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Prisão Patriotismo

Se nossa identidade de classe nos aprisiona, nossas muitas identidades tribais também. Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?

Se nossa identidade de classe nos aprisiona, nossas muitas identidades tribais também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?

(Essa é a versão final completa da Prisão Patriotismo. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Patriotismo é a quarta, depois das Prisões Verdade, Religião e ClasseAs inscrições para o curso estão abertas.)

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Introdução à Prisão Patriotismo

Toda identidade é, por definição, exclusionária: somos algo (aquarianas, brasileiras, classe alta, etc) porque não somos infinitas outras coisas (leoninas ou arianas, uruguaias ou chinesas, classe média ou classe baixa). E tudo bem. O problema nunca é termos nossa identidade ou sermos quem somos. O problema é tudo aquilo que não enxergamos, que não percebemos, que não reconhecemos porque a posição que ocupamos nos impede, nos bloqueia a vista e nos embota a percepção.

Nossa identidade de classe pode ser uma prisão porque ela é, antes de tudo, insidiosa: muitas vezes, não sabemos, ou nos recusamos a reconhecer, nossa classe social, e, mesmo assim, ou apesar disso, ela determina nossas amizades, nossas roupas, nossas leituras, nossos sotaques, nossos trabalho.

Não foi à toa que, no Manifesto Comunista, o grito de guerra era para que os “trabalhadores de todos os países” se unissem. Pois, para Marx e Engels, um trabalhador inglês e um trabalhador belga tinham mais em comum, desde interesses até traumas, do que um trabalhador espanhol e seu patrão espanhol. Mais ainda, ambos escreveram nesses termos pois sabiam estar nadando contra a corrente: a partir da ascendência do nacionalismo em começos do século XIX, a tendência ideológica das pessoas européias era sempre se identificarem, e se unirem, em nacionalidades e não em classes.

E, se a nossa identidade de classe é insidiosa por ser tão esfumaçada, nossa identidade nacional é violenta por ser tão escancarada, por nos ser enfiada goela abaixo tão sem cerimônia, por sermos obrigadas até mesmo a jurar que morreremos por ela. As pessoas muitas vezes não sabem, ou não querem saber, sua classe social, mas todas sabem sua nacionalidade.

Na Prisão Classe, vimos como nossa identidade de classe nos aprisiona; na Prisão Patriotismo, veremos que nossas muitas identidades tribais também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos?

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Qual é a nossa tribo?

É deliciosa a sensação de irmandade que nos acolhe quando estamos em nossa terra, cercadas de iguais, praticando nossos costumes, ouvindo nossa língua, nosso sotaque.

É reconfortante fazermos parte de um estado-nação que nos reconhece como pessoas cidadãs, que garante nossos direitos humanos fundamentais, que nos fornece um passaporte aceito por outras nações.

Infelizmente, essa nossa sensação de comunidade, que não é menos real, concreta e verdadeira por ter sido imaginada, fabricada, construída, muitas vezes nos leva a odiar ou desprezar as outras pessoas que não nasceram no nosso chão, que têm outros costumes, outras línguas, outros sotaques.

Então, se amamos exaltadamente essas abstrações políticas imaginárias, com seus simbolozinhos e musiquinhas; se nos dispomos a matar e morrer por elas; se engolimos acriticamente o discurso nacionalista-excludente do “ame-o ou deixe-o”, então, sim, o patriotismo pode ser uma prisão.

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O patriotismo das leoninas

Como pessoas humanas, nossa tendência é sempre naturalizar o mundo que recebemos. As coisas são assim porque sempre foram assim porque sempre serão assim.

Para nós, é tão normal esse mundo onde as pessoas se dividem e se identificam com base no pedaço de chão onde nasceram que mal conseguimos perceber o quanto esse sistema é arbitrário e convencionado.

Por que não criarmos outras irmandades?

Se existem duas pessoas competindo, o natural, o normal, o esperado, o óbvio, é que eu torça pela pessoa brasileira.

Mas por que me identificar com linhas arbitrárias traçadas no chão e com as pessoas que compartilham comigo o acidente histórico e fortuito de ter nascido no espaço compreendido dentro dessas linhas?

Por que não traçar outras linhas arbitrárias para definir nossas lealdades?

Ao invés de traçar linhas arbitrárias no espaço, por que não traçar, digamos, linhas arbitrárias no tempo?

Por que não torcer para a pessoa que é aquariana como eu?

Por que não torcer pelas pessoas que têm o mesmo sexo? A mesma cor? A mesma profissão? A mesma classe social? O mesmo tipo sanguíneo?

Por que todas essas opções nos soam tão estranhas, insólitas, injustificadas, mas torcer pela pessoa que nasceu no mesmo país que nós, por outro lado, nos parece tão autoevidentemente natural?

Será mesmo que quaisquer duas mulheres, quaisquer dois metalúrgicos, quaisquer dois leoninos não têm mais em comum entre si do que, digamos, um amapaense branco rico e uma gaúcha canhota faxineira, uma sergipana capricorniana recém-nascida e um mato-grossense loiro mudo?

Por que o fato de terem nascido no mesmo estado-nação parece compensar e superar todas as outras diferenças?

Quem foi que nos convenceu que, apesar de suas inúmeras, óbvias, gritantes diferenças étnicas, linguísticas, religiosas, etc, que uma paranaense e uma baiana têm mais coisas em comum do que diferenças?

Os gaúchos dos pampas argentinos e riograndenses, apesar de, na prática, fazerem parte de uma mesma nação, de terem os mesmos hábitos, costumes, estilos de vida, etnias, etc, ficaram séculos se matando ferozmente, alegremente, seguindo as ordens de metrópoles com as quais não tinham nada em comum, que pelo contrário desprezavam, derramando seu sangue para defender seus compatriotas da Terra do Fogo e da Amazônia, que nem conheciam e com quem não tinham nada em comum.

Que força é essa capaz de fazer esses homens ignorarem sua óbvia irmandade e se prontificarem a abrir mão de suas vidas em nome de uma outra irmandade, mais etérea e mais abstrata?

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Não existe essência*

Antes de entrar no efeito de nossas identidades tribais em nossa própria identidade pessoal, cabe perguntar: existe isso de identidade pessoal? O que é esse Eu que tanto nos orgulha e nos envergonha? Temos uma essência imutável? Nascemos com características fixas que nos acompanharão por toda a vida? Ou somos seres maleáveis, capazes de nos criar e nos construir a cada dia, uma ação de cada vez?

Uma caneta Bic, se tiro a tampa, é uma caneta sem tampa, de um lado, e uma tampa, do outro. Mas, se abro o corpo da caneta e tiro a carga, a caneta ainda é uma caneta? Agora, tenho três objetos: (1) uma tampa (2) uma carga, com ponta, e (3) um tubo transparente e oco. Qual desses três objetos é a caneta? Nenhum deles? Todos eles? Em que momento passaram a ser uma caneta? Em que momento deixaram de ser? Onde está a essência da caneta?**

Eu, se perder um braço, continuaria sendo eu, só que sem um braço. Mas, e se tivesse estudado engenharia ou ido morar na Austrália, eu teria sido eu, apenas com uma vida diferente? Se meus pais tivessem feito sexo cinco minutos depois, eu teria sido eu? Se tivesse nascido na década seguinte, em Manaus, loiro e geminiano, ou na década anterior, em Porto Alegre, ruivo e leonino, eu teria sido eu? Em que momento haveria tantas e mais tantas condições fortuitas e circunstâncias contingentes que eu deixaria de ser eu?

Uma vez, passei dois meses dirigindo pelo Cone Sul, uma viagem particularmente tensa e triste. Durante esse período, pela primeira vez na vida, mesmo depois de ter morado no exterior por uma década, senti muita, muita falta de feijão com arroz. Aquilo para mim foi incrível porque nunca gostei tanto assim de feijão com arroz, e nem acho que é uma comida melhor do que a maioria das outras. Então, por que senti tanta falta? Me lembro de pensar: será então que esse é o meu gosto pessoal? Será que, na minha essência mais profunda, esse é o meu Eu: uma pessoa que não consegue passar dois meses sem feijão com arroz? Ou será que simplesmente sou uma pessoa brasileira, como duzentas milhões de outras, que passou a infância inteira comendo uma mesma comida e que, portanto, foi condicionada a apegar-se a ela, ainda mais em momentos de crise? Que não é um gosto pessoal, vindo das profundezas desse meu ó-tão-concreto Eu, mas sim um gosto cultural, contingente e construído, colocado em mim pelas circunstâncias da minha biografia, condizente com os hábitos alimentares da sociedade onde cresci? Esse meu Eu, ó-tão-uno-e-concreto, que morre de saudade de feijão com arroz, se meu pai tivesse conseguido aquela bolsa para estudar em Londres, não estaria hoje morrendo de saudade de fish & chips?

Quando nos damos conta de que nós mesmas não temos uma essência fixa individual, faz ainda menos sentido pensar que teríamos uma pretensa essência tribal, seja de classe, como vimos na Prisão anterior, seja como gaúchas, librianas ou médicas.

Tudo é contingente, ou seja, acidental e incerto: somos pessoas únicas não porque temos uma pretensa essência metafísica (o Eu!) qualitativamente diferente da essência metafísica das outras entidades que não são-o-meu-Eu, mas sim porque surgimos a partir de condições únicas e de circunstâncias irrepetíveis.***

[*Essa subseção parafraseia trechos da 18ª prática, “Desapegar do Eu”, do meu livro Atenção., onde desenvolvo essa questão detalhadamente.]

[**Existem várias metáforas possíveis para explicar essa mesma ideia, que é o conceito budista do vazio ou vacuidade. A da caneta, especificamente, está em Budismo sem crenças (Palas Atena, 1997), capítulo 11, de Stephen Batchelor.]

[***Frase de Stephen Batchelor, em Intuitions of the sublime (2000), seu comentário aos Versos fundamentais do Caminho do Meio, de Nagarjuna, traduzidos por ele sob o título Verses from the center.]

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“Esses gringos burros que acham que falamos espanhol!”

Um dos sintomas do patriotismo arrogante brasileiro é a nossa irritação irrefreável diante de qualquer ignorância estrangeira sobre nós.

Muitas das pessoas leitoras com certeza já ficaram indignadas com “gringos burros” que achavam que no Brasil se falava espanhol ou que nossa capital era o Rio de Janeiro ou Buenos Aires.

Mas quantas dessas pessoas leitoras indignadas sabem qual é a capital da Mongólia ou que língua falam na Nigéria?

Para não ir tão longe, quantas sabem qual é a capital do Suriname ou que língua falam na Guiana?

Para ficamos somente na nossa própria abstração política, quantas sabem qual é a capital de Roraima, Tocantins, Sergipe?

Algumas pessoas leitoras talvez até saibam a resposta para essas perguntas, mas isso não quer dizer que:

  • outras pessoas tenham obrigação de saber, ou que;
  • essas pessoas-que-sabem, por mérito de seus “conhecimentos superiores”, tenham adquirido assim o direito de hostilizar quem não sabe.

Poucas atitudes são mais narcisistas do que essa constante naturalização do nosso conhecimento: considerar óbvio e obrigatório que todas as pessoas têm que saber aquilo que sabemos, ao mesmo tempo em que achamos que ninguém tem obrigação de saber aquilo que não sabemos.

Pois é óbvio que todos têm que saber a língua falada no México (afinal, até eu sei!) mas é igualmente óbvio que ninguém tem obrigação de saber a língua falada na Guiana (afinal, nem eu sei!).

A maioria das pessoas brasileiras, entretanto, não sabe responder essas perguntas. Não sabem a capital da Guiana Francesa nem o idioma oficial do Congo.

Ficam, inclusive, ainda mais indignadas quando chamo a atenção para esse fato: retrucam que não é a mesma coisa. Que não dá pra comparar o Brasil com a Indonésia ou com a Costa Rica. Que Roraima é um estado desimportante. Que ninguém tem obrigação de saber essas coisas.

Ou seja, suas respostas indignadas expõem e exemplificam justamente o lado mais mesquinho do nosso narcisismo patriótico arrogante.

Pois o que torna o patriotismo uma prisão é justamente incutir em nós essa certeza absoluta e peremptória que o Brasil é intrinsecamente mais importante que a Mongólia ou que a Jamaica. Que as pessoas do mundo têm que saber a língua falada no Brasil (ou senão são burras) mas que, francamente, ninguém têm obrigação de saber a língua falada na Malásia.

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Nosso país não importa, e nem nós

Poucas coisas são mais importantes do que encararmos de frente nossa suprema desimportância.

Somos desimportantes enquanto pessoas individuais, primatas mamíferas de vidas curtas, uma entre sete bilhões. Somos desimportantes enquanto pessoas nacionais, cidadãs de um estado nacional recentíssimo e periférico. Somos desimportantes até como planeta, um entre bilhões e bilhões, orbitando uma estrela mediana e medíocre.

Dá para qualquer pessoa passar a vida inteira sem jamais pensar no Brasil e isso não faria dela uma pessoa inferior, inculta, ignorante.

De fato, grande parte das pessoas humanas mais incríveis, generosas, inteligentes, que já existiram nos últimos duzentos anos jamais dedicaram mais do que poucos minutos, ou mesmo segundos, para reconhecer o fato de que, em algum lugar, existia uma nação chamada Brasil. Não saberiam que língua falamos, ou qual é a nossa capital. E daí?

Sejamos sinceras: quantas de nós, pessoas leitoras brasileiras, já dedicamos muito tempo para pensar sobre a Romênia, ou sobre o Zaire, ou sobre Honduras?

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Amar o Brasil faz tão pouco sentido quanto odiá-lo

Muitas pessoas leitoras percebem nesse texto uma crítica ao Brasil e correm para concordar:

“É isso aí. O Bananão é mesmo uma bosta. É por isso que essa merda não vai pra frente. Foda-se o Brasil mesmo! etc.”

Mas meu texto não está fazendo nenhuma afirmação qualitativa sobre o Brasil. Não ataca, nem defende. O Brasil não é pior nem melhor que outros Estados-Nações.

Nesse texto sobre patriotismo, os exemplos são brasileiros somente porque o público-alvo é brasileiro.

Odiar o Brasil por seus muitos defeitos faz tão pouco sentido quanto amá-lo por suas muitas qualidades.

O Brasil, essa entidade abstrata incorpórea inanimada, não tem como perceber nem retribuir nossos ó-tão humanos sentimentos, sejam eles de lealdade ou de desprezo, de gratidão ou de raiva.

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Orgulho de ser brasileiro

Eu respeito e valorizo o Brasil.

O Brasil é o estado nacional que garante os meus direitos humanos básicos. Foi o Brasil que me deu a segurança, a saúde, a educação públicas, a paz social e a estabilidade institucional, a água potável e o esgoto tratado, etc etc, que permitiram meu desenvolvimento e sobrevivência como pessoa humana. Seria eu capaz de escrever um livro complexo como esse sem minha graduação e mestrado na maior universidade federal do país? Estaria eu vivo para escrever esse livro se, diabético e hipertenso, não tivesse sido um dos primeiros a ser vacinado contra Covid pelo SUS, sem ter que pagar nem um centavo?

Nada disso quer dizer que eu vá amar, ou mesmo me orgulhar, dessa abstração política abstrata inumana incorpórea chamada Brasil.

Em troca de tudo o que ele me ofereceu e ainda oferece, o Brasil me exige ou pede algumas obrigações, como ser reservista das Forças Armadas, ser mesário, pagar impostos, obedecer leis – obrigações que eu, em larga medida e de acordo com a minha consciência, cumpro.

Mas, gostando eu ou não do Brasil, sendo eu grato ou não ao Brasil, essa não é uma relação afetiva: é uma relação contratual (o tal Contrato Social), regulamentada pela Constituição da República.

Meu amor eu reservo para seres animados.

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O patriotismo é uma apropriação indevida

A ginasta treinou a vida inteira desde a infância. Fez todo tipo de sacrifício. Não se divertiu. Castigou seu corpo. Enfrentou todos os entraves institucionais em seu caminho. Então, coroou todos esses esforços conquistando a medalha de ouro nos jogos olímpicos.

E tudo para que, no dia seguinte, milhões de pessoas que nunca lhe ajudaram em nada, que nunca nem lhe levaram uma aguinha durante os treinos, possam dizer:

— Levamos o ouro na ginástica olímpica!

Levamos? Nós? Nós quem?

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Quem conquistou essas conquistas?

Um dos meus escritores favoritos, judeu norte-americano, conta a seguinte história.

Ele estava conversando com um amigo, também judeu, que disse, em tom de orgulho e confidência:

— Sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da humanidade mas ganhamos dezenas por cento dos prêmios Nobel? Não é de se orgulhar?

O escritor pensou um pouco e respondeu:

— E você sabia que nós judeus somos zero vírgula quase nada da população dos Estados Unidos mas somos quarenta por cento dos estelionatários?

O amigo ficou chocado:

— Sério?

— Sério. Chega a dar vergonha de ser judeu, né?

Mas o amigo foi veemente:

— Claro que não, ué! Eu nunca cometi estelionato, por que teria vergonha?

— Bem, esse número eu acabei de inventar agora, mas aqueles prêmios Nobel também não foi você que ganhou. Por que tem orgulho deles?*

[*Quem conta a história sobre judeus e prêmios Nobel é Isaac Asimov, em sua autobiografia I, Asimov. Obrigado a Eduardo Wachter por me achar essa referência.]

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Quem é o sujeito de “ganhamos o Penta”?

Eu, Alex, não tenho orgulho de ser canhoto. De ter 1,83 de altura. De ser libriano. De ter olhos e cabelos castanhos. Por que teria orgulho de ser brasileiro? Ser brasileiro, assim como ser destro, não é mérito meu, não é nada que eu fiz. É uma circunstância fortuita totalmente fora do meu controle.

Ter orgulho de nossas afiliações coletivas é tão comum e normatizado que nunca nem pensamos a respeito. Vivemos cercados de pessoas que têm orgulho de ser brasileiras, católicas, cariocas, flamenguistas, mangueirenses.

É normal e aceitável um torcedor brasileiro qualquer falar que somos fodas no futebol, que vamos arrasar todos os outros times, que ninguém joga bola como nós, etc.

Afinal, quem nunca?

Por outro lado, um astro de futebol (uma dessas pessoas que está de fato em campo trabalhando duro para ganhar as partidas) que diga qualquer coisa que demonstre auto-consciência de o quão foda ele é vai enfrentar uma ojeriza generalizada. Será chamado de arrogante, vaidoso, soberbo.

O pecado supremo do vaidoso é justamente quebrar o pacto de silêncio que sustenta nossa auto-estima coletiva.

Para viabilizar nossas vidas, tantas vezes chatas e vazias, precisamos de conquistas coletivas das quais possamos nos apropriar.

Ou, em outras palavras, “ganhamos o penta!”

O que poderia ser mais intolerável do que sermos rudemente lembrados, e, pra piorar, por uma pessoa mais rica, mais famosa, mais sarada, mais bonita, que, na verdade, foi ela que ganhou o penta, não nós?

É claro que vamos odiar esse babaca.

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O patriotismo é uma comunidade imaginada

Somos uma espécie em busca de padrões. Talvez nossa maior habilidade enquanto espécie seja olhar para o mundo a nossa volta, buscar padrões e, em cima deles, criar narrativas. Desde a pré-história, já levantávamos os olhos para o céu, víamos um punhado de pontos de luz e logo já criávamos a constelação de escorpião ou de touro, cada uma decorada com longas e elaboradas historinhas de morte e traição, que terminavam sempre com os deuses transformando alguém em estrela.

Hoje em dia, o jornalismo esportivo durante a Copa do Mundo é pura literatura, onde longas e épicas narrativas nacionais se entrecruzam ao infinito. A seleção de Mordor não ganha da Latvéria desde 1963! O maior jejum na história das Copas foi de Oz, que ficou sem ganhar um jogo entre as Copas de 1133 e 1345!! Hoje é dia da revanche: vai ser a oportunidade de Avalon se vingar das duas derrotas que sofreu nas mãos da Ciméria, em 1928 e 1969!!! Sempre que Asgard enfrenta Westeros em um dia par, ela perde: será que o padrão vai se repetir hoje também, Galvão?! Etc, etc.

Nada contra o futebol e nada contra essas narrativas épicas, que não são menos reais e eletrizantes por serem imaginadas. Afinal, não fossem essas narrativas simbólicas, que nos colocam dentro de uma tradição centenária de dramas emocionantes e inacreditáveis reviravoltas, uma partida de futebol seria apenas uma hora e meia de milionários brincando de bola para nos distrair do fato de que nunca, nunca teremos o estilo de vida privilegiado que eles têm.

Mas existe uma diferença. Acompanhamos a novela, e odiamos a vilã, e amamos a mocinha, ou vice-versa, e aqueles fatos que nunca aconteceram com pessoas que nunca existiram realmente nos fazem sentir emoções fortes e verdadeiras, choramos, gargalhamos, odiamos. Depois que desligamos a TV, porém, por mais que tenhamos nos emocionado profundamente, sabemos que nada daquilo era verdade, e que nem a obra e nem nossas emoções deixaram de ter valor por causa disso.

O problema do patriotismo é que, por mais que saibamos da sua ficcionalidade inerente, temos muita dificuldade em desligá-lo.

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Nosso chão é mais concreto que nossa nação

A palavra país veio do italiano paese. No original, não quer dizer somente país ou pátria. Mio paese também quer dizer minha vila, minha cidade, meu bairro. Onde quer que eu me sinta em casa.

Uma norte-americana morando no Rio uma vez me contou que ficou no ponto por horas esperando o ônibus parar e nada. Até que percebeu que, aqui no Brasil, você precisa chamar o ônibus, senão ele não para no ponto. Ser uma pessoa estrangeira é isso: perder horas da sua vida por desconhecer uma regrinha boba. Algo que nunca aconteceria no seu paeseMio paese é onde sei todas as regras, onde eu sei me virar. Pombo de cidade grande não morre atropelado.

No meu passaporte, legalmente, sou brasileiro, mas seria muita presunção minha me pensar brasileiro. Não conheço o Brasil. Não sei como as coisas funcionam no Amapá. Não imagino como seja a realidade do Acre. Na verdade, minha própria cidade é grande demais para ser minha: existem bairros com costumes e realidades que também desconheço.

Não vou dizer que amo esse chão. Chão não se ama. Chão é chão. Pedra, terra. Mas sinto, de maneira profunda e real e concreta, que esse chão é meu. A geografia nos ensina que o o chão, ou seja, o espaço, não é simplesmente um espaço, mas também é produto, condição e meio das relações humanas. De um modo bem real, eu sou essas ruas, essas praias, essas montanhas, essas lagoas. Minha vida e minha subjetividade foram moldadas pelo aterro do Flamengo, pela favela do Vidigal, pela lagoa de Marapendi.

O mundo é cheio de problemas: assisto Juno e fico comovido com toda a questão da gravidez infantil, aborto e adoção, mas assisto Tropa de Elite e o filme me aponta um dedo direto na cara: esse é o problema da minha época, da minha terra, da minha geração. Na loteria da História, foi essa batata quente que me coube. O bônus é meu, o ônus também.

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O patriotismo não é menos real por ser imaginado

Não quero inocentar a metrópole: se o noticiário brasileiro finge que o Equador e a Nigéria não existem, o noticiário europeu e norte-americano também. Como vimos na Prisão Classe, o pecado de não olhar quase nunca para baixo (ou seja, de quem consideramos, do alto de nossos preconceitos, que está abaixo de nós) é um dos mais disseminados do mundo. Somente olhamos, e consumimos a cultura, e imitamos as tendências, e nos interessamos pelas últimas notícias, de quem percebemos como nossos iguais, ou de quem respeitamos e tememos como nossos pretensos superiores.

A diferença é que o Brasil se considera acima do Equador e da Nigéria. Já os Estados Unidos e a Europa, por seu lado, colocam Brasil, Equador e Nigéria no mesmo saco. Para o arrogante patriotismo brasileiro, é justamente essa a maior humilhação.

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O Brasil, visto de fora

Morei em Nova Orleans por seis anos. Trabalhei no Departamento de Espanhol e Português considerado o segundo mais produtivo do país. A biblioteca da minha universidade tinha o segundo maior acervo latino-americano dos Estados Unidos.

Nas minhas aulas, ensinadas em português, pessoas alunas norte-americanas (mas não somente) liam, no original, autores como Carolina Maria de Jesus, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Dias Gomes, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, entre outros. Apaixonadas pela língua e pela cultura brasileira, minhas pessoas alunas não eram somente estudantes de literatura voltadas para uma carreira acadêmica. Em minha sala de aula, havia médicas estudando doenças tropicais, advogadas se especializando em direito internacional, empreendedoras querendo fazer negócios com o Brasil, ativistas buscando trabalhos em ONGs brasileiras. Minhas pessoas alunas viam o Brasil como uma economia pujante e uma cultura exuberante. Achavam que o Brasil iria longe e queriam fazer parte disso. Consideravam que, no futuro, onde quer que estivessem, falar português e entender o Brasil iria lhes trazer oportunidades pessoais e profissionais.

Antes de sair do Brasil, eu não via nada disso. No exterior, aos poucos, comecei a perceber.

Na universidade norte-americana, eu estudava e trabalhava ao lado de colegas de todos os países da América Latina. Por falta de oportunidades em seus países, iam ficando, ficando e, quando percebiam, tinham feito a vida e a carreira nos Estados Unidos.

Um dos colegas era um homossexual salvadorenho com uma tese brilhante sobre o discurso machista e as imagens fálicas nas eleições latino-americanas. Ele gostaria muito de voltar para El Salvador – mas pra fazer o quê? Nos EUA, ele em breve seria um professor universitário merecidamente bem pago. Em El Salvador, além de sofrer forte preconceito, suas perspectivas profissionais eram minúsculas – e ainda menores por sua orientação sexual.

Apesar de estudar a América Latina e morrer de saudades de seus países, muitas das minhas colegas latino-americanas tinham simplesmente se resignado de que a única maneira de terem vidas dignas como acadêmicas era morando nos Estados Unidos.

Enquanto isso, no Brasil, foram criados 110 novos campi de universidades federais em 27 estados brasileiros somente entre 2003 e 2009 – isso pra não falar da explosão de universidades particulares que, apesar de não terem pesquisa de primeira, oferecem não só capacitação para centenas de milhares de alunas mas também empregos para outras centenas de milhares de professoras universitárias.

Percebi então que eu, pessoa brasileira, tinha escolhas. Como tantas colegas, eu poderia fazer a escolha perfeitamente válida de ficar nos Estados Unidos e construir ali uma carreira. Mas, ao contrário da maioria delas, eu tinha a escolha de voltar para um país com um campo universitário amplo, livre e bem-pago, onde poderia desenvolver as mesmas pesquisas que desenvolveria nos Estados Unidos, onde também poderia construir uma carreira próspera. E eu tinha essa escolha, ao contrário do meu colega salvadorenho, não por mérito meu ou demérito dele, mas porque éramos ambos herdeiros de milênios e milênios de decisões acumuladas de nossas pessoas antepassadas, que nos trouxeram a esse momento histórico no qual a cidadania brasileira, de fato, oferece uma gama de escolhas que a cidadania salvadorenha não oferece.

Para bem ou para mal, essas abstrações políticas imaginadas que nos dão passaportes e garantem nossos direitos constitucionais também nos limitam e nos possibilitam de diversas maneiras diferentes.

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Um lembrete: não estou acima de nada que critico

Entre os países que mencionei acima, estão o Congo e o Zaire. Na verdade, como fui saber depois, existem dois Congos: a República Democrática do Congo (cujo nome anterior era Zaire) e a República do Congo (também chamada de Congo-Brazzaville ou Congo-Brazavile).

Mas eu, do alto da minha arrogância patriótica brasileira, salpiquei esses países no meu texto como quem espalha cebolinha no macarrão, como se fossem cidades em Westeros ou na Terra-Média, apenas uns nomes sem existência concreta. Afinal, Honduras ou Nicarágua, esse Congo ou aquele Congo, que diferença faz, não?

Quem me chamou atenção para esse ponto foi Elisa Maia, coordenadora do Programa de Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G), do Governo Federal, que diariamente lida com estudantes do mundo inteiro, e de ambos os Congos, que desejam estudar no nosso país, graças às condições educacionais que oferecemos. Muito obrigado, Elisa.

Quando escrevo denunciando um tipo de comportamento, quando escrevo sobre ser prisioneiro do padrão de beleza da mídia, sobre narcisismo e autocentramento, sobre patriotismo e preconceito, não estou nunca escrevendo de cima para baixo, como um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado falando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.

Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa.

O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre. Se a carapuça que escrevi para mim também servir em vocês, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?

Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso. Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.

Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre.

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Quando nossa pátria nos humilha, fugir pra onde?

Faz alguns anos, a Espanha começou a deportar pessoas brasileiras, causando um certo alarde na nossa imprensa. Uma jogadora de vôlei, mesmo tendo sido convidada por um clube espanhol, não pôde entrar no país e ainda foi humilhada pela imigração. Depois de voltar, desabafou:

“Não quero mais sair do Brasil. Aqui, pelo menos, eu não sou humilhada da forma que fui lá na Espanha.”

Alguns anos antes, passando pela imigração do aeroporto JFK em Nova Iorque, estou com o sobretudo em um braço, a mochila no outro, coisas penduradas por todo corpo. Quando o oficial da Imigração pede meus papéis, eu estico a mão até ele, documentos dobrados entre os dedos, mas sem desgrudar o antebraço do meu corpo, pra não cair tudo. Ele faz que vai pegar o papel: quando eu solto, ele tira a mão. Os documentos deslizam vagarosamente até o chão e ele diz:

— Can’t you even unfold it, you lazy sac of shit? (“Não consegue nem desdobrar o papel, seu saco de merda preguiçoso?”)

Lentamente, eu deposito todas as minhas coisas no chão, me abaixo, pego o papel, desembrulho e dou pra ele. Não foi nem a primeira nem a última vez em que fui humilhado entrando nos Estados Unidos. Engoli calado. Engolir calado dói. Talvez essa seja a essência da humilhação: quando me xingam, seja um leitor babaca nos comentários ou um mendigo bêbado na rua, eu posso escolher responder ou não – geralmente, não respondo. Mas é uma escolha. Quando um oficial da imigração me ofende e não posso responder, aquilo é humilhante.

A pessoa brasileira que tem condições financeiras de ser humilhada no exterior, porém, costuma ser aquela que nunca é humilhada no Brasil. Na minha terra, sou dotô, sou sinhozinho. Até nas duras, me tratam com respeito. Do Galeão afora, entretanto, sou só mais um, com cara de latino nas Américas e de árabe na Europa. Não sabem como sou especial, que sou único, que tenho pai rico, que faço doutorado, que escrevo livros, esses estrangeiros ignorantes!

Entretanto, reagir à vergonha voltando correndo para um Brasil idealizado onde não se humilha ninguém é pura ilusão. Quando me humilham no exterior, tento me colocar no lugar daquelas pessoas brasileiras que são humilhadas todos os dias, em seu próprio país, em todos os seus encontros com o Estado, e não apenas durante as viagens que escolhem fazer.

Quando o oficial da imigração norte-americana me humilha, eu posso fugir de volta para o Brasil. Quando um policial militar humilha um cidadão brasileiro, carioca, negro, na favela onde mora, ele vai fugir para onde? Quando uma mulher brasileira é sexualmente assediada e depois desacreditada pela polícia ao tentar dar queixa, ela vai fugir para onde?

No Brasil, eu, homem, branco, hétero, cis, classe média, sou uma das poucas pessoas verdadeiramente tratadas como cidadãs. Enquanto isso, vivo cercado de pessoas mulheres, negras, trans, pobres, homossexuais, sem-teto, com deficiência, etc, parte de um enorme exército de cidadãs de segunda classe, desfrutando de ainda menos direitos do que eu desfrutava como imigrante latino nos Estados Unidos. A questão, portanto, não é ser patriota ou antipatriota, estar em nossa terra ou em outra terra. A questão é outra: se não somos respeitadas como pessoas e como cidadãs, de que adianta estar em nossa pátria? Aliás, para que serve essa pátria? A quem essa pátria serve? Nossa pátria é onde nos respeitam. Só uma pátria que nos respeita tem o direito de nos pedir para arriscar a vida por ela.

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Verás que um filho teu não foge à luta

No ano em que completei dezoito anos, prestei o juramento à bandeira, ali no primeiro distrito naval, às margens da baía de Guanabara.

No mesmo grupo, havia vários jovens negros, magros, aparentemente favelados. Na hora de jurar que protegeriam a nação mesmo com a própria vida, mais de metade deles simplesmente riu e pulou esse trecho. O sargento ficou possesso, esbravejou, exigiu respeito. Finalmente, os meninos falaram lá as tais palavrinhas mágicas que os militares tanto queriam ouvir e pudemos todos ir embora.

Eu fui direto para o Galeão, onde a família estava me esperando para passarmos o mês esquiando na Áustria. No caminho, me lembro de pensar coisas como “que falta de respeito”, “é por isso que o Brasil não vai pra frente”, etc.

Demorei muito para entender que o Estado tinha significados diferentes para mim e para aqueles meninos. Mais importante, que o Estado se comportava de forma diferente comigo e com aqueles meninos. Que as forças de proteção e repressão do Estado tinham sido criadas justamente para proteger a mim e reprimir a eles. Sempre.

(Existe um teste simples para saber se você é privilegiado. Digamos que está num bar, começa uma confusão e, de repente, soa a sirene da polícia, você fica aliviado, pois está salvo e tudo vai se resolver; ou fica tenso, segura a identidade entre os dedos e evita movimentos bruscos?)

Falta de respeito não era aqueles jovens brasileiros se negarem a morrer pelo Brasil. Falta de respeito era o Brasil, depois de dezoito anos tratando-os como pivetes e bandidos, ainda ter o descaramento de pedir que morressem por ele.*

[*A história do juramento à bandeira é do leitor Allan Cutrim.]

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Para quem serve essa pátria?*

Minha primeira esposa, Diane, nasceu em uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população de rua em nossas calçadas. Para minha imensa surpresa de carioca, a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas. Para ela, era como se uma única criança dormindo ao relento já fosse uma enorme tragédia. (E é!) Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todas as cariocas já trazem do berço. É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror. Mas, se precisamos ser insensíveis para funcionar em sociedade, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar. Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.

Hoje, economistas admitem que o salário mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário mínimo humano e digno. Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas. Seja na época colonial ou no governo Lula, o consenso entre as pessoas brasileiras que vivem em condições humanas e dignas é sempre o mesmo: o Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas.

Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população? Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?

Ao ver a bandeira brasileira servindo de proteção a navios negreiros, bradou Castro Alves:

“Antes tivesse sido destruída na batalha do que servindo a um povo de mortalha.”

[*Essa subseção parafraseia alguns trechos da introdução do meu livro Atenção. A citação foi adaptada do poema “Navio Negreiro” (1868), de Castro Alves (1847-71), um dos primeiros a clamar que, se a nação brasileira era tão injusta e tão desigual, tão criminosa e tão escravista, talvez não fosse ruim se deixasse de existir. É uma pergunta sempre atual: hoje, é uma coisa boa que o Brasil exista?]

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Patriotismo e história

O mundo em que vivemos não é o único que poderia ter sido. A História tende a apagar a própria História: de tanto ser repetida e estudada pelas novas gerações, ela se transforma em predestinação e nos apresenta o mundo de forma naturalizada, como se tudo tivesse acontecido exatamente como tinha de acontecer. O castigo pela derrota é a exclusão retroativa da existência. Quem esteve a um triz da vitória total desaparece como se nunca houvesse nem mesmo competido. Os “laterais possíveis” desaparecem.*

Mas o mundo foi construído para ser do jeito que é hoje. Ele poderia facilmente ter sido construído de maneira diferente. E pode, ainda hoje, ser desconstruído e reconstruído.

Para isso, entretanto, precisamos conhecer as pessoas coadjuvantes, as derrotadas, as esquecidas da História. Os grupos jacobinos que não conseguiram tomar o poder durante a Revolução Francesa. Os grupos anarquistas que não conseguiram fazer frente aos bolcheviques. As rebeliões regionais que não conseguiram separar o Brasil durante a Regência. Os franceses protestantes que não conseguiram fazer da Baía de Guanabara um novo lar para exercerem sua religião.

Talvez suas causas fossem até erradas. Talvez estivessem mesmo na contramão da História. Com certeza, fracassaram de forma espetacular em seus objetivos. Mas vale a pena falar nelas nem que apenas para sempre lembrar que nada estava predestinado.**

[*A observação sobre “os laterais possíveis” da História está em “Violência Simbólica e Lutas Políticas”, nas Meditações Pascalianas, de Pierre Bourdieu.]

[**O chamado para recuperar os perdedores da História está na introdução do maravilhoso A Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson.]

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O patriotismo é o culto aos vencedores

A História, disciplina criada para validar e dar arcabouço ideológico aos jovens estados nacionais do século XIX, já nasceu do lado dos vencedores. Não existe patriotismo possível sem uma História Nacional renovando-o e naturalizando-o de geração em geração. Os atuais grupos dominantes são herdeiros dos antigos conquistadores. O discurso patriótico que canta as vitórias nacionais passadas sempre beneficia os atuais poderosos. Todos os vencedores, de todos os tempos, participam da mesma procissão triunfante, na qual os dominantes de hoje pisam e passam por cima das massas derrotadas, confirmando, ilustrando e validando sua superioridade, e trazendo nas mãos seu botim de guerra: a cultura. Os pretensos tesouros culturais da humanidade. Por isso, não pode existir nenhuma obra de arte que não seja ao mesmo tempo um inventário e um testamento de barbárie. Que não esteja ensopada de sangue. Que não seja cúmplice dos poderosos. O desafio é utilizar nossa boa, velha e ensanguentada História nacional para promover um novo tipo de patriotismo, um patriotismo que subverta e quebre a continuidade histórica da narrativa dos vencedores, que recupere as tradições revolucionárias dos vencidos, que exponha a mentira da naturalização do mundo, que nos convide a todas a recriar esse mundo de acordo com desejos e aspirações mais igualitários e mais humanos.

O Davi, de Michelângelo, não é inocente dos crimes dos financistas florentinos. “Dom Casmurro” não é inocente dos crimes da escravidão. Nós não somos inocentes da Marielle.

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O patriotismo é um documento da barbárie

A subseção anterior é uma paráfrase das “Teses sobre o conceito de história” de Walter Benjamin, escritor brilhante cuja morte ilustra dolorosamente a Prisão Patriotismo. Com a ascensão do nazismo, todas as pessoas judias alemãs como Benjamin tiveram sua cidadania revogada: seu próprio país se voltou contra elas. Se Benjamin não podia ser cidadão nem de sua própria pátria, então, de onde? Tentando chegar ao Novo Mundo, ele sai de Paris na véspera da ocupação e foge para a Espanha, então sob o comando do ditador fascista Franco. Na fronteira, as autoridades espanholas negam passagem ao grupo. Para Benjamin, aquilo significava repatriamento à Alemanha — mas como ser repatriado ao país que se negava a ser sua pátria? Desesperado, longe de casa, sem poder seguir adiante, sem ter para onde voltar, sozinho em quarto de hotel em um país estrangeiro, Benjamin comete suicídio. No dia seguinte, as autoridades franquistas autorizaram o grupo a passar. Sua lápide, na cidade de Portbou, na costa da Catalunha, cita sua famosa frase:

“Não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”

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A pátria é uma desmemória coletiva

A essência de uma pátria é a memória coletiva de suas integrantes.*

Uma das principais diferenças entre pessoas uruguaias e brasileiras é que todas as uruguaias sabem quem foi Artigas (feroz inimigo do Brasil, maior herói nacional, “Jefe de los Orientales”, “Protector de los Pueblos Libres”, etc) e aqui, quase ninguém. Por outro lado, aqui sabemos quem foi Tiradentes e lá, não.

Um exemplo: a batalha de Tacuarembó, em 1820, foi a última e mais decisiva do conflito que chamamos de “Guerra contra Artigas” — um nome interessantemente personalista, como se o Brasil estivesse lutando só contra um homem e não contra o desejo de independência de todo um povo. A derrota dos uruguaios em Tacuarembó sepultou seu sonho de autonomia por dez anos, selou o domínio luso-brasileiro do país e foi a última batalha de Artigas, que se retirou para o Paraguai e nunca mais voltou para a sua terra. O comandante português que derrotou decisivamente o maior herói uruguaio foi José Maria Rita de Castelo Branco, Conde da Figueira. Mas, do ponto de vista luso-brasileiro, essa batalha é tão insignificante que a página da Wikipédia em português dedicada a ele nem mesmo menciona sua vitória.

Talvez ainda mais importante, a essência de uma pátria é a desmemória coletiva do seu povo, um gesto ativo de esquecimento de um saber compartilhado.

As pessoas uruguaias são as que esqueceram a guerra civil fratricida que passou para a História com o sugestivo nome de Guerra Grande, entre 1836 e 1852, deixando o país enfraquecido e destruído (e, aliás, novamente dominado pelo Brasil) enquanto as brasileiras são as que esqueceram que o seu país matou quase todos os homens adultos do Paraguai e ocupou o país por onze anos, um período no qual, entre muitas coisas, foi legalizada a poligamia. (Não é por acaso que, se você buscar na internet sobre os crimes do Brasil no Paraguai, a imensa maioria das fontes estará em espanhol.)

Ignorar é bem diferente de esquecer. Ignorar é não possuir um conhecimento, e muitas vezes reflete apenas as prioridades do nosso olhar. A pessoa brasileira média ignora a história da Nigéria simplesmente porque nunca voltou os olhos para ela, nunca a considerou digna de interesse. O Brasil esteve profundamente envolvido na Guerra Grande uruguaia e pode-se argumentar que foi inclusive o seu maior vencedor e beneficiário. Mas ela já se perdeu completamente no nosso imaginário nacional. Não é nem mencionada nas salas de aula e nos livros didáticos. A pessoa brasileira média não esqueceu essa Guerra: ela nunca soube que ela existiu.

Já esquecer presume um conhecimento prévio que foi ativamente esquecido, colocado de lado, enterrado. A escravidão, o massacre das pessoas indígenas e a Guerra do Paraguai, para citar apenas três exemplos, são coisas que praticamente qualquer pessoa brasileira sabe, nem que apenas esfumadamente. Sabemos que nossos antepassados brancos mataram quase todas as nossas antepassadas indígenas. Sabemos que nossos antepassados brancos escravizaram quase todas as nossas antepassadas negras. Sabemos que nosso país ganhou uma guerra contra o Paraguai e que fizemos coisas terríveis por lá. Às vezes, não sabemos mais nenhum outro detalhe. Mas sabemos o suficiente para saber que precisamos ativamente esquecer o que sabemos todos os dias.

Sempre que uma pessoa brasileira branca cruza com uma pessoa negra na rua, ou vai opinar contra as cotas raciais, ela precisa esquecer ativamente a escravidão. Sempre que uma pessoa brasileira urbana lê uma matéria jornalística sobre Belo Monte, ela precisa ativamente esquecer o massacre dos indígenas. Sempre que falamos no caráter pacífico do povo brasileiro, precisamos ativamente esquecer a Guerra do Paraguai. E não só essa guerra, aliás, mas todos os outros massacres e violências dos quais já tomamos conhecimento, de Canudos a Carandiru, enfiando-os todos em um hiperlotado porão de horrores da memória nacional, sempre torcendo para o porão não explodir em nossa cara.

O homem que nunca esquecia nada, Funes, o Memorioso** (por acaso, uruguaio), nos ensina que para lembrar todos os detalhes de um dia é preciso perder um outro dia inteiro recordando-o. Um custo alto demais. A questão, portanto, é outra: como a História é a arte de esquecer algumas coisas e lembrar outras, então o que queremos lembrar e o que queremos esquecer? Qual é o nosso patriotismo?

[*A citação sobre a desmemória coletiva das nações é do historiador francês Ernst Renan e está mencionada no primeiro e, depois, desenvolvida no décimo capítulo de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, o melhor livro que conheço sobre nacionalismo e patriotismo. Muitas das ideias desse meu texto vêm de Anderson, apesar de ele ter uma visão bem mais positiva desses fenômenos do que eu.]

[**Conto do escritor portenho Jorge Luis Borges (1899-1986), disponível em seu livro Ficções (1944). Na história, o personagem Funes é uruguaio.]

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Por um patriotismo das vítimas, das derrotadas, das esquecidas

É fácil celebrar os vencedores da História do Brasil, os homens poderosos que construíram o país onde vivemos hoje. Mas por que não celebrar suas vítimas? Por que não celebrar quem foi morta, atropelada, deixada de lado na estrada pelo projeto de Brasil que acabou vencendo? Por que não celebrar quem era monarquista durante república e republicana durante a monarquia? O anarquismo foi derrotado na Revolução Russa, na Guerra Civil Espanhola, na Hungria, nas barricadas de Paris, em maio de 1968. Apesar disso, talvez por saber que as derrotas ensinam mais do que as vitórias, são elas que as pessoas anarquistas comemoram, são essas histórias que as inspiram. Talvez essas pessoas, mortas e derrotadas há tanto tempo, ainda tenham lições valiosas a ensinar às anti-consumistas que se opõem à sociedade de consumo, ou às militantes LGBT em uma sociedade heteronormativa.

Durante a década mais movimentada e mais esquecida de nossa História, entre os reinados de Pedro I e II, a falta de um governante central com legitimidade inquestionável fez explodirem diversos conflitos regionais antes recalcados. O Brasil, como hoje o conhecemos, quase se desfez. Só no Pará, a repressão à Cabanagem fez 20 mil vítimas. (Para efeitos de comparação, a população de Belém no início da rebelião era de 12 mil.) Talvez vivêssemos hoje em diversas repúblicas sul-americanas lusófonas. Teria sido melhor? Teria sido pior? Quem sabe. Depende para quem. Sempre depende pra quem.

Mas os vencedores — como sempre fazem, como sempre esteve predestinado que aconteceria — venceram. Seu legado (nosso legado) é esse Brasil uno, grande e poderoso que derramaram tanto sangue para construir em nosso nome. Graças a esses vencedores, durante todo o século XIX, desfrutamos de poder militar suficiente para roubarmos território de todas as repúblicas vizinhas. Algumas vezes, usamos de força bruta. Em outras, usamos intimidação e diplomacia para ratificar os territórios que os bandeirantes já haviam roubado por meio de força bruta nos séculos anteriores. Hoje, o Brasil tem mais que o dobro do tamanho que deveria ter de acordo com o Tratado de Tordesilhas. (Por trás de todo território, há sempre no mínimo um ato fundacional de violência.)

Quem sabe, se não fossem por esses bandeirantes, por esses militares, por esses diplomatas, por todos esses vencedores que exploraram, mataram, roubaram, estupraram em meu nome, eu não teria a variedade de opções profissionais que meu colega salvadorenho não tem. Quem sabe.

Mas sou ingrato. Não quero celebrar quem construiu esse país pujante que tantas escolhas me deu. Meu patriotismo não é o patriotismo de Borba Gato, do Duque de Caxias, do Visconde do Rio Branco. Quero celebrar as vítimas desse projeto nacional. Quero celebrar quem morreu em meu nome. Meu patriotismo é o patriotismo de Eduardo Angelim, de Zumbi dos Palmares, de Chico Mendes. Dos bolivianos do Acre e dos paraguaios do Guairá. Dos parakanã de Belo Monte e dos tamoios da Guanabara. Minha pátria é a pátria dos cabanos e dos canudenses, dos quilombolas e dos favelados.

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Conclusões

Nas primeiras duas Prisões, Verdade e Religião, consideramos questões epistemológicas: o que é a verdade? Como chegar a ela? Como as ideologias influenciam nossa percepção da realidade? Nas duas Prisões seguintes, Classe e Patriotismo, viramos essa mirada já problematizadora para nós mesmas: quem somos nós? Qual é a nossa essência? Ela existe? Pode ser apreendida? O que nossas muitas identidades, de classe ou de nacionalidade, nos escondem? Se somos seres gregários que não podem evitar de se congregar em grupos (se temos alguma essência, é essa), como fazer para não perpetuarmos desigualdades e opressões? Como existir coletivamente sem xenofobia contra outros grupos?

Na Prisão Respeito, em seguida, falaremos sobre poder e obediência e, também, como não poderia deixar de ser, sobre rebeldia e resistência. Em nossa sociedade, existe uma Autoridade que não só exige ser obedecida e respeitada, como também vende a obediência e o respeito a ela como as maiores e mais importantes virtudes morais. Além disso, ela também nos impõe um certo modelo de vida bem-sucedida (conseguir um diploma, ter um emprego fixo em tempo integral, casar com o sexo oposto em uma relação monogâmica, constituir família, comprar imóvel, etc) que nos impede de enxergar outras possibilidades, outros caminhos, outros modelos.

O primeiro passo para enfrentarmos essa Autoridade, entretanto, é nos dar conta que, na verdade, ela não emana das grandes instituições repressoras, do Estado ou da Igreja, mas sim que existe e reside, é praticada e exercida, por nós mesmas contra nós mesmas, infinitamente vigiando e punindo umas às outras. A Prisão Respeito é para deixarmos de trabalhar para a polícia secreta dessa ditadora.

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Excurso II

Politicamente correto

Nosso uso da língua é e sempre foi político. Não existe, nem poderia existir, linguagem apolítica, aideológica. O politicamente correto serve para destruir essa ilusão: seu grande mérito é escancaradamente politizar a palavra, permitindo que pessoas desprivilegiadas e grupos subalternos possam, enfim, se autonomear.

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Escancarando a vida política das palavras

Até pouco tempo atrás, uma pessoa brasileira desatenta poderia até pensar que a palavra “presidente” era neutra. Em 2010, entretanto, elegemos uma mulher para a presidência da República e ela manifestou seu desejo de ser chamada de “presidenta”, palavra dicionarizada em nossa língua desde o século XIX. Somente para espezinhá-la, entretanto, uma parcela significativa de pessoas brasileiras, todas coincidentemente do lado oposto do espectro política, desenvolveram uma súbita e inexplicável ojeriza a uma palavra que elas, quase com certeza, nunca tinham nem pensado. Até hoje, se referir a Dilma como “presidente” ou “presidenta” é uma maneira quase infalível de descobrir se a falante se inclina mais à esquerda ou mais à direita.

Quando Dilma foi eleita, Barack Obama era tão presidente dos EUA quanto Raul Castro de Cuba, mas grande parte da imprensa brasileira chamava o primeiro de “presidente” e o segundo, de “ditador”, como se o uso da palavra “presidente” conferisse alguma legitimidade que queriam negar ao cubano, como se um presidente não pudesse ser ao mesmo tempo um ditador, como se o mais correto não fosse usar o termo oficial, “presidente”, e não um termo que, certo ou errado, implica uma avaliação subjetiva, “ditador”.

Hoje, ninguém mais pode se enganar que escrever “a presidente Dilma” ou “a presidenta Dilma” é uma mera questão de escolha de palavras. É uma decisão política. Como, aliás, sempre foi. Agora, às claras.

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Nossa língua é a história dos nossos crimes

Uma marciana perceptiva conseguiria deduzir toda a história de machismo, racismo, homofobia (ou seja, outrofobia) da cultura lusobrasileira simplesmente lendo algumas poucas páginas escritas em português.

Ela encontraria expressões como “não seja xiita”, “pára de judiar do gato” e “não passa um cristão aqui essa hora” e se perguntaria: por que as pessoas membros de uma religião viraram sinônimos de intransigência, de outra de maldade, e, de uma terceira, de pessoa humana genérica? (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a religião dominante dessa cultura.)

Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra homens se referem a uma suposta homossexualidade (“mariquinha”, “viadinho”, “puto”), como se ser homossexual fosse a pior coisa que um homem pudesse ser. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a orientação sexual dominante nessa sociedade.)

Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra mulheres se referem a um suposto excesso de sexualidade (“puta”, “galinha”, “vadia”), como se dispor livremente de seu corpo fosse a pior coisa que uma mulher pudesse fazer. Mais ainda, ela perceberia que muitas e muitas palavras que são neutras no masculino significam variações pejorativas de mulher-que-faz-sexo-demais quando no feminino: aventureira, pistoleira, cachorra. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é o gênero dominante nessa sociedade.)

Nossa marciana perceberia que quase todas as variações de “negro” e “preto” (“enegrecer”, “empretecer” etc) são negativas e, de branco, positivas. Se estivesse lendo textos cariocas, talvez se deparasse com a expressão “neguinho” e, a princípio, talvez, pensasse que é um sinônimo de “pessoa genérica”, até perceber que quase sempre é “neguinho só faz merda” e quase nunca “neguinho ganhou o Jabuti de ficção”. (Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a cor dominante nessa sociedade.)

Nossa História não acabou: ela vive e pulsa e se reproduz nas entrelinhas da nossa língua. Mas a História não é uma prisão, nem um destino: ela é uma prática. Que pode e deve ser mudada. No nosso dia-a-dia. Uma palavra de cada vez.

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Breve história do politicamente correto

Durante muito tempo, a esquerda se definiu por um certo economicismo, que via nas questões econômicas, como desigualdade social e luta de classes, a contradição principal da sociedade capitalista e fonte de todos os seus conflitos. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, vários movimentos identitários dentro da esquerda começaram a adquirir mais visibilidade e relevância, politizando questões antes vistas como apolíticas (raça, gênero, orientação sexual, currículo escolar, literatura infantil, comida, moda, etc) e trazendo-as para a arena privada, para os cenários do dia-a-dia, para a esfera da interação social. Como dizia o novo slogan feminista, “o pessoal é político”. Não apenas os “proletários do mundo”, mas também pessoas negras, gays, feministas, etc, estavam se unindo politicamente em torno de suas identidades sociais compartilhadas. Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, enquanto a direita festejava sua (aparente) vitória e a esquerda fazia uma autocrítica de algumas de suas premissas econômicas, houve uma mudança de paradigma dentro da própria esquerda, onde as questões econômicas, apesar de sempre fundamentais, perderam terreno para essas novas “políticas de identidade”, cada vez mais proeminentes. Ao longo dos anos, a vitória dessa tendência foi tão completa que é fácil esquecer que muitas pessoas de esquerda criticavam essas preocupações identitárias como triviais e irrelevantes (especialmente quando comparadas às “verdadeiras questões da esquerda”, como pobreza, desigualdade, luta de classes) e que foram essas pessoas que inventaram o termo “politicamente correto”, para fazer pouco do que enxergavam como um zelo exagerado nas militantes das causas identitárias.*

[*Essa subseção se baseou no livro It’s a PC world. What it means to live in a land gone politically correct”, do jornalista britânico Edward Stourton, de 2008, e no artigo “Some politically incorrect pathways through PC“, de 1994, . do pensador britânico Stuart Hall.]

* * *

O que é então o “politicamente correto?”

Se quisermos saber quem são os socialistas, podemos começar lendo o que escrevem as pessoas que se dizem socialistas, como agem na esfera política os partidos ditos socialistas, como se definem as organizações ditas socialistas. Mas como definir um movimento que não existe de forma concreta, que não tem textos ou cânones que lhe definam, que não possui autoproclamadas líderes ou defensoras? Na falta dessas pessoas, só quem pode definir o politicamente correto são suas inimigas, mas elas também nem tentam.

O jornalista Leandro Narloch, em suas histórias politicamente incorretas, escritas explicitamente para “jogar tomate na historiografia politicamente correta”, nunca se preocupa em definir politicamente correto e parece simplesmente equacionar “politicamente correto” com “esquerda”. Paradoxalmente, ele ainda enfatiza que está se referindo a uma esquerda que enxergaria tudo pelo lado econômico: “nessa estrutura simplista [do politicamente correto], o único aspecto que importa é o econômico.” Mas, como vimos, ironia das ironias, foram justamente os defensores dessa esquerda “que enxerga tudo pelo lado econômico” que inventaram o termo “politicamente correto” para fazer pouco da esquerda “que enxerga tudo pelo lado da identidade”.

Até bem pouco tempo atrás, ainda circulavam pelo Brasil representantes dessa espécie dinossáurica, o esquerdista politicamente incorreto, mas, ironia das ironias de novo, foi provavelmente o sucesso dos livros de Narloch, ao fortalecer a associação entre “politicamente incorreto” e “direita”, que causou sua extinção definitiva. Hoje, aos nossos ouvidos, uma pessoa de esquerda se afirmando “politicamente incorreta” parece uma contradição em termos.

Como o politicamente correto é aquilo que as pessoas que odeiam o politicamente correto dizem que ele é, sua definição será sempre falha, parcial e pejorativa. Então, uma primeira definição pode ser: politicamente correto é o nome daquele desconforto que tanto incomoda as pessoas que se dizem “politicamente incorretas”.

E o que incomoda essas pessoas? Sua principal crítica parece ser em relação a uma pretensa “patrulha” que lhes impede de falar algumas coisas que estavam acostumadas a dizer. Será que o politicamente correto é isso? Uma censura? Um atentado à liberdade de expressão?

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Mudando o mundo, uma piada de cada vez

Pergunta de um leitor:

– Alex, meu tio sempre fez piadas homofóbicas e racistas. Sempre. Agora, depois de levar umas broncas da chefa no escritório, ele parou. Quer dizer, parou lá. Em casa, ele continua fazendo as mesmas piadas e agora reclamando dessa patrulha do politicamente correto. Mas, sério, de que adianta? Meu tio continua o mesmo racista homofóbico que ele sempre foi. O que mudou?

E eu respondo que mudou tudo. O tio é um adulto que gosta de contar piadas homofóbicas e racistas porque cresceu e se formou em um mundo, em uma sociedade, em uma família, onde contar piadas homofóbicas e racistas era aceitável e esperado. Esse comportamento, além de não ter custo social algum, ainda trazia vários benefícios, como ser percebido como uma pessoa divertida, bem-humorada, etc.

Já o seu filho está crescendo em um mundo radicalmente novo. Na melhor das hipóteses, o filho concorda com a chefa do pai que piadas racistas e homofóbicas são inaceitáveis, está feliz do pai não estar mais contando esse tipo de piada e, naturalmente, quando tiver suas próprias filhas e filhos, não vai lhes contar essas piadas, quebrando assim a corrente de transmissão. Na pior das hipóteses, mesmo que esteja revoltado do pobre pai estar sendo oprimido pela patrulha do politicamente correto, esse filho também está crescendo no mundo radicalmente novo onde essas piadas não são aceitáveis nem esperadas nem recompensadas, mas sim tem um custo social real. Por mais que esse filho ache que contar piada homofóbica não tem nada demais, amanhã, quando estiver no primeiro dia de trabalho em uma nova empresa, não vai contar uma piada homofóbica (como talvez o pai fizesse sem nem pensar vinte anos antes), porque, mesmo se nenhum colega for homossexual, ele pode estar se queimando severamente no escritório. A corrente de transmissão não se quebra, mas se enfraquece.

Essa pequena diferença, acontecendo milhões e milhões de vezes todos os dias, é o que muda o mundo.

* * *

Hospedeiras, não vetores

O racismo e a misoginia, a homofobia e o capacitismo, e todas as vertentes possíveis e imagináveis da outrofobia, não têm existência concreta. Elas precisam de nossa cumplicidade para existir.

Somos todos crias da mesma sociedade outrofóbica. Já “sabemos” que ser homossexual é pecado, que pessoas negras têm “cabelo ruim”, que mulheres foram feitas para a maternidade, muito antes de sentirmos em nós mesmas os primeiros desejos homossexuais ou de termos qualquer noção de nossa identidade negra ou feminina. Então, nada mais natural do que existirem pessoas negras racistas, homossexuais homofóbicas, mulheres machistas: elas não são bugs do sistema, mas sim features. Quando uma pessoa escuta por toda a sua vida que o seu “cabelo é ruim”, nada mais compreensível que ela acredite e nada mais árduo do que vencer essa programação.

Somos todas hospedeiras da cultura outrofóbica. Trazemos dentro de nós todos os xingamentos homofóbicos, todas as piadas racistas, todos os lugares-comuns machistas. (Por isso também ninguém está livre, nem mesmo a mais politizada militante, de escorregar e deixar escapar uma atitude ou fala outrofóbica.)

Talvez o meu amigo Grafite realmente não se importe de ser o Grafite em um escritório de Cláudios e Felipes. Talvez o Grafite considere que, para seus objetivos profissionais, é melhor não virar “o chato do escritório” (“Pô, Grafite, você vê racismo em tudo!”) e decidiu lutar outras batalhas. Não cabe a mim julgá-lo, ainda mais que nunca vou saber a pressão e o preconceito que sofrem um homem negro no Brasil. Mas eu posso escolher não chamá-lo de Grafite. Pra mim, ele é o Paulo Roberto.

Se não temos escolha de sermos hospedeiras da cultura outrofóbica, temos escolha sim de sermos vetores. A escolha de passar adiante esses horrores do passado é só nossa. A homofobia é um conceito abstrato. Ela não tem existência concreta. O que existe são pessoas que contam piadas homofóbicas. E posso escolher não ser uma delas.

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O poder da palavra

Uma das principais lições que a filosofia nos ensinou no século XX é que a palavra molda o mundo. Nomear é poder. Nossa relação com a realidade é sempre mediada pela palavra: todas as relações de poder passam, em algum momento, pela palavra. Quem nomeia dá o tom, dita as regras, efetiva a posse. (Não foi à toa que os navegantes portugueses do século XVI subiram e desceram a costa brasileira colocando nome de santo em cada acidente geográfico de uma terra onde mal tinham pisado.)

Muitas pessoas sentiam-se insultadas e diminuídas ao serem chamadas de “deficientes”, uma definição baseada em um diagnóstico médico. (Seria como chamar alguém de “canceroso” ao invés de simplesmente dizer que “ela tem câncer”.) O movimento “people first” (pessoas primeiro) defende que se coloque as pessoas antes das doenças e que se descreva o que elas têm e não o que são. Por isso, hoje, o termo mais usado é “pessoa com deficiência” — daí o nome da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Faz sentido ser contra? Quem teria o direito de exigir chamá-las de “deficientes”, “cadeirantes” ou o que seja? (E, aliás, como as pessoas com deficiências não são um bloco homogêneo de opiniões unânimes, também existem algumas que criticam essa expressão e propõem outras.)

Respeitar o modo como as pessoas querem ser tratadas deveria ser uma simples questão de empatia, quando não de boas maneiras: é triste precisar ser um movimento político, e polêmico ainda por cima. Se podemos falar dos “princípios” de algo que nem existe, como o politicamente correto, um deles seguramente seria: nomear a si própria. Aliás, como as pessoas privilegiadas sempre foram donas do discurso e se autonomearam, na prática estamos falando de estender esse direito também às minorias marginalizadas e desprivilegiadas. Ou seja, de tirar das pessoas privilegiadas esse poder de nomear o Outro e garantir às pessoas desprivilegiadas o poder de nomear a si mesmas. Portanto, quando as pessoas privilegiadas reclamam da “patrulha politicamente correta” estão reclamando da perda desse privilégio nomeador.

Uma verdadeira liberdade de expressão

O politicamente correto não oprime, nem patrulha. “Patrulha” são soldados armados por um governo que lhes dá poder de matar. “Opressão” é quando instituições, públicas ou privadas, impõem suas regras sobre pessoas comuns. Só quem tem poder de oprimir e patrulhar são as instituições, o estado, as grandes empresas. Só quem tem poder de oprimir e patrulhar são as ideologias hegemônicas: o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo, a intolerância religiosa; enfim, todas as vertentes da outrofobia. Como pode ser “opressor” e “patrulhador” algo tão abstrato, tão minoritário, tão fraco quanto o politicamente correto? Como pode ser “opressora” e “patrulhadora” uma gota de discurso homoafetivo em um mar cultural de homofobia?

O politicamente correto é uma nova ética, resultado de uma maior participação social de minorias até então silenciadas; um código de conduta não-escrito, autodefinido por cada uma de nós, pessoas comuns que não têm poder de impor suas vontades às outras, através do qual tentamos agir e falar da forma que nos parece mais empática e mais generosa. O politicamente correto somos todas nós decidindo não assistir mais o comediante que faz piada de estuprar grávida, não dar mais às nossas crianças os livros infantis do autor racista, não mais chamar uma minoria pela palavra que ela acha ofensiva. Como podem acusar esse processo de opressão, patrulha, censura?

Um comediante ter a liberdade (assegurada na constituição) de fazer piada de estupro e nós, pessoas comuns, termos a liberdade (assegurada na constituição) de escrever textos criticando-o e propondo boicotes ao seu show… é a essência da liberdade de expressão em uma sociedade democrática. Se não isso, o que queriam? Poder falar o que quiserem e nunca ser criticados? Isso não seria liberdade de expressão, seria privilégio: o privilégio do qual sempre desfrutaram as classes dominantes, o privilégio que o politicamente correto — ao defender uma verdadeira liberdade de expressão, uma liberdade de expressão aberta a todas as pessoas, privilegiadas ou não — lhes tirou. Nada poderia ser mais anti-censura, anti-patrulha, anti-opressão do que isso.*

[*Desenvolvo a fundo essa questão dos limites do humor na “Carta aberta às humoristas do Brasil”, no meu livro Outrofobia, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015.]

Em qual time queremos estar?

Sim, as militantes de causas identitárias são muitas vezes radicais e cometem excessos. Mas é porque estão na vanguarda. Quase sempre, só as pessoas mais radicais, aquelas que veem o mundo em branco-e-preto, são as que conseguem efetivamente romper a inércia dos tempos e tomar as atitudes que mudam o mundo, enquanto as pessoas acomodadas olham de longe, balançam a cabeça, fazem “tsc tsc” e têm filhas que vão colher os frutos desse radicalismo.

Então, apesar de todas as ferozes brigas internas, apesar dos (pretensos) radicalismos e dos (ditos) excessos, quando as balas de borracha começam a voar, precisamos decidir se estamos com quem defende respeito e dignidade para as pessoas trans ou com quem exige o direito de fazer “piada de travesti”. Se o segundo grupo orgulhosamente se autoproclama “politicamente incorreto”, então não faz sentido as pessoas do primeiro fugirem da pecha de politicamente corretas. Proponho tomarmos para nós, também com orgulho, esse termo. Pois eu tenho orgulho de estar do lado oposto dessa gente.

Ressignificando o politicamente correto

Há muito tempo, nos Estados Unidos, as pessoas homossexuais eram chamadas pejorativamente de “queer”, um adjetivo que significa “estranho”. Em um dado momento, a comunidade homossexual tomou o termo para si, criou slogans como “I’m queer and proud of it” (“Sou estranho e tenho orgulho disso!”) e, em poucos anos, conseguiu ressignificar a palavra. Hoje, “queer” não é mais um termo pejorativo: ele pertence à comunidade homossexual.*

O termo “politicamente correto” hoje é usado pela direita para fazer pouco das prioridades linguísticas e políticas de uma parte da esquerda — como, por exemplo, utilizar o termo “pessoas com deficiências” e não “deficientes” — mas não existe um movimento “politicamente correto”, ninguém bate no peito pra se dizer “politicamente correta”.

Entretanto, se você acha, como eu, que faz todo o sentido do mundo chamar as “pessoas com deficiências” pela expressão que lhes deixa mais confortáveis, então talvez seja a hora de cooptarmos para nós a expressão “politicamente correto”.

Se ser “politicamente correta” é se importar com o efeito que nossas palavras têm nas outras pessoas, em especial nas pessoas marginalizadas, então, sim, talvez devêssemos bater no peito e nos afirmar “politicamente corretas”.

[*A filósofa norte-americana Judith Butler, uma das pensadoras mais importantes da nossa era, fala de “ressignificação” em Problemas de gênero (1990) e Excitable Speech (1997), entre outros.]

E a liberdade de expressão?

Não tem como falar de politicamente correto sem falar de liberdade de expressão. Afinal, a principal acusação de seus detratores é que o politicamente correto é inimigo da liberdade de expressão. O assunto será tratado na Prisão Liberdade.

* * *

Série “As Prisões”

Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:

  1. Verdade
  2. Religião
  3. Classe
  4. Patriotismo
  5. Respeito
  6. Trabalho

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 17h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

2 respostas em “Prisão Patriotismo”

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