Categorias
prisões

Prisão Respeito

Ser uma pessoa adulta é finalmente aprender a impor limites e dizer “não”. Não apenas ao pai e à mãe, mas à Autoridade de modo geral. Ao Mundo.

A Autoridade sempre impõe não só o respeito e a obediência como virtudes autoevidentes, mas também um script da vida bem-sucedida. Acreditar nessa narrativa pode nos impedir de enxergar outras possibilidades, outros caminhos, outros scripts. Mas só temos como nos libertar dessa Autoridade quando percebemos que ela não é o Estado, ou nenhuma grande instituição, mas sim nós mesmas, infinitamente vigiando e punindo umas às outras.

(Essa é a versão final completa da Prisão Respeito. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Respeito é a quinta , depois das Prisões VerdadeReligiãoClasse e PatriotismoAs inscrições para o curso estão abertas.)

Introdução à Prisão Respeito

Começamos nosso percurso na Prisão Verdade, onde concluímos que não existe essa Verdade assim com V maiúsculo: mais importante são as certezas que construímos nós mesmas. Depois, na Prisão Religião, problematizamos essas certezas, pois percebemos que foram determinadas pelas ideologias através das quais apreendemos a realidade. Até aqui, estávamos falando de epistemologia, ou seja, da teoria do conhecimento. Agora, começamos a falar de identidade: nas Prisões Classe e Patriotismo, nos damos conta que essa ideologia pela qual apreendemos a realidade não foi escolhida por nós, nem, em larga medida, pode ser des-escolhida, mas é fruto dos grupos onde nascemos e crescemos, dos quais os mais importantes e influentes são nossa classe social e da nossa nacionalidade.

Agora, na Prisão Respeito, a pergunta é: o que devemos a esses grupos que nos circundam, nos possibilitam, nos moldam, nos limitam? Devemos respeito? Devemos obediência? O sucesso é um conceito social: ser bem-sucedido, em larga medida, é atingir os objetivos e parâmetros que nosso grupo determina como desejáveis. (Em algumas sociedades, o ideal de beleza é ser magra, em outras, gorda, etc.) Mas como podemos ser bem-sucedidas na vida se estamos em conflito aberto com as expectativas, com as regras, com os costumes de nosso grupo? Se desrespeitarmos os costumes ou se desobedecermos as leis do nosso grupo, qual é o preço que teremos que pagar? Vale a pena? Existe vida fora do grupo?

Somos macaquinhas gregárias: a evolução não nos preparou para nada tão bem quanto para funcionarmos em grupo, eternamente catando piolhos umas das outras, mas também vigiando e fiscalizando nossos comportamentos. Todo grupo, por sua própria natureza, mesmo os melhores, os mais livres, os mais liberais, tende a consumir, deglutir, dominar os indivíduos.

Em um primeiro momento, cabe a nós a disciplina de não atuarmos como polícia secreta do grupo. Uma pergunta que sempre vale a pena fazermos para nós mesmas: por que esse comportamento da outra pessoa me incomoda tanto? E daí que ela quebrou essa ou aquela regra social? E daí que ela escolheu viver diferente de mim? Isso me afeta? Isso me ameaça?

Mais ativamente, entretanto, cabe a nós termos não só a força de caráter para dizer “não” a algumas das demandas do grupo, estabelecendo assim um espaço inviolável para nossa individualidade, como também, depois disso, termos a serenidade de aceitarmos o preço que será inevitavelmente cobrado.

A potência de um “não” salva vidas, porque todo “não” também é um “sim”: falamos “não” (por exemplo) à obrigação social de sermos monogâmicas… para podermos falar sim para os novos tipos de relações não-monogâmicas que desejamos viver. Não temos como fugir dos nossos instintos gregários, da nossa necessidade de pertencimento ao grupo… mas podemos mudar de grupo. Dizer “não” a um grupo é dizer “sim” a outro.

Nessa pequena, importantíssima, inalienável margem de manobra, está a nossa possibilidade de potência individual.

* * *

Somos as vítimas e somos as algozes

Roberto Freire era médico psiquiatra. Uma vez, ao tratar um paciente homossexual, ele se deu conta de que nada adiantava curar os danos psíquicos que a sociedade homofóbica fizera àquela pessoa somente para depois soltá-la no mesmo mundo homofóbico que tinha lhe adoecido. De uma maneira bem real, a única maneira de curar a doença daquele único paciente era curar a doença de toda a sociedade.

Pois, em sociedade, existem regras. Todas sabemos que o ideal é que sejamos heterossexuais, monogâmicas, religiosas; que tenhamos casa própria, automóvel na garagem, emprego em tempo integral; que mulher deve usar cabelo longo e homem, curto; que pelo entre a boca e o nariz do homem se chama bigode e é bonito, na mulher, o mesmopelo se chama buço e é feio; e etc etc literalmente infinitos.

Não sabemos quem foi o tirano ditador que inventou essas regras (que não deixam de ser concretas por não serem escritas) mas sabemos perfeitamente quem é a polícia secreta dessa ditadura, quem são os agentes repressores encarregados de implementar essas regras opressivas e aleatórias: somos nós mesmas.

Esse tirano ditador, por não ter existência concreta, não tem como fisicamente impor sua vontade sobre nós. Para exercer sua opressão, ele precisa nos converter, ao mesmo tempo, em vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando umas às outras, sempre implementando suas regras, seus julgamentos, suas leis.

Nosso maior desafio de pessoas éticas e de cidadãs responsáveis é, em primeiro lugar, deixarmos de trabalhar para a polícia secreta desse ditador (ou seja, pararmos de oprimir as pessoas a nossa volta) e, em segundo lugar, escaparmos nós mesmas de seu controle opressivo.

Escrevo sobre esse tirânico ditador há vinte anos. Escolhi chamar suas diferentes manifestações de Prisões: são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem-sentido. Tudo que é quase unânime em nossa cultura provavelmente sempre foi ou se converteu em uma “prisão”: Dinheiro, Trabalho, Monogamia, Religião, Patriotismo, Respeito, Felicidade, Autossuficiência, etc.

Os grandes crimes da humanidade, as piores crueldades, os genocídios e os massacres, foram todos cometidos por pessoas obedientes e cheias de certezas. As pessoas rebeldes, as pessoas incertas, as pessoas do contra, as pessoas confusas, essas podem até fazer muita besteira, mas não marcham em uníssono ao som de tambores. Desde o Julgamento de Nuremberg, “estar só obedecendo ordens” já não é mais defesa para ninguém.

A Autoridade (Estado, família, escola, etc) sempre vai querer decidir o que é melhor para nós. Mas temos sim a liberdade de dispor de nossas vidas como quisermos. A opção é entre viver a vida que escolheram pra nós, e pagar o preço, ou viver nossa vida nos nossos próprios termos, e pagar o preço. A ilusão que nos imobiliza é enxergarmos muito claramente o preço que pagamos pela segunda, mas naturalizarmos o preço da primeira. Se já parto do princípio que ficar horas em deslocamento para passar quase todo meu dia num cubículo realizando objetivos que não são meus em troca de um dinheiro que mal dá para eu sobreviver em uma vida na qual nunca sobra tempo para os meus projetos é a “vida normal”, então todas as dificuldades de qualquer modelo alternativo a esse, ou seja, de uma “vida anormal”, serão vistas como irrazoáveis e intoleráveis. Todo mundo sabe quais são as dificuldades da vida de artista: ninguém fala das dificuldades de vida de não-artista. Naturalmente, as opções não são só “se escravizar num escritório” ou “ser artista”. Cabe a cada uma de nós explorar as infinitas possibilidades que nos estão abertas entre ambos extremos.

* * *

Um “não” desmonta o mundo

Como dizia o Oscar Wilde apócrifo que trago introjetado dentro de mim: “Adoraria ir a sua festa, mas, infelizmente, não quero.”*

A novela Bartleby, o escrevente, de Herman Melville, o mesmo autor de Moby Dick, mostra um funcionário que finalmente aprende a dizer… não.

− Bartleby, pode ficar até mais tarde?

− Prefiro não.

− Bartleby, pode ir buscar uma coisa ali na esquina?

− Prefiro não.

Gavin deBecker, em seu livro As virtudes do medo**, enfatiza que “não” é uma frase completa. Um “não” sozinho já se basta. Reparem a diferença entre:

− Quer sair comigo?

− Não, hoje estou ocupada…

− Ok, então, quando desocupar, rola?

ou

− Não, peguei uma gripe…

− Assim que sarar, então, tá valendo?

e

− Quer sair comigo?

− Não, obrigado, prefiro não.

Como rapidamente aprendem as mulheres nesse nosso mundo machista, qualquer coisa dita depois do “não” já transforma sua negativa em negociação.

Já faz muitos anos, parei de dar desculpas. Sou adulto, vacinado, pago minhas contas. Portanto, tirando uma ou outra obrigação, me parece natural que eu só faça o que eu quero. E, consequentemente, se me convidam para algo e eu digo “não quero”, isso deveria encerrar qualquer discussão, sem eu precisar me explicar, apelar para outros compromissos, inventar justificativas.

Naturalmente, nada disso é natural, pois cada vez que eu recuso um convite dizendo simplesmente “não, obrigado, não quero” isso é uma quebra tão grande das expectativas que parece que as pessoas à volta ficam totalmente sem resposta, não acreditam, acham que não ouviram direito, pedem pra repetir. E eu repito, sempre no tom mais bem educado possível:

− Quer ver uma foto linda da minha netinha?

− Não, não quero, não, obrigado.

Ou:

− Aaahh, da próxima vez que você for à praia me chama pra gente ir junto!

− Ahh, nah, quero não, mas obrigado.

Ou então:

− Alex, quer traduzir esse texto aqui pra mim?

− Pô, cara, quero não, mas obrigado por perguntar.

E também:

− Meu filho, vamos visitar seu avô?

− Valeu pelo convite, mãe, mas não quero não. Boa visita.

Muitas vezes, quase sempre, a pessoa fica tão desarticulada pela negativa que insiste:

− Ah, tem certeza? Vamos sim. Vai ser legal. Deixa de ser chato.

Aí quem fica chocado sou eu e respondo em um tom um pouco mais duro:

− Perdão, mas dado que eu manifestei claramente que não quero, qual é o sentido de insistir? Você quer realmente que eu te acompanhe contra a minha vontade?

Esse nosso desrespeito pelo não alheio, mais brasileiro que jaboticaba, é algo que muitas pessoas estrangeiras morando no Brasil demoram a se acostumar. Como me contou um amigo:

− Na minha terra, digo ‘não, obrigado, não quero’ e todo mundo respeita. Aqui no Brasil, todo e qualquer ‘não’, mesmo se falado da maneira mais delicada possível, é sentido como uma ofensa, a pessoa fica ferida, magoada, pode até afetar a amizade. A única maneira de evitar o insulto é efetivamente convencendo a pessoa de que minhas razões são fortíssimas, inadiáveis, inapeláveis. É uma coisa muito louca: eu me pego, todo dia, argumentando para pessoas que eu às vezes nem conheço que eu tenho sim o direito de não ir aos lugares onde eu não quero ir!

Não é questão de ser sincero. Às vezes, eu não quero ir porque não estou a fim, porque estou num dia ruim, qualquer um de mil motivos pessoais. Noutras vezes, eu não quero ir porque me será um sacrifício passar horas com aquela pessoa que considero chata, desagradável, tediosa. De um modo ou de outro, não me considero obrigado a dar satisfações sobre os motivos de eu estar livremente exercendo meu direito de ir e vir. Se considero algumas pessoas insuportáveis, nunca vou magoá-las com essa triste verdade, mas também não vou lhes oferecer meu corpo e meu tempo em holocausto no altar da sua chatice.

Não é questão de não ser empático ou de não dar atenção. Existem sete bilhões de pessoas no mundo. Não tem como dar atenção para todas: é preciso escolher, os critérios sempre serão pessoais e cada pessoa terá os seus, baseados em suas vivências, em seus traumas, em suas biografias. O mais importante é eu ter claro para mim que o meu tempo só pertence a mim e que é o meu bem mais precioso, o único bem realmente não-renovável. Ninguém tem direito ao meu tempo: eu o compartilho com quem eu quiser. As pessoas confundem muito “ter empatia” com “se deixar subjugar” ou “obedecer”:

− Ai, Alex, como você pode dizer não assim na lata pro Fulano? Você não sabe como ele é carente? Você não sabe como ele vai sofrer?

Mas eu ter empatia por ele, eu conhecer sua biografia e as circunstâncias familiares que lhe tornaram carente, eu saber a dor da pequena rejeição que estou lhe causando… nada disso quer dizer que eu tenha obrigação de lhe ceder meu tempo. Talvez eu tenha decidido que tem outras pessoas que eu posso ajudar mais. Talvez eu ache que ele precise de ajuda mas que eu não sou a pessoa certa. Talvez eu só não esteja a fim, porque ninguém é de ferro. Todo assassino em série teve uma infância difícil. Imaginem quanto sofreram os filhos do Bolsonaro. Nada disso justifica nos entregarmos a essas pessoas em sacrifício.

Por fim, alguém sempre me fala:

− Se você falar não pra tudo, vai perder todos os seus amigos!

Mas de que servem amigas que não respeitam as minhas vontades? Quanto mais velho eu fico e quanto mais pessoas chatas eu vou deixando pelo caminho, mais eu me encontro cercado por pessoas verdadeiramente incríveis, pessoas com as quais eu me sinto plenamente visto, ouvido, contemplado, respeitado. Isso não tem preço.

[*Juro que me lembro de ter lido essa boutade do Wilde em algum momento, mas não consegui encontrar. Se alguém descobrir, por favor, me fale.]

[**O livro As virtudes do medo, de Gavin deBecker, sobre como se prevenir contra violência, já salvou a minha vida e a de algumas pessoas queridas também. É o livro que mais presenteei ao longo dos anos. Se você só aceitar uma recomendação minha de leitura, aceite essa. Vale em dobro para quem é mulher.]

* * *

On the road, de Jack Kerouac: a celebração de um “não”

O livro On the road (1957), de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos.

“A coisa mais cruel que se pode fazer com Kerouac é relê-lo aos 38,” zoou o escritor britânico Hanif Kureishi, em O Buda do subúrbio. Eu, por acaso, reli On the road aos 38. Minha primeira leitura tinha sido aos 29, quando já não estava mais na idade de acampar, pegar carona ou outras coisas que aliás nunca fiz, nem aos dezoito.

Quando temos dezoito, ainda não sabemos fazer nada direito, nem ler, nem transar, nem coisa nenhuma. (Dica: já que não podemos voltar no tempo e retransar nossas transas toscas dos 18, podemos ao menos reler os livros que lemos.) Então, aos 18, quando fazemos tudo de forma superficial e apressada, quando estamos loucas para pegar o carro e sumir, é fácil ler o romance de Kerouac como uma celebração desse espírito.

Mais tarde, aos 38, quando a vida já sugou nosso espírito e nossa energia, quando olhamos com pena e escárnio para nossa persona de dezoito, quando fazemos pouco de seus sonhos e esperanças sem nos dar conta que não conseguimos acrescentar melhores sonhos e esperanças nesse meio tempo, então, é fácil lembrar somente de nossa desleitura adolescente de On the road e usar isso para menosprezar o livro:

“Rá, só um livro bobão e pueril sobre jogar pro alto as responsabilidades e pegar a estrada! Não tenho mais tempo pra isso! Minha vida hoje é muito melhor! Tenho três filhos de dois casamentos, uma hipoteca da casa, trabalho dezesseis horas por dia e devo dez mil no cartão de crédito, mas, se Deus quiser e meu coração deixar (estou com a pressão meio alta, sabe?), em vinte anos eu consigo minha aposentadoria, vou comprar aquela casinha em Iguaba Grande e, aí sim, vocês vão ver, eu vou ser feliz!”

Mas, justamente, On the road é um clássico da literatura universal por não ser apenas isso. Sal Paradise e Dean Moriarty, os personagens principais, são da geração de nossos avós e bisavós. Nós, as gerações seguintes, com tanta coisa melhor pra fazer, com iPorras e iPulhas, não continuaríamos lendo sobre as farras de nossos bisavós se elas também não dialogassem diretamente com a nossa experiência.

A intenção de Kerouac provavelmente era sim fazer uma celebração da estrada. Se tivesse sido bem-sucedido, provavelmente não estaríamos falando dele hoje. Porque todo grande livro é mais inteligente que seu autor. Toda grande obra contém em si o seu próprio contradiscurso. Toda grande narrativa sempre se constrói em torno de uma fratura estrutural que ameaça lhe demolir. É essa tensão que atrai os leitores, que nos faz voltar ao livro sempre renovados, que nos faz ler e reler, emprestar e resenhar, recomendar aos filhos e aos alunos. Esse é o ciclo de vida de uma obra. Só os livros que causam esse tipo de engajamento conseguem sobreviver de uma geração para a outra, e se tornar clássicos.

Então, por um lado, On the road é a história de Sal Paradise, um escritor certinho de Nova Iorque, que encontra o malucão Dean Moriarty, e sai loucamente com ele pelas estradas da América do Norte. É a celebração da estrada, um elogio à liberdade, um chamado para que todos saiam de suas casas e sumam por aí. Eba!

Mas, por outro lado, On the road é exposição, progressiva e sistemática, desse exato contradiscurso. Apesar de idolatrar Dean, até mesmo Sal vai percebendo que ele é um canalha, egocêntrico, narcisista que só se preocupa consigo mesmo; que usa as pessoas como se fossem objetos – carteiras, especialmente; que não tem pudor nenhum em descartá-las quando lhe dá na telha. Ao longo do livro, várias pessoas, inclusive o narrador, são atraídas pela energia e força vital de Dean… até perceberem que essa energia e força vital está sendo sugada delas mesmas: como um vampiro, Dean se alimenta dos seus fãs. Suga até o caroço e depois cospe fora.

Por isso, Sal diversas vezes larga a estrada e volta para Nova York, para o rabo de saia da mãe, para o ambiente familiar e seguro onde pode viver e trabalhar. A estrada pode até ser boa, parece dizer o livro, mas não por muito tempo: bom mesmo é uma casa tranquila e uma mãe companheira. Até que, mais uma vez, Sal fraqueja, fica de pau duro por Dean, ambos pegam a estrada, Sal quebra a cara, volta pra Nova York. O livro acontece nesse movimento pendular. Na prática, como O processo, de Kafka, On the road poderia continuar ad eternum, em uma infindável sucessão de idas e vindas, mas o livro só termina mesmo quando Sal finalmente supera Dean.

O final de um livro revela seu enredo. Por isso, é sempre interessante reparar onde as narrativas começam e terminam, pois essas balizas nos revelam qual é a história sendo contada – algo nem sempre óbvio.

Um exemplo: o que os últimos seis capítulos do Senhor dos Anéis revelam sobre o plano geral do livro? Afinal, a história poderia ter acabado com a destruição do anel e a vitória sobre Mordor, não? Seria até um final natural… Por que então o autor escolheu não terminar o livro ali? Se o Senhor dos Anéis não é a história da vitória sobre Sauron… é a história do quê? A adaptação cinematográfica de Peter Jackson é incrível, quase um milagre, na verdade, mas Tolkien teria odiado – como Stephen King odiou a adaptação de Kubrick para O iluminado – porque, ao omitir o final que Tolkien considerava dar sentido à toda obra, Jackson estava efetivamente contando outra história.

Pois On the road começa com Sal conhecendo Dean e termina no momento em que ambos se esbarram na rua, em Nova York, Dean chama “vem”, e Sal, escaldado, responde “não, obrigado, estou com amigos, a gente se vê.” Em literatura, tudo é contexto. Então, cabe ressaltar que essa cena não é mostrada como “a derrota de Sal” ou “vejam como Sal ficou careta”, “a vida derrotou Sal”, “o bobão do Sal ficou pra trás enquanto Dean ganhou o mundo”, etc. Pelo contrário, o que a cena mostra é: Dean está só, depois de passar a vida usando e abusando de todos; e Sal, nosso alter-ego, está sábio o suficiente para não mais se deixar vampirizar. E, nesse momento, termina o livro.

Ou seja, On the road é não uma celebração da estrada (se fosse, o livro terminaria com todos alegremente ainda dirigindo pelo país) mas sim a história do amadurecimento de Sal Paradise. De como ele finalmente aprendeu a dizer “não”.

* * *

“Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não.”

Um amigo, contando sobre suas escolhas profissionais:

− Eu queria fazer Artes Cênicas, mas meu pai, que nunca me obrigou a nada, ficou insistindo pra eu fazer Direito, que Direito dava dinheiro, que Direito era mais seguro, que com Direito eu poderia fazer muitas coisas, e falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar.

− E o que você fez? − perguntei.

− Cedi. Fiz Direito.

− É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?

− Bem, eu queria fazer penal, mas meu pai, que é super compreensivo e bem intencionado, ficou insistindo pra eu fazer Direito Tributário, porque Tributário é que dava dinheiro, porque Penal tem que ficar lidando com bandidos, que Tributário todas as empresas precisam, que ele tinha amigos nessa área, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar.

− E o que você fez? − perguntei.

− Cedi. Fiz Tributário.

− É uma tática, falei. Ele encheu seu saco e você, pra se livrar da chateação, cedeu e fez o que ele quis. Funcionou?

− Bem, eu queria trabalhar no Tributário de uma ONG, ajudar o mundo e coisa e tal, mas meu pai, que sempre só quer o meu bem e me ajuda muito, ficou insistindo para eu trabalhar no escritório do amigo dele, que era muito maior e mais sólido, onde eu teria um plano de carreira, onde eu prestaria serviços para as maiores e mais lucrativas multinacionais do mundo, etc etc, falou e falou, argumentou e insistiu, sem parar.

− E o que você fez? − perguntei.

− Bem, aí eu rodei a baiana, né? Eu disse, porra, pai, já tenho 30 anos, sou formado em Direito, vou trabalhar onde eu quiser, caralho!

− E aí? Ele te deserdou? Deu na sua cara? Cometeu suicídio de tanto desgosto?

− Não. Ele falou, tá bem, meu filho, claro, é a sua vida.

Ficamos um pouquinho em silêncio e ele mesmo continuou:

− E eu pensei: putz, se tivesse falado isso dois anos antes, teria feito Penal e não Tributário. Se tivesse falado isso cinco anos antes, teria feito teatro e não Direito. Se eu soubesse que podia dizer não, nunca teria terminado o namoro com a Paulinha, nunca teria me forçado a ir à igreja, nada disso.

E completou:

− Minha vida toda teria sido outra. Bastava ter dito não.

* * *

Respeito é uma via de mão dupla

Quando escrevo sobre obediência, muitas pessoas respondem com uma variação de:

− Eu obedeço meu pai/meu professor/minha esposa/etc… por respeito!

Em algumas hierarquias, já entramos voluntariamente e de olhos bem abertos: ao aceitar o emprego de gerente do Banco do Brasil, ou me alistar tenente da Marinha, sabemos que teremos que obedecer ao vice-presidente e ao vice-almirante, etc. Além disso, reconhecendo ou não o Contrato Social, obedecemos ao policial militar porque ele de fato tem o poder de nos matar ou nos prender. Fora dessas situações bem específicas, ninguém tem o direito de mandar em nós. Apesar disso, todo dia, o dia todo, é surpreendente a quantidade de ordens, implícitas e explícitas, que recebemos de nossas mães e de nossos maridos, dos seguranças de shopping e das colegas de trabalho. Então, quando alguém me dá uma ordem, eu até poderia “obedecer por respeito”. Mas uma pessoa que me dá uma ordem que ela não tem direito de dar é uma pessoa que não me respeita. E não obedeço quem não me respeita.

Também sempre escuto variações da seguinte história:

− Não pude fazer faculdade de Letras porque meu pai me obrigou a fazer Engenharia.

Nesse caso, existem duas alternativas: ou o pai aceita as escolhas do filho e fica feliz por ele, seja cursando Artes Cênicas ou Direito; ou o pai não respeita as escolhas do filho e só lhe amará e aceitará se fizer o que ele quer. Nesse último caso, como o pai não respeita o filho, eu diria que o filho está automaticamente liberado de respeitar o pai. Afinal, respeito é uma via de mão dupla.

* * *

Ser adulto é dizer “não” e pagar o preço

Ser uma pessoa adulta é finalmente aprender a impor limites e dizer “não”. Não apenas ao pai e à mãe, mas à Autoridade de modo geral. Ao Mundo.

Sempre que falo de pai não estou falando realmente de pai. Nosso pai e nossa mãe são apenas as primeiras autoridades com as quais temos que lidar. Depois, vêm professoras, chefas, coleguinhas, revistas femininas, padres, comédias românticas, etc, todas sempre tentando nos impor o mesmo roteiro preestabelecido: temos que ser monogâmicas, heterossexuais, religiosas, fazer universidade, trabalhar em tempo integral, namorar, casar, ter filhos, comprar casa, etc etc. Muitas vezes, basta uma única discordância para sentirmos todo o peso da reprovação social sobre nós. (Perguntem a qualquer mulher que siga todo o acima mas que, pasmem!, não tenha filhos.)

Por isso, só nos tornamos adultas quando finalmente aprendemos a impor limites e dizer “não”: que aceitamos, por exemplo, que o mundo nos diga que temos que vestir gravata no tribunal ou usar cinto de segurança no carro, mas que não aceitamos que nosso pai nos imponha uma carreira, ainda que tenha nos sustentado no passado, ou que nosso chefe nos imponha trabalho no fim de semana, ainda que nos sustente hoje. É estabelecer, com serenidade e sem rebeldia, que aceitamos ingerência externa somente até certo ponto.

* * *

O preço da desobediência

Em 1846, o escritor norte-americano Henry David Thoreau foi preso por não pagar impostos. O dinheiro seria usado para financiar a Guerra Mexicano-Americana — talvez o maior crime da política externa dos Estados Unidos, uma disputa acirrada. Thoreau escreveu, em Desobediência Civil:

“Eu me recuso a jurar lealdade ao Estado. Custa menos pra mim suportar a punição do que obedecer. Eu valeria menos se obedecesse.”

Na cadeia, Thoreau percebeu a total impotência do Estado contra ele:

“Então, é só isso que podem fazer contra mim por quebrar suas leis? Eles me trancam aqui dentro mas meu pensamento, que é o verdadeiro perigo, continua livre. Como estou fora do seu alcance, decidiram punir meu corpo, como se fossem meninos que não podendo atacar um desafeto chutam seu cachorro.”

Ou como escreveu Nelson Mandela em uma carta da prisão, publicada em Conversas que tive comigo:

“São apenas minha carne e meu sangue que estão trancados nessas paredes apertadas. Permaneço cosmopolita na esperança. Em meus pensamentos, sou tão livre quanto um falcão. A âncora dos meus sonhos é a sabedoria coletiva da humanidade.”

* * *

A impotência do capitalismo

Os outdoors com fotos cada vez mais apetitosas de produtos cada vez mais distantes de serem comida são um bom sinal: querem dizer que as empresas de fast-“food” (sic) ainda precisam de nossa cumplicidade na ingestão do seu lixo. Mesmo diante de todo o gigantesco poder econômico da empresa escocesa, é de fato incrivelmente fácil não-comprar dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial. O ônus da ação é completamente deles: tudo o que preciso fazer é nunca entrar na casa do palhaço e pedir a carne prensada no pão. Eles só lucram se formos todas cúmplices dos nossos próprios ataques cardíacos.

Não basta que todos os meios de comunicação afirmem que “homem tem que ser macho” ou que “mulher tem que ser recatada”: é preciso também que todas as pessoas vigiem infindavelmente a masculinidade de uns e a sexualidade de outras. Para exercer sua opressão, a Autoridade precisa converter as pessoas oprimidas em pessoas opressoras, ao mesmo tempo vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando, sendo julgadas e condenadas.

Felizmente, a Autoridade não pode obrigar ninguém a se prestar a esse papel. Ela sempre precisa que sejamos suas cúmplices. Como na frase atribuída a Paulo Freire, tão linda que virou merecidamente um clichê, quando a educação não é libertadora, o sonho da pessoa oprimida é tornar-se uma opressora.* Mas nós podemos dizer “não”.

[*Paulo Freire, que se saiba, nunca falou isso. Não encontrei essa citação em nenhum de seus livros. A primeira vez que aparece é num livro de citações de 2009, atribuída a ele. Mas a frase se popularizou, e nunca foi corrigida, porque, apesar de apócrifa, resume perfeitamente o espírito da Pedagogia do Oprimido, certamente um dos livros mais lindos que já li na vida.]

* * *

A impotência da Autoridade

A Autoridade pode nos obrigar a muito pouco.

O pai pode deserdar o filho que escolheu ser ator de teatro infantil, mas é completamente incapaz de fisicamente impedi-lo de subir no palco ou obrigá-lo a frequentar as aulas de Penal I. A chefa pode demitir a funcionária recalcitrante, mas não pode fisicamente obrigá-la a assinar um relatório mentiroso ou a vender um produto defeituoso. A mãe pode expulsar de casa a filha lésbica, mas não pode fisicamente obrigá-la a se casar com um homem ou a sentir tesão por machos.

Talvez mais importante, nenhuma autoridade é onipotente: elas também pagam um preço por usar seu poder. O pai que deserda o filho, a mãe que expulsa a filha, a chefa que demite a funcionária, vão todas sofrer pelas escolhas que escolheram tomar. Com certeza, teriam preferido (a Autoridade sempre prefere) que a vítima tivesse “ido por bem”, que não tivesse sido necessária a traumática aplicação do castigo. Afinal, como não amar o capacho que lambe a bota que lhe pisa?

Nos casos extremos, os castigos são piores, mas a impotência é a mesma. Um Estado pode proibir a homossexualidade e mandar matar pessoas homossexuais, mas não pode fisicamente obrigá-las a sentir um desejo sexual diferente do que sentem.

Essa é a impotência constitutiva da Autoridade: ela pode nos matar e nos estuprar e nos torturar, mas, apesar de tudo, não pode nos obrigar a ir contra nós mesmas, a abandonar nossos sonhos, a abdicar de nossos princípios. Ela pode até nos matar mas, se recusarmos abaixar a cabeça, é completamente incapaz de nos vencer. Sua impotência é só conseguir punir, e nada mais.

Nas minhas madrugadas mais difíceis, esse é sempre um grande consolo.

* * *

Uma ressalva socioeconômica: privilégio & desigualdade

Ao refletirmos sobre obediência, rebeldia e respeito, é sempre importante termos em mente que nem todas as pessoas têm os mesmos direitos de interpelar as autoridades constituídas. Quando a Autoridade não pode obrigar, ela demoniza (literalmente) quem desobedece. Escreveu Tulio Vianna, em Transparência pública, opacidade privada:

“Não há uma conduta que possa ser considerada crime ou mesmo imoral em qualquer cultura. Somente a desobediência à norma possui a universalidade necessária para tamanha popularização do mito. … Lúcifer não foi um homicida serial, um sádico torturador ou um maníaco sexual. Nenhuma destas condutas o teria tornado o símbolo da maldade. Lúcifer desobedeceu a uma norma; desafiou o poder hegemônico; recusou-se a obedecer àquele que tudo vê, tudo sabe, tudo pode. É isso que faz dele o símbolo da maldade. … A rebeldia se transforma em maldade. Paralelamente a esta transformação simbólica do arquétipo da resistência em símbolo da maldade, ocorre também a transformação do arquétipo do controle no símbolo da bondade. Deus é bom, por inventar as normas. A bondade é corolário do poder, do saber e do ver. O mito da queda de Lúcifer é a passagem simbólica que marca a invenção da ética nas sociedades ocidentais. O bem se confunde com o controle; o mal com a resistência. O mito de Lúcifer é também o mito da legitimação do poder.”

Naturalmente, se o rebelde é demonizado, ele também é desumanizado. E quem não é humano é bicho, é coisa. Pode ser morto. Ou como disse Hélio Luz, então chefe de polícia civil do Rio de Janeiro, no documentário Notícias de uma guerra particular (1999). (A íntegra da entrevista de Luz pro filme é imperdível.)

“A sociedade não quer uma polícia honesta, porque no dia em que a polícia for honesta, o filho do banqueiro e do juiz será preso da mesma maneira que o jovem favelado. A polícia é corrupta porque convém à sociedade. Deseja-se uma polícia honesta? Então, o que vale para a favela passa a valer para o Posto 9. Não pode cheirar em Ipanema. Vai ter pé na porta na Delfim Moreira. A sociedade vai conseguir segurar isso?”

Existe um truque simples para saber se você é uma pessoa privilegiada. Digamos que está em um bar e comece algum tipo de confusão, briga, violência. De repente, ao longe, uma sirene. A polícia está chegando!

Se você já sente alívio, pois a polícia vai chegar e tudo vai se resolver… Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas “cidadãs de primeira classe”, que a polícia foi criada para proteger e defender.

Se você já tira a identidade do bolso, coloca em cima da mesa, põe as duas mãos bem visíveis ao lado do documento e pensa que, se fizer silêncio e nenhum movimento brusco, pode ser que consiga voltar pra casa levando só uns safanões… Então é porque faz parte do grupo de pessoas consideradas “cidadãs de segunda classe”, que a polícia foi criada para reprimir e oprimir em nome da segurança e paz de espírito do grupo acima.

No Brasil, só a elite é inocente até prova em contrário.

Eu, incorporando o espírito de Thoreau, já peitei a truculência da PM do Rio de Janeiro algumas vezes. Mas, antes que eu queira me dar tapinhas nas costas pela minha “coragem”, eu repito para mim mesmo que sou branco, hetero, pósgraduado. Uma daquelas pessoas que parece ter pai juiz ou avô senador, cuja morte violenta O Globo estamparia na primeira página. Um jovem negro morador de favela que interpelasse a PM rigorosamente como eu fiz estaria arriscando a própria vida. Já eu arrisco apenas alguns tabefes ou, quem sabe, passar uma noite na cadeia em nome dos meus princípios. E ainda pensaria: “Olha!, que heróico, que nem Thoreau!” Aliás, Thoreau ficou rigorosamente uma única noite preso, até sua tia pagar os impostos que ele devia. Enquanto isso, na mesma época, o Estado norte-americano estava matando, torturando e escravizando pessoas por terem feito muito menos do que se recusar a pagar impostos. Todas pessoas que, ao contrário de Thoreau, não eram nem brancas, nem escritoras, nem formadas em Harvard.

Por isso, nossa luta é para viver em uma sociedade mais democrática e republicana, onde todas as pessoas sejam cidadãs plenas e tenham o mesmo direito de interpelar os poderes constituídos sem medo de serem torturadas, mortas, desaparecidas.

* * *

Espaço público vs espaço privado

Todo nosso processo de socialização tem como objetivo nos deixar mais dóceis, mais obedientes, mais domesticadas. E funciona: quando vemos uma guarita, nós paramos, abaixamos a cabeça, nos identificamos, esperamos permissão de passar. Mas essa guarita tem direito de estar ali? Essas pessoas têm direito de nos fazer perguntas e negar passagem?

Teoricamente, um condomínio pode escolher designar suas ruas internas de públicas ou privativas: no segundo caso, abre-se mão de uma série de serviços públicos (entrega de correios, coleta de lixo, transporte coletivo, iluminação pública, etc) em troca do direito de só permitir a entrada ou passagem de quem se quer. Caso decida que suas ruas internas são públicas, o condomínio pode desfrutar desses serviços também públicos mas, em contrapartida, não pode negar entrada ou passagem a ninguém. Afinal, a rua é pública. Entretanto, cada vez mais condomínios tentam malandramente conseguir o melhor dos dois mundos: apesar de suas ruas internas serem públicas, ainda assim colocam uma cancela e seguranças armados na porta. Ou seja, o condomínio não só bloqueia uma via pública como ainda obriga as pessoas a parar e se identificar para poder exercer seus direitos de cidadãs de transitar por uma via pública.

Em 2007, meu pai morava no Condomínio Península, na Barra da Tijuca, onde foi tirada essa foto: em primeiro plano, a placa que avisa “Logradouro público. Livre acesso e utilização por todos os cidadãos”. Logo atrás, duas cancelas, bem guardadas e fortificadas. Eu morava a cinco minutos dali mas a dois universos de distância, na Estrada do Gabinal, logo depois da entrada para a Cidade de Deus.

No dia 19 de junho de 2006, moradores revoltados da Cidade de Deus bloquearam a Estrada do Gabinal, colocando fogo em pneus, madeiras e até mesmo em um ônibus para protestar mais um inocente morto sumariamente pela polícia, em uma operação que também deixou baleada uma criança de oito anos. Foram violentamente reprimidos (felizmente, sem perda de vidas) e logo aprenderam a lição: os ricos da Barra podem bloquear uma via pública na maior cara-de-pau; eles, não.

* * *

Instinto de Obediência

Como socorrista, nossa primeira tarefa é não deixar as pessoas bem-intencionadas terminarem de matar a vítima. Em uma ocasião, se chego dez segundos atrasado, dois bons samaritanos teriam levantado um menino do asfalto e acabado de quebrar sua coluna. Para manter as pessoas ocupadas e se sentindo úteis, eu passo a me comportar como um general no campo de batalha, tomo o controle da tropa e começo a delegar tarefas aos subordinados: você, de vermelho, liga pra polícia, 190; você, de verde, liga pros bombeiros, 193; você, de rabo de cavalo, consola a motorista e diz que não foi culpa dela; você, com a pasta, pega o triângulo no meu porta-malas pra desviar o trânsito, etc.

O pior lugar para se ter um ataque cardíaco fulminante é no meio de uma multidão. A responsabilidade se dilui e as pessoas nem se sentem culpadas por não lhe ajudar: pensam que as outras também poderiam ter ajudado. Aliás, se ninguém ajudou, vai ver nem era tão sério assim. Melhor continuar andando, não se meter. E, à noite, todas aquelas santas pessoas que passaram por cima de você enquanto estrebuchava até a morte vão botar a cabeça no travesseiro e dormir o sono das justas. (Esse mesmo processo mental nos permite conviver confortavelmente em meio a tanta miséria: afinal, eu não dei esmola ao mendigo mas qualquer um também poderia ter dado!) Se pudéssemos escolher, seria melhor ter nosso ataque cardíaco diante de uma única pessoa. Ela vai ter sobre si todo o peso da responsabilidade. Sabe que, se não lhe ajudar, você vai fatalmente morrer. Não há mais ninguém para repartir esse fardo.

Uma das maneiras de quebrar a chamada “difusão de responsabilidade” é delegando tarefas. Ao invés de gritar um socorro genérico, experimente dizer: “Você aí, de bigode loiro, vem aqui me ajudar agora!” Para o homem do bigode loiro, já não existe mais o conforto da diluição de responsabilidade. Ele foi especificamente convocado. Se não atender, aquilo pesará em sua consciência pra sempre. Se ele não ajudar, há uma boa chance de alguém na multidão, revoltada com a covardia do homem do bigode loiro, que absurdo!, fazer algo para corrigir esse abandono.

Nesse momento, uma leitora de bom coração e fé na humanidade poderia refutar:

− As pessoas obedecem porque querem ajudar.

Sim e não. Nós obedecemos porque fomos treinadas desde cedo pra obedecer. Nesse exemplo, salvar uma vida é só a feliz consequência. Todo nosso sistema escolar, toda a educação que recebemos dos pais, tudo o que todas as autoridades nos dizem, é um longo processo de quebrar nosso espírito para nos tornar mais obedientes e mais dóceis. A mensagem “obedeça as autoridades” é infinitas vezes mais enfatizada do que “ajude as outras pessoas”. Não é de espantar, então, que para a maioria de nós, obedecer é um ato muito mais automatizado do que ajudar. Obedecer, afinal, significa evitar o conflito, agradar, pertencer. Quer coisa melhor que isso?

Quando controlo a cena de um acidente, meu único receio é que minha interpretação de “pessoa que sabe o que está fazendo” seja tão boa que desestimule alguém que realmente saberia o que fazer de se apresentar. Por isso, sempre pergunto se há algum médico ou enfermeiro presente. Talvez seja esse o segredo da obediência. As pessoas, nós todas, nunca sabemos nada de nada, mas temos uma fé profunda e inabalável que alguém, em algum lugar, sabe. A chave pra controlar qualquer multidão, seja para salvar um atropelado ou invadir a Polônia, é convencê-los de que você é esse alguém.

* * *

Contra as soluções fáceis

Acontece sempre. Seja na sala de aula, ensinando racismo e desigualdade, seja nos textos sobre outrofobia e privilégio. Depois de uma longa exposição de um problema complexo, alguém pergunta:

− Ok. Entendi. Mas e agora? O que fazemos? Qual é a solução?

Muitas pessoas sentem a mesma ansiedade. É compreensível. Em um primeiro momento, parecem pessoas práticas e de bom-senso, de saco cheio de tanta punhetação intelectual acadêmica, e que querem simplesmente sair na rua e resolver o problema, oras. Vivas pra elas! Mas, se você pára e pensa, pode concluir que o que falta a essas pessoas é justamente parar e pensar. Um comentário que parece positivo (apesar de inócuo) acaba se revelando perigoso, ao sugerir incapacidade ou indisposição para discussão, reflexão ou diálogo, ou seja, para buscar suas próprias conclusões, ou ansiedade por respostas prontas e simples, e por ações concretas e fáceis de realizar.

Vai chegando o final da aula, e estão todas ali me olhando ansiosos, de lápis em punho, esperando pela resposta certa, querendo saber “afinal o que devem fazer!”, e a impressão que tenho é que aceitariam qualquer besteira que eu falasse, desde que coubesse em uma frase e fosse fácil de decorar. As maiores tragédias da história foram perpetradas por pessoas angustiadas para resolver um problema (real ou imaginário) marchando atrás de quem ofereceu uma solução simples e direta.

Quando respondo que não existe solução, que não sei a resposta certa e que não vou lhes dizer o que fazer, outro alguém sempre retruca:

− Então, de que adiantou? Pra que ficamos duas horas aqui perdendo nosso tempo? Isso [querendo dizer essa aula, minha matéria, a disciplina, a própria universidade, a vida, sei lá] não serve pra nada!”

E respondo:

− Mas se eu lhes dissesse o que fazer, então serviria pra alguma coisa? Pior do que não servir pra nada, não seria extremamente perigoso? É pra isso que vocês vêm à universidade? Para que uma pessoa qualquer, só porque tem um doutorado e passou num concurso, lhes diga o que fazer? Não querem chegar às suas próprias conclusões?

(Parece piada, mas depois desse longo discurso sempre tem alguém de cara sonolenta − vocês vão achar que estou zoando − que levanta o braço lá detrás e pergunta, de verdade, na lata: “Tá, professor, mas afinal, o que é que é pra colocar no teste?”)

* * *

O prêmio por obedecer é ser a mais obediente

Pior, mesmo se fizermos tudo direitinho e se nunca desobedecermos nenhuma ordem, ainda assim nosso prêmio será apenas a satisfação de sermos “a melhor escrava”. Em 2010, Erica Goldson, a primeira aluna de sua turma no ensino médio, fez um discurso de formatura que rodou o mundo. Aqui vai um trecho:

“Estou agora cumprindo esse objetivo [de me formar]. Deveria ver isso como uma experiência positiva, especialmente tendo sido a melhor da turma. No entanto, em retrospecto, não posso dizer que sou mais inteligente que os meus companheiros. Posso atestar que sou apenas a melhor a fazer aquilo que me dizem e a trabalhar dentro dos limites do sistema. Mesmo assim, aqui estou, e deveria estar orgulhosa por ter completado este período de doutrinação. Vou agora para a próxima fase que é esperada de mim, de modo a receber um documento que me certifica como apta para trabalhar. Eu contesto, entretanto, que sou um ser humano, uma pensadora, uma aventureira – não uma trabalhadora. Um trabalhador é alguém que está preso numa repetição – um escravo do sistema que foi posto perante ele. Mas a verdade é que demonstrei com sucesso que eu fui a melhor escrava. Fiz o que me disseram até o extremo. Enquanto outros desenhavam durante as aulas, para mais tarde se tornarem grandes artistas, eu anotava tudo, para me tornar a melhor “fazedora de provas”. Enquanto outros vinham para as aulas sem os trabalhos de casa feitos porque tinham passado a noite lendo algo do seu interesse, eu nunca deixei de entregar um trabalho. Enquanto outros estavam criando músicas e compondo letras, eu estava trabalhando em tarefas escolares adicionais para aumentar ainda mais minha nota, mesmo nunca precisando disso. Daí, eu me pergunto: por que quis tanto ser a melhor aluna? Sim, eu mereci essa posição. Mas e daí? Quando eu sair do sistema institucional educativo, serei uma pessoa de sucesso ou perdida para sempre? Não tenho ideia do que quero fazer com a minha vida. Não tenho interesses porque sempre vi todo objeto de estudo como um trabalho a ser cumprido. Fui a melhor em todas as matérias só pelo propósito de ser a melhor, não para aprender. E agora, sinceramente, estou assustada.”

[*O texto completo, em português, está em<sinais-dostempos.blogspot.com/2010/08/melhor-aluno-critica-sistema-escolar-em.html>]

* * *

O sucesso é uma decisão

Muitas pessoas buscam fugir da mediocridade e ambicionam o sucesso. Mas… fugir de qual mediocridade? Ambicionar qual sucesso? Quando nossa definição de mediocridade é externa, quando nossos critérios de sucesso não foram escolhidos por nós, então até mesmo ser bem-sucedida pode ser uma prisão. Talvez as pessoas mais bem-sucedidas sejam justamente as mais medíocres. Talvez a resposta seja transcender essa dicotomia cartesiana entre sucesso e mediocridade.

Quem decide os critérios para eu me considerar bem-sucedido sou eu.

* * *

A raiva do Betão

Era uma vez, digamos, o Betão. Betão queria fazer X da sua vida. (Substitua X pelo sonho da sua infância.) Mas o pai, a mãe, a sociedade, a mídia, as professoras, o Zé do 502, etc, disseram que Betão iria se dar muito mal se fizesse isso. Não ganharia dinheiro, jamais teria segurança, as mulheres não olhariam pra ele, viraria um pária social, o horror, o horror. Aí, moço de bom-senso que sempre foi, Betão sacrificou seu sonho, recalcou suas vontades e viveu exatamente a vida que aconselharam ele a viver.

Um dia, apareceu o Claudio Gustavo. Claudio Gustavo vivia exatamente a vida que o Betão sempre quis viver e, pasmem, Claudio Gustavo não se fodeu, se sustentava, tinha uma vida sexual e amorosa, etc — nenhum daqueles medos se realizou.

Hoje em dia, quando o Betão toma chope com outros homens que também viveram as vidas que lhes mandaram viver, a repulsa geral ao Claudio Gustavo é tão autoevidente que não precisa nem mesmo ser articulada ou justificada. Como não odiar esse grandessíssimo babaca?

* * *

Quem é o dono do dom?

Quando tinha doze anos, tomei a primeira decisão estratégica da minha vida.

Desde pequeno, eu gostava de contar histórias. Antes mesmo de saber escrever, eu mandava minha mãe desenhar os personagens e ditava o que um estava dizendo para o outro. Na sexta série, eu escrevia e desenhava gibis, xerocava, coloria as capas uma a uma e vendia assinaturas entre colegas. Cheguei a ter 16 assinantes. Ninguém tinha mais orgulho desse meu “dom do desenho” do que minha mãe, artista formada em Belas Artes.

Para ajudar a refinar o meu “dom”, ela me enviou para passar uma temporada em Nova Iorque com um amigo da família. Na época, o querido Goot, pseudônimo de Gutemberg Monteiro (1916-2012), recentemente falecido aos quase cem anos, desenhava a tirinha do Tom & Jerry. Durante um mês, vivi como novaiorquino, pegando trens e metrôs, indo ao sindicato entregar as tiras, comendo bagel com suco de grapefruit, conhecendo os maiores cartunistas dos anos oitenta, aprendendo todos os truques do nanquim.

Quando voltei ao Brasil, larguei o desenho.

Não foi uma decisão intempestiva ou rebelde. Percebi que gostava de contar histórias, não de desenhá-las. Eu só desenhava porque, para um menino de doze anos, era o único jeito de passar minhas histórias. Mas todo o tempo que gastasse no lado mais técnico e braçal da ilustração seria menos tempo para criar meus personagens, burilar meus enredos, transmitir minhas mensagens.

A decisão não foi bem recebida. Para minha mãe, era um desperdício e um pecado:

− Você tem um dom, meu filho, e não pode desperdiçá-lo!

Mas se não tenho a liberdade de desperdiçar meu “dom”, então não sou eu que tenho o “dom”: ele é que me tem, escravizado, em seu poder, condenado a ganhar a vida como desenhista só porque, ó que sina, eu tinha um “dom”.

* * *

História de uma dominatrix

Eu não era o único desperdiçando minha vida: tinha também a Andréa.

Estudamos na mesma escola de elite e fomos colegas de grêmio e de jornal. Com suas atividades extracurriculares e excelentes notas, Andréa ganhou uma bolsa de estudos para Princeton, uma das melhores universidades do mundo, onde estudou psicologia. Durante a graduação, conheceu o mundo do sadomasoquismo e se descobriu dominadora. Em pouco tempo, já estava namorando uma garota submissa e andavam juntas pela universidade, vestidas a caráter e apelidadas de “whips & chains” (chicotes e correntes). Com orçamento apertado, começou a fazer uma dominaçãozinha por fora e percebeu que gostava dessa vida. Além de satisfazer seu lado dominador, também utilizava conhecimentos de psicologia. (Não é à toa que um encontro com uma dominadora tem o mesmo nome que um encontro com uma psicóloga: sessão. O trabalho de Andréa também era cuidar da saúde mental de seus pacientes e ajudá-los a conviver melhor com seus próprios desejos.) Depois de formada, casou com um australiano e foi pra terra dele. Durante três anos, viveram um casamento aberto e se separaram bons amigos. Em 2002, foi selecionada para participar da primeira edição do Big Brother australiano. Imaginem o escândalo: uma estrangeira, alta, ruiva, exótica e dominatrix. Lá dentro, Andréa comportou-se de forma tão sexualmente desinibida quanto cá fora. Resultado: tornou-se a primeira eliminada. Passou todo o ano seguinte viajando pela Austrália, vivendo do seu status de celebridade instantânea, abrindo eventos, sendo jurada de concursos, essas coisas.*

Nessa mesma época, depois de implodir minha empresa no último dia de 2001, passei o ano seguinte à deriva. Um ano de repensar, reelaborar, replanejar, redefinir. De mergulhar fundo nas minhas próprias contradições, limitações, desejos. Então, reencontrei a Andréa através de uma reportagem do Fantástico, sobre uma tal dominatrix brasileira no Big Brother Austrália. Na vida, não enxergamos o que queremos: enxergamos o que podemos, a partir do momento em que estamos preparadas para enxergar. Talvez, se eu não estivesse passando por esse processo, teria enxergado na Andréa somente uma curiosidade: “olha só, é a minha ex-coleguinha de escola! que exótico!”

Mas, em 2003, quando ela veio ao Rio por algumas semanas, aproveitei para procurá-la e passamos uma noite na Lapa, conversando, perambulando. Andréa ainda era a mesma pessoa inteligente e articulada que publicara no jornal da escola uma bombástica reportagem-investigativa sobre os malefícios de dar água com açúcar aos beija-flores (não façam isso em casa, crianças!) mas também havia se metamorfoseado em uma mulher empoderada, autoconfiante, independente. Recém-separada, estava nômade, pulando de continente em continente, se divertindo, chicoteando seus submissos, recebendo tributos, praticando liberdade. O único modo de saber onde estava era acompanhando seu site.

Já naquela época, uma parte do Livro das Prisões estava parcialmente escrita, mas eu ainda não tinha mostrado para ninguém. Minha querida amiga Isabel, capista de todos os meus livros e hoje professora de Estudos Multimídia na Suécia, já vinha insistindo há meses para eu criar um “blog” – sabe Deus o que era isso. Mas, se Isabel sugeriu a nova plataforma, o encontro com a Andrea sugeriu o tema. Poucos dias depois de nosso passeio pela Lapa, em março de 2003, finalmente tomei coragem, criei o meu primeiro blog, coloquei no ar as prisões e dei o primeiro passo em direção a escrever esse texto aqui que você está lendo. O encontro com Andréa foi talvez o último estímulo que faltava para eu finalmente… mudar.

Imagino que muitas de nossas antigas colegas mais certinhas consideravam a Andréa completamente louca. Mas, se ela era louca, então eu seria também. Decidi que seria uma pessoa adulta, livre, independente, capaz de me assumir sem medo. Estava na hora de eu também colocar minha cara a tapa pelas minhas ideias.

[*Para ler a própria Andréa contando sua história, leiam a bio de seu site: <kalyssmercury.com/about-mistress> Vejam também esse vídeo dela discursando na Slut Walk de Brisbane, em 2012: <youtube.com/watch?v=WxSuRv6IFsQ>]

 * * *

Escolher a mediocridade

Aos olhos do mundo, entretanto, o que eu e a Andréa mais temos em comum é nossa mediocridade: estamos ambos vivendo abaixo de nosso (pretenso) brilhantismo, desperdiçando nosso (suposto) potencial, jogando nossas ó-tão-incríveis vidas fora.

Uma menina brilhante. Formada por Princeton. Nota máxima em todas as matérias. Como pode se contentar em ganhar a vida chicoteando os outros? É isso que você quer fazer, Andréa? É assim que você se vê daqui a dez anos? Será que foi pra isso que você teve uma educação de nível internacional? Não tem vergonha de desperdiçar as oportunidades que deus lhe deu?

Afinal, a maioria dos nossos colegas de escola já está ocupando os lugares de destaque que a sociedade fatalmente destina aos homens brancos de classe média-alta oriundos as melhores escolas: donos de empresas, diretores de multinacionais e capitães de indústria, cheios de filhos criados por babás uniformizadas, fazendo leasing de carros e financiando apartamentos, investindo em portfólios diversificados de ações e contribuindo para sólidos planos de aposentadoria.

Enquanto isso, recém-falido na malfadada tentativa de viver a vida empreendedora que me tinha sido traçada, eu estava sobrevivendo de dar aulinhas de inglês em um curso de subúrbio, em Jacarepaguá. O trabalho não pagava quase nada, mas ficava no mesmo quarteirão do meu apartamento, não me estressava, não ocupava a minha cabeça. Os três anos nos quais trabalhei nesse curso foram os anos em que mais pensei, flanei, escrevi, transei, passeei. Nunca fui tão feliz, tão tranquilo, tão produtivo, tão contemplativo. Foi nessa época que me reinventei no homem que sou hoje.*

Estranhamente, nada disso parecia ser suficiente para as pessoas que me amavam. Amigas e parentes faziam questão de dizer quase todo dia que eu não tinha direito de desperdiçar assim meus talentos (sic), logo eu, uma pessoa tão brilhante (sic!), que poderia estar fazendo qualquer coisa (sic sic!!), em qualquer lugar do mundo!! (SIC SIC SIC!!)

Só que não era verdade: claramente eu não podia dar aulas de inglês num cursinho de subúrbio. Eu podia fazer qualquer coisa… que se enquadrasse na noção preconcebida que tinham de mim. Eu era livre…. para preencher suas expectativas, não para viver minha vida nos meus próprios termos.

Muitos dos elogios mais efusivos que recebemos são tentativas de nos controlar e nos manipular. Hoje, fujo ativamente de pessoas que me elogiam. Busco sempre ser a pessoa menos interessante de qualquer recinto: quando sou a pessoa mais interessante da sala, eu troco de sala. Escolhi não ser mais refém de aspirações e expectativas alheias em relação à minha pretensa ó-genialidade.

Minha vida aparentemente causava uma grande tensão entre amigas e parentes, um desconforto que sentiam necessidade de verbalizar de forma frequente, espontânea e nunca, nunca requisitada. Por que se achavam no direito de ter opinião sobre minhas escolhas? Por que verbalizavam essas opiniões de maneira tão invasiva? Por que minhas escolhas as incomodavam tanto?** Diziam que eu estava desperdiçando a caríssima educação que recebi. Que tinha feito uma opção pela mediocridade.

Mas, de que vale tanta educação se, em vez de me dar asas, ela me serve de âncora? Se em vez de ampliar, ela limita minhas escolhas?

[*Nesse cursinho, fiz algumas das minhas melhores amigas até hoje, conheci um grande amor que alimentou minha vida e a dona do curso ainda é, até hoje, uma das minhas mecenas mais generosas. Não tenho realmente palavras para enfatizar a importância desses anos na minha vida. Das minhas aventuras nos mundos da consultoria e do empreendedorismo, não sobrou ninguém.]

[**Esse é o tema da décima prática, “Exercer a não-opinião” do meu livro Atenção.]

* * *

Quem define nossa vida somos nós

Um belo dia, casei. Alguns anos depois, ao descobrir que era um casamento não-monogâmico e fetichista, uma amiga comentou:

− Aaah, entendi. Você sempre tinha sido contra o casamento e, quando casou, achei que tinha mudado de ideia. Agora entendi: o que você mudou foi a sua definição de casamento!

− Exatamente. Só quem tem direito de definir o que é o nosso casamento somos eu e minha esposa.

Outro dia, em uma mesa de bar, amigos homens estavam listando todas as coisas que tinham feito para agradar seus pais, cursar direito ou frequentar igrejas, até se darem conta de aquele não era o seu caminho. E apontaram para mim:

− Só o Alex nunca endeusou o pai.

Mas não sou um superhomem precocemente bem-resolvido: eu só tive sorte. Na juventude, meu pai foi tenista federado. Depois, fez faculdade de economia e trabalhou no mercado financeiro. Desde pequeno, ele me levava para acompanhar campeonatos de tênis e para conhecer sua mesa de open market. E eu só queria saber de acompanhar peças de teatro e conhecer clássicos da literatura. Minha irmã caçula, bendita seja ela, louvada entre as mulheres, logo assumiu o manto de filho varão (se federou tenista e se formou economista, herdando assim não só os contatos esportivos e profissionais, mas principalmente o ethos de vida do meu pai) e me deixou assim livre para definir o meu sucesso pessoal de maneiras diferentes.

Se meus critérios de sucesso na vida fossem troféus de tênis e portfólio de ações, eu viveria eternamente preso às ambições e expectativas de meu pai. Cabia a mim, e a mais ninguém, criar os meus próprios critérios de sucesso.

* * *

Quem são meus ícones?

Há muitos anos, eu odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas. Mas pensava:

− O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, também consigo.

E lá ia eu me torturar mais um pouco. Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença. Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:

 − Se elas conseguem, eu também consigo!

* * *

“Vou mudar de vida… mas não hoje!”

Se o meu filme ou livro preferido é sobre largar tudo e ir morar no mato, mas nunca larguei tudo e fui morar no mato… o que isso diz sobre mim?

Um gênero narrativo que deveria ter nome mas não tem: “Obras protagonizadas por personagens pretensamente rebeldes e subversivas, feitas sob medida para se tornarem as obras favoritas de pessoas reprimidas e cooptadas que dizem amar a obra acima de tudo, mas nunca mexem a bunda da cadeira para fazer nada parecido com as personagens rebeldes e subversivas que tanto dizem admirar.”

Se eu consumo uma obra sobre enfiar o dedo na tomada e levar choque, e digo adorar tudo, é minha obra preferida!!, mas depois disso nunca mais na vida eu enfio o dedo na tomada (pois já sei que vou fatalmente levar um choque!), então essa é uma obra profundamente conformista e conservadora. Se ela é vendida e recebida, percebida e celebrada, como uma obra “rebelde” e “original”, “corajosa” e “libertadora”, etc e etc, então além de conformista e conservadora, ela é perigosa e traiçoeira.

O objetivo final de qualquer jornada significativa, seja ela artística ou espiritual, é sempre virar nossa vida de cabeça pra baixo. Se fiz uma viagem espiritual ao Tibete, trouxe de volta uma estátua de Buda pra minha sala (que daria pra alimentar uma família por meses), e depois minha vida continuou igual… sinto muito, mas não funcionou.

Antigamente, quando alguém me dizia “o livro tal mudou a minha vida!!”, eu, que adoro histórias de mudança de vida, perguntava, empolgado:

− Mudou? Puxa, que legal. Exatamente o quê você mudou?  Como você está vivendo de forma diferente?

Para minha surpresa, as pessoas reagiam com horror ao meu questionamento. Não tinham resposta. Ficavam constrangidas. Algumas se sentiam atacadas. Claramente, eu estava quebrando um script muito bem ensaiadinho. Hoje em dia, para não causar constrangimento, não faço mais essa pergunta. Já sei a resposta.

“Mudar a vida” tornou-se um produto como outro qualquer, para aquecer a economia e impressionar as amigas, afagar o Eu e manter tudo como está,

O fato é que sair da casa dos pais, abdicar do circo de consumo, não sacrificar a vida em holocausto ao mercado de trabalho, parar de comer cadáveres, ser menos egocêntrico, praticar a generosidade e a empatia, etc etc, são todas atitudes que demandam tempo, trabalho, esforço, determinação. Mas nós não queremos mudar nossas vidas. Nosso narcissismo (e somos todas narcissistas) é refratário a qualquer mudança. Mudar dá trabalho. O que a gente quer é comprar uma identidade através do nosso consumo. Queremos continuar morando em Pinheiros na casa de mamã (que traz café da manhã pra gente na cama), continuar indo sozinho num jipão utilitário até a agência em Moema (os ônibus são péssimos nessa cidade), continuar convencendo os outros a consumir mais em troca de quinze pau por mês (na agência tem até pebolim!), e então, à noite, na TV tela plana de mil polegadas, ver e rever meu filme favorito, sobre o moço que largou tudo e foi morar no meio do mato: “Ah, um dia… Um dia, eu vou, hein!”

Escrevo não para convencer ninguém, mas para mostrar às pessoas que pensam como eu que não estão sozinhas. Que é possível ser livre. Mas ser livre não é fácil. Fácil é assistir filmes sobre pessoas livres.

* * *

Por que precisamos destruir nossos ídolos?

Um dos clichês mais batidos e mais populares das artes narrativas: pessoa excepcional obtém sucesso fora de escala em sua área de atuação e se autodestrói de forma retumbante. Como uma criança pedindo à mãe para contar e recontar a mesma história, parecemos ter um apetite insaciável por essa narrativa. Mas por que gostamos tanto de ver nossos ídolos se fodendo?

Por um lado, enfrentamos uma pressão social enorme para nos enquadrar: manter uma só cônjuge e sempre do sexo oposto, criar a prole, fazer o dever de casa, respeitar pai e mãe, amar a deus acima de todas as coisas, pagar impostos, etc etc. Em suma: ser boas pessoas cidadãs. Mas ninguém fica famosa por ser uma filha obediente, ninguém enriquece por respeitar a mãe, ninguém ganha medalha por ser boa esposa. As recompensas são difusas e, às vezes, quase invisíveis.

Por outro lado, paradoxalmente, a sociedade parece premiar com fama e sucesso os bad boys e bad girls que quebram todas essas regras. Comportamentos que transformariam qualquer um em pária social fazem sensação no Big Brother, geram convites para o camarote da Brahma e Ilha de Caras. As mesmas pessoas que assistem empolgadas House não tolerariam uma colega de trabalho que fizesse um décimo do que ele faz. Artistas, atletas e celebridades de modo geral parecem desfrutar de uma liberdade muito maior do que a média da população. Por quê? Porque sempre vem a conta.

Diz o dogma cristão que Jesus morreu por nossos pecados. De fato, nunca mais perdemos esse hábito de viver indiretamente através das outras pessoas. Condenamos nossos ídolos a morrer por nós, pois só assim podemos suportar nossas vidas de não-ídolos.

Se passamos a vida inteira nos sacrificando para seguir as regras e, enquanto isso, outra pessoa quebra todas essas regras, e ainda por cima se dá bem, ganha mais dinheiro, parece viver de orgia em orgia, é como se toda a nossa vida tivesse sido uma mentira. Como se tivéssemos recalcado nossos desejos, mutilado nossa liberdade, reprimido nossa sexualidade, por nada. Otárias.

Então, quando o ídolo voa tão alto que derrete as asas e se espatifa no solo, nós todas, a sociedade inteira, soltamos um suspiro de alívio coletivo. Agora, podemos dormir tranquilas: nossa decisão de desfazer a banda e cursar ciências atuariais foi mesmo a mais acertada.

A queda do ídolo redime todos os nossos desejos recalcados. A narrativa arquetípica da queda do herói cumpre uma importantíssima função social. O cidadão contribuinte, hetero, monogâmico, careta, bom pai, etc, etc, pode sair do cinema aliviado, e ainda se auto congratular:

− Bem, eu não danço como o Michael Jackson, não componho como o Raul Seixas, não canto como a Elis Regina, mas, porra, pelo menos eu consigo segurar minha onda, né?

E, assim, uma vida que talvez fosse chata e sem sentido, torna-se tolerável. Quem sabe até feliz.

* * *

Somos tudo o que poderíamos ter sido

Depois de um concerto, a fã aborda a pianista e diz:

− Eu daria minha vida para tocar tão bem assim.

E ela responde, simplesmente:

− Eu dei.*

Somos todas, ao mesmo tempo, tanto a dentista entediada quanto também a artista plástica que poderíamos ter sido; ou a artista plástica pobretona e também a dentista que poderíamos ter sido. Conheço muitas dentistas (e contadoras e bancárias e etc) que adoram fantasiar sobre a vida livre e interessante que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça nas artes plásticas (ou na poesia ou no teatro ou etc). Conheço muitas artistas plásticas (e atrizes e poetisas e etc) que também adoram fantasiar sobre a vida segura e confortável que estariam levando se tivessem mergulhado de cabeça na odontologia (ou na contabilidade ou nas ciências atuariais ou etc). De fato, algumas dentistas teriam sido excelentes poetisas. De fato, alguns poetisas talvez devessem ter se dedicado à odontologia. Mas quais?

Todo dia, comparo minha vida incerta à das amigas que desfizeram a banda da pós-adolescência e se dedicaram à estatística, e penso: de fato, eu não trocaria minha vida pela delas. Entretanto, antes de cair naquela tentação tão vaidosa de me gabar de minha ó-tão-interessante “vida de artista”, faço questão de me lembrar do seguinte: Se eu não trocaria a minha vida pela delas… elas também não trocariam suas vidas pela minha. Cada escolha de vida tem delícias e custos que só conhece quem as escolheu.

Escrevi, escrevi, escrevi. Todo dia. Às vezes, o dia todo. Não peguei empregos rentáveis, não aceitei mais um frila, não fiz aquela viagem – porque não me sobraria tempo pra escrever. Preferi sempre ajustar meu nível de consumo pra baixo, gastar menos, para poder trabalhar menos, viver com menos – e escrever mais. Escrevo profissionalmente há trinta e cinco anos. Se tiver outros trinta e cinco, não tenho dúvidas de que vou passá-los escrevendo. Sabe por quê? Porque essa vida é minha. Só tenho ela pra arriscar. Só tenho a mim mesmo para sacrificar. Se não jogar minha vida na roleta dos meus sonhos, quem vai fazer isso por mim?

[*Essa parábola não é de minha. Já ouvi tantas vezes, em tantas variações, que já se tornou patrimônio da humanidade.]

* * *

Não existe sucesso, não existe fracasso

Talvez estudar em uma escola de elite e depois dar aulinhas de inglês (ou chicotear pessoas) seja mesmo medíocre. Mas existem várias outras definições possíveis de mediocridade e de sucesso. Talvez mediocridade seja essa nossa busca eterna por uma felicidade inatingível.* Talvez mediocridade seja tentar preencher nossos vazios existenciais com consumo desenfreado. Talvez a maior de todas as mediocridades seja justamente esse raciocínio hierárquico e utilitarista que divide as pessoas em medíocres e bem-sucedidas, e, mais ainda, esse nosso pânico egocêntrico de sermos vistas como losers e não como winners. Afinal, ser bem-sucedida em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

[*Esse será o tema da Prisão Felicidade, não por acaso a penúltima, e clímax desse nosso trajeto pelas Prisões.]

* * *

É mais fácil pedir perdão do que permissão

Uma velha parábola. Da época em que fumar ainda era socialmente aceitável.

Sala de espera. O homem puxa um cigarro e, antes de acender, pergunta à recepcionista:

− Posso fumar aqui?

− Não, senhor.

Ele está guardando o maço quando percebe todas aquelas guimbas a sua volta, fumadas até o fim. E questiona:

− E essas guimbas? De quem são?

E a recepcionista, imperturbável:

− Ah, sim, são das pessoas que não perguntaram.

* * *

Não temos como calar o mundo

Por todos os lados, vejo pessoas mudando suas vidas, abdicando de seus sonhos, se virando ao avesso, só porque não aguentam mais os constantes comentários, críticas, questionamentos de parentes, colegas, amigas. Mas talvez exista uma maneira diferente de encarar a questão.

A Autoridade, e todos os seus representantes, sempre tentarão determinar nossa conduta, mandar em nossa vida, julgar nossas escolhas. Não há nada que possamos fazer para calar suas vozes. Assim como o lado bom da publicidade é que o capitalismo ainda não pode nos obrigar a consumir, esses comentários invasivos e violentos significam que estamos de fato vivendo a vida que gostaríamos de viver.

Quando o pai do ator de teatro infantil menciona, pela centésima vez, que o filho largou o curso de Direito (de Direito!!) para fazer teatro infantil (logo teatro infantil!), o ator pode escolher ouvir aquilo como uma crítica, como uma intrusão, como uma violência (e não estaria errado, claro), mas também pode escolher ouvir aquilo como uma confirmação, uma afirmação do fato de que ele fez suas próprias escolhas e que está vivendo sua vida nos seus próprios termos. Ele pode escolher ouvir isso e pensar, satisfeito e aliviado:

− Sim, estou ouvindo isso, mas hoje sou ator de teatro infantil como eu sempre quis. Pior seria que tivesse feito Direito, como papai mandou, e hoje estaria ouvindo igual, por alguma outra coisa qualquer, por trabalhar no escritório errado ou por ter perdido uma causa, mas nunca teria realizado meu sonho de ser ator de teatro infantil.

Como não existe a possibilidade de calarmos o mundo, nossa melhor hipótese possível é fazermos o que quisermos de nossas vidas e que o Mundo fale o que quiser.

* * *

Série “As Prisões”

Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:

  1. Verdade
  2. Religião
  3. Classe
  4. Patriotismo
  5. Respeito
  6. Trabalho

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 17h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

2 respostas em “Prisão Respeito”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *