos pessoais-jurídicos da ACME — como, por exemplo, ter textos bem escritos em seu site, atraindo assim clientes e vendendo mais produtos. Em troca, a ACME me fornece dinheiro para que eu possa realizar os meus próprios projetos pessoais.

Não tem nada de errado com esse pacto. É uma troca complementar na qual ambas as partes saem ganhando. Em um mundo ideal, a ACME consegue o seu site bem escrito e eu fico mais próximo de comprar o meu barco.

Mas o pacto faz sentido se me restar tempo livre o suficiente para realizar também os meus objetivos pessoais.

Se passo o dia inteiro realizando os projetos da ACME, ou me preparando para realizar os projetos da ACME, ou descansando depois de passar o dia todo realizando os projetos da ACME, ou dormindo para poder no dia seguinte realizar mais projetos da ACME, então… Para quê estou fazendo isso? Em que momento vou realizar os meus próprios projetos? Se não tenho tempo para realizar meus próprios projetos, de que adianta então realizar os projetos da ACME?

(Se minha vida virou apenas sobrevivência, se eu trabalho só para poder trabalhar mais, então melhor largar tudo e viver de esmola. Sim, eu ganharia menos, mas gastaria menos também. E seria infinitamente mais livre e potente.)

Quando não sou o corpo que a ACME usa para realizar o seu projeto de ter textos bem escritos no site…. quem eu sou? E se, no próximo dia útil, eu não tivesse mais que realizar os projetos da ACME? E se tivesse o dia só todo para mim, para realizar os MEUS projetos? Quando não estou vendendo minha energia vital para realizar os objetivos da empresa em troca de dinheiro… quem sou eu? Se a minha energia vital e meu tempo fossem subitamente meus (dica: são), o que eu faria? Quais são meus projetos pessoais?

* * *

Quem somos quando não estamos trabalhando?

Para muitas pessoas, essa pergunta é difícil. Elas simplesmente não têm a resposta. Não sabem. Nunca pensaram nisso. Estavam ocupadas demais passando no vestibular, cursando medicina, trabalhando sessenta horas por semana, trocando fraldas da filha.

Nesse caso, faço uma outra pergunta: Por que não sabemos? Em quais outras coisas ficamos pensando durante toda nossa vida? O que foi que tanto ocupou nosso tempo, nossa cabeça, nossa energia, que nós nunca, nunca tivemos a oportunidade de simplesmente parar e pensar: Quem somos? O que queremos? Quais são nossos projetos? Faz sentido vivermos toda uma vida, cheia de idéias e pensamentos, mas nunca termos pensado nisso?

Às vezes, basta pensar durante uma hora para resolver essa questão. Não uma hora por dia, ou uma hora por semana, mas uma hora em toda uma vida. Em menos de uma hora, você decide que quer ser padre, ir a lua, fazer todas as posições do kamasutra, ganhar Wimbledon. Em menos de uma hora, você traça por alto um plano para seguir por toda a vida: entrar na melhor escolinha de tênis da cidade; se federar; treinar o backhand o dia inteiro; tentar entrar em uma universidade norte-americana com bolsa de tênis, etc.

Um dia, aos doze anos de idade, eu decidi que não queria mais ser desenhista de quadrinhos e sim escritor. Desde então, todas as minhas decisões tem sido em função desse objetivo — por exemplo, não cursei jornalismo, talvez a carreira inevitável para mim, porque pensei que se passasse o dia inteiro escrevendo para um periódico, não teria saco nem energia para meus próprios textos. Depois de tomar minha decisão, nunca mais precisei pensar no assunto. Eu já sabia quem era e onde queria chegar. O resto foi só questão de ir ajustando o GPS um pouco mais pra cá, um pouco mais pra lá.

A moral da história não é que sou uma pessoa incrível que sabe o que quer. (Não sou.) A moral da história é que não é preciso muito tempo, nem muita maturidade, nem nada, de fato, para se saber o que se quer. Basta sentar, quietinha, um minutinho, em um cantinho… e se ouvir.

Mas às vezes vivemos vidas inteiras sem nunca, nunca fazer isso.

* * *

Se pudesse fazer qualquer coisa… o que você faria?*

James Martin se formou no curso de Administração mais prestigiado dos Estados Unidos, em Wharton, e trabalhava de executivo para a GE.

− Era tudo muito circular. Eu trabalhava para ter comida, roupas e abrigo, e eu comia, me vestia e dormia para então poder trabalhar mais. Um dia, sentado na minha mesa de trabalho, me lembro de pensar: ‘Ninguém em Wharton nunca me perguntou o que eu queria fazer da minha vida ou se tinha mesmo certeza que esse era o caminho.

Um dia, assistiu a um documentário sobre a vida do monge trapista Thomas Merton, e, instigado, leu sua autobiografia.** Martin considera esse o momento do seu chamado religioso, da sua vocação eclesiástica. Mas parecia loucura demais. Afinal, ele era um executivo em uma grande empresa! Virar padre lhe soava tão implausível quanto fugir de casa e entrar para o circo. A ideia ficou incipiente. Cada vez mais insatisfeito, com dores de estômago de tanto estresse e ansiedade, começou a fazer terapia. No segundo ano de tratamento, o psicólogo lhe fez uma pergunta :

— O que você faria se pudesse fazer qualquer coisa?

E Martin respondeu:

— Eu seria um padre.

— Bem, e por que não?

Até aquele momento, Martin tinha somente uma vontade, vaga e difusa, ali no fundo da sua cabeça, no lugar onde os sonhos impraticáveis são escondidos até morrerem de inanição. Mas a pergunta do psicólogo tornou a questão mais imediata e mais concreta. Começou a pensar sobre quais seriam os passos concretos que precisariam ser tomados para tornar-se padre. Se informou e pesquisou. No dia seguinte, já estava no telefone com os jesuítas locais.

Hoje, o padre James Martin, com seu talento natural para contar histórias, é reconhecido como um dos melhores comunicadores da Igreja. Pregando em um país marcado por um cristianismo economicamente conservador e politicamente retrógrado, o jesuíta é uma das poucas vozes institucionais cristãs a promover mais tolerância religiosa e mais inclusão social. E tudo começou com uma simples pergunta. Que qualquer pessoa pode se fazer.

[*A história do padre James Martin está em seu In Good Company: The Fast Track from the Corporate World to Poverty, Chastity, and Obedience, publicado em 2010. O Padre Martin é um dos melhores contadores de histórias que conheço, então, recomendo literalmente tudo dele. Até listando seu rol de roupa suja ele é interessante. Atualmente, tem sido a principal voz defendendo direitos LGBT na Igreja Católica. Seu novo livro, de 2018, Building a Bridge: How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity, está sacudindo o conservadorismo da Igreja. Meu favorito pessoal é My life with the saints, onde ele conta a relação pessoal que tem com os santos de sua devoção.]

[**Não foi à toa que o monge trapista Thomas Merton virou a vida de James Martin de cabeça pra baixo: ele também é um dos maiores contadores de histórias de todos os tempos, capaz de tornar qualquer assunto interessante. Eu adoro seus livros sobre o zen, sobre misticismo, sobre os Padres do Deserto. Ainda quero ler sua autobiografia, A montanha dos sete patamares, que dizem ser sua obra-prima. Ele morreu eletrocutado por um ventilador de chão na Tailândia em 1969.]

* * *

A gente não quer o que a gente quer

Por um lado, largar um mundo corporativo canalha e ganancioso (mas que paga super bem!) e entrar em uma ordem religiosa (que exige votos de castidade, obediência e pobreza) é muito difícil. Por outro, também não queremos ser como todos os nossos colegas, que parecem chafurdar felizes e satisfeitos na ganância corporativa.

Então, nossos egos escolhem um instável meio-termo: nos tornamos aquelas pessoas que vivem e trabalham no mundo corporativo ganancioso e canalha, operando de acordo com as prioridades desse mundo e recebendo as recompensas que esse mundo oferece, ao mesmo tempo em que sonhamos com um outro mundo, esse sim o nosso mundo verdadeiro, esse sim o mundo onde estaríamos vivendo agora, sabe… se tivéssemos escolha!

− Um dia, eu vou, hein! Vocês vão ver! Largo essa podreira aqui e entro pra um mosteiro! Enquanto isso, deixa eu calcular qual será o meu bônus anual para o próximo exercício…

Não queremos ser padres, ou escalar o Himalaia, ou escrever um romance.

Queremos ser o executivo que quer ser padre, a médica que quer escalar o Himalaia, a jornalista que quer escrever um romance.

Queremos é estar satisfeitas com nossos egos e, ao mesmo tempo, evitar qualquer mudança efetiva de vida.

Queremos é construir uma auto-identidade que seja confortável e não dê trabalho.

* * *

Quais sapos queremos engolir?

No encontro “As prisões”, sempre faço essas perguntas. Quem somos. O que queremos. O que faríamos se pudéssemos fazer qualquer coisa. E uma moça um dia respondeu:

− Eu queria ser bióloga.

Perguntei de volta:

− E por que não? O que está te impedindo de ser bióloga agora?

Ela contou sua história: trabalhava como assistente pessoal de uma juíza, um emprego sem criatividade alguma, mas que pagava bem, vinte mil reais por mês, e lhe permitiu juntar boas economias. Os filhos já estavam criados. O salário do marido sozinho segurava a barra das contas da casa.

− Então, − insisti, − o que te impede de entrar pra uma faculdade de biologia agora?

No instante depois de articular o seu sonho — ser bióloga — ela começou a sistematicamente torpedeá-lo por todos os lados, listando literalmente tudo que poderia dar errado.

− Ah, você não entende. O meu marido consegue segurar as contas da casa, mas eu teria que parar a ioga, e adoro a ioga. A melhor faculdade da cidade — eu só faria se fosse essa — é longe, eu teria que pegar dois ônibus. Ou ir de carro, mas odeio dirigir. Teria que estudar um pouco de matemática, sempre fui péssima em matemática, não sei se consigo. − Etc, etc. E concluiu: − Acho que é impraticável pra mim ser bióloga…

− E quais são as coisas que você não gosta no seu emprego?

− Ah, porra, passo o dia inteiro correndo atrás da juíza, organizando a vida da juíza, levando patada da juíza, recebendo telefonemas da juíza nas piores horas. É como se eu fosse mãe de uma bebê de sessenta anos de idade que tem cólica o dia todo e reclama por tudo. Uma merda.

E eu disse:

− Bem, acho que é impraticável pra você ser assistente pessoal de juíza, então…

Somos todas, ao mesmo tempo, tanto a dentista entediada quanto também a artista plástica que poderíamos ter sido; ou a artista plástica pobretona e também a dentista que poderíamos ter sido. Conheço muitas dentistas (e contadoras e bancárias e etc) que adoram fantasiar sobre a vida livre e interessante que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça nas artes plásticas (ou na poesia ou no teatro ou etc). Conheço muitas artistas plásticas (e atrizes e poetisas e etc) que também adoram fantasiar sobre a vida segura e confortável que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça na odontologia (ou na contabilidade ou nas ciências atuariais ou etc). De fato, algumas dentistas teriam sido excelentes poetisas. De fato, alguns poetisas talvez devessem ter se dedicado à odontologia. Mas quais?

Todo dia, comparo minha vida incerta à das amigas que desfizeram a banda da pós-adolescência e se dedicaram à estatística, e penso: de fato, eu não trocaria minha vida pela delas. Entretanto, antes de cair naquela tentação tão vaidosa de me gabar de minha ó-tão-interessante “vida de artista”, faço questão de me lembrar do seguinte: Se eu não trocaria a minha vida pela delas… elas também não trocariam suas vidas pela minha. Cada escolha de vida tem delícias e custos que só conhece quem as escolheu. Toda escolha tem ônus e bônus que só sabe quem a escolheu.

Se o preço de ser bióloga é largar a ioga ou pegar dois ônibus, o preço de ser assistente de juíza é aturar uma bebezona de sessenta anos. De um modo ou de outro, pagamos sempre o preço das nossas escolhas. A conta sempre vem. Cabe a nós escolher: Queremos engolir os sapos de termos encampado os nossos sonhos, de termos seguido a carreira que sempre desejamos? Ou queremos engolir os sapos da carreira chata “que papai mandou”, porque “dava dinheiro” e era “a mais segura”?

Engolir sapos não é opcional. Mas, sim, podemos escolher quais sapos queremos engolir.

* * *

Conclusões

Um dos motivos que nos leva a querer trabalhar tanto para juntar tanto dinheiro é uma busca desesperada pela pretensa segurança da autossuficiência. Afinal, ninguém quer depender dos outros, não é? Como posso  ser livre se não sou independente?

Nossa ânsia por autossuficiência não é acidental: apesar de sermos uma espécie gregária, apesar de nosso maior superpoder ser nossa capacidade única de nos unirmos para trabalharmos juntas em prol de objetivos comuns, o capitalismo nunca para de nos vender a autossuficiência como uma das qualidades mais importantes da vida.

Não é difícil de entender o porquê. Quem está inserido em sua comunidade, quem dispõe de uma extensa rede de apoio, pode resolver seus problemas comunitariamente – eu pinto sua parede, você me leva no aeroporto. Entretanto, se somos autossuficientes, ou seja, se estamos isoladas, todos os serviços precisam ser comprados, do Uber ao Marido de Aluguel.

Como parte da ideologia capitalista, a sociedade nos vende um ideal de autossuficiência individual que, além de impossível e indesejável, nos impede de enxergar a interdependência de todos os seres. Somos intensamente gregárias: não temos como não nos importar com a opinião das pessoas à nossa volta, não temos como não ser influenciadas e pautadas por elas. Mas temos sim como escolher quem serão essas pessoas que estarão a nossa volta.

Levado ao extremo, entretanto, esse anseio por autossuficiência pode se tornar uma ânsia, uma sofreguidão, uma avidez, que acaba por corroer nossos relacionamentos, minar nossas comunidades, destruir nosso planeta. A autossuficiência se torna uma prisão quando, por ser tão autoevidente e inquestionável, deixamos de perceber que existem alternativas mais coletivas, mais comunitárias, menos egoístas para organizarmos nossas vidas, nossas economias, nossos amores. A autossuficiência também se torna uma prisão quando, por sermos tão constantemente oprimidas pelas outras pessoas, almejamos um modelo impraticável de autossuficiência emocional: queremos ser a mítica pessoa que não se importa com a opinião de ninguém, quando poderíamos facilmente escolher nos rodear por pessoas cujas opiniões nos importam.

É desejável sermos tão autossuficientes? Aliás, é possível? E o que se perde nessa busca por uma impossível, indesejável autossuficiência?

Esse é o tema da próxima Prisão, Autossuficiência.

* * *

Série “As Prisões”

Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:

  1. Verdade
  2. Religião
  3. Classe
  4. Patriotismo
  5. Respeito
  6. Trabalho

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 19h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

3 respostas em “Prisão Trabalho”

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