Categorias
prisões

Prisão Liberdade

A busca por liberdade pode ser uma prisão. Talvez a verdadeira liberdade seja não uma liberdade para nossos desejos, mas uma liberdade dos nossos desejos. Ser o leme, não a vela.

Quem busca um curso chamado de As Prisões, quem tenta viver a não-monogamia na prática, entre muitos outros exemplos, tendem a ser pessoas com um interesse acima do normal em liberdade, ou, mais especificamente, em sua própria liberdade. Sentem-se tolhidas por amarras, cadeias, costumes — eu chamo de “Prisões” — e desejam ser mais livres.

Mas, paradoxalmente, a busca pela liberdade também pode ser uma prisão. A chave é lutarmos não pela liberdade de realizar nossos desejos, como uma vela que vai onde o vento sopra, mas sim pela liberdade de podermos escolher novos desejos, como o leme que determina o rumo a seguir. A verdadeira liberdade não é negativa, ou seja, estarmos livres de interferências externas, mas sim positiva: sermos livres para pautarmos nossos próprios atos.

(Essa é a versão final completa da Prisão Liberdade. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Liberdade é a nona, depois das Prisões VerdadeReligiãoClassePatriotismoRespeitoTrabalho, Autossuficiência e Monogamia. As inscrições para o curso estão abertas.)

* * *

Introdução

O começo necessário do nosso percurso pelas Prisões foram Verdade e Religião, onde questionamos nossa própria capacidade de enxergar e apreender a realidade. Não havia outro começo possível a não ser problematizar nosso próprio olhar, nossa própria mente. Depois, na parte central do percurso, falamos de Classe e Patriotismo, Respeito e Trabalho, Autossuficiência e Monogamia, cada uma explorando uma diferente faceta de nossas vidas contemporâneas. Agora, finalmente, estamos na reta final. Se não havia outro começo possível a não ser problematizar nosso próprio olhar, também não existe outro final possível que não problematizar nossas motivações e nossas ações.

As últimas Prisões são Liberdade, Felicidade e Empatia.

* * *

O que é liberdade

O primeiro obstáculo para uma conversa frutífera sobre liberdade é definir sobre qual liberdade estamos falando. Assim como o ciúme, sobre o qual falei na Prisão Monogamia, não existe uma única liberdade, mas várias. Então, vamos começar a Prisão Liberdade tentando definir o que é isso que nos aprisiona.

Quando falamos em liberdade, podemos estar falando de liberdade de pensamento (liberdade-de-dentro) ou liberdade de ação (liberdade-de-fora). A liberdade de pensamento é geralmente chamada de livre-arbítrio, é estudada por psicólogos e neurocientistas e dizem que temos cada vez menos do que pensávamos. A liberdade de ação é geralmente chamada de liberdade política, é aquela garantida por nossa constituição e estudada por cientistas sociais.

A liberdade-de-dentro é a liberdade de eu, livremente, dentro de minha própria cabeça, decidir o que quero fazer. A liberdade-de-fora é a liberdade de eu, livremente, no mundo externo, agir conforme minhas decisões.

Ambos os tipos de liberdade só têm como existir juntos. Não faz sentido falar de uma liberdade sem considerar a outra. Não adianta eu ter liberdade de ação de fazer algo que nunca me ocorreu em pensamento que posso fazer. Não adianta eu ter a liberdade-de-dentro de decidir agir de determinada maneira se não tenho a liberdade-de-fora para fazer isso, ou seja, se sou física ou politicamente impedido de implementar essa ação.

Ser livre é ser responsável. Ação livre é aquela pela qual eu posso ser responsabilizado. O que faz uma pessoa ser livre para se responsabilizar? Sua liberdade-de-dentro (ela era livre para decidir fazer) e a sua liberdade-de-fora (ela era livre para fazer).

Se digo que alguém é livre, isso quer dizer que essa pessoa é responsável por suas ações. Mas se ela não tem livre-arbítrio, ou seja, liberdade de pensamento, como pode ser responsabilizada? Ou, inversamente, se ela não tem liberdade de ação de protestar contra o governo, ela pode ser responsabilizada por não fazer aquilo que era proibida de fazer, mesmo se tiver o livre-arbítrio, ou seja, a liberdade-de-pensamento para conceber tomar essa ação?

Livre-arbítrio, ou liberdade-de-dentro, ou liberdade de pensamento, só faz sentido se eu dispuser da liberdade política, ou liberdade-de-fora, ou liberdade de ação, para agir no mundo. Inversamente, a liberdade de ação só faz qualquer sentido se eu tiver a liberdade de pensamento para decidir como e quando quero agir.

A história que nossa sociedade nos conta é que dispomos plenamente (ou quase) da liberdade-de-dentro. As poucas exceções (crianças pequenas, pessoas com deficiência mental, etc) são, por isso mesmo, inimputáveis, ou seja, não podem ser condenadas por crimes que cometam porque talvez não tivessem a liberdade de não os cometer. Nós, as demais pessoas, por outro lado, somos plenamente responsáveis por todas as nossas ações, tanto perante a lei dos homens quanto de Deus. (Só podemos ser condenados a uma eternidade de torturas no Inferno por pecados mortais como a masturbação porque Deus nos deu o pleno livre-arbítrio de não os cometer.) Como disse Nietzsche, o livro-arbítrio só foi inventado para que possamos ser punidos.*

[*“O livro-arbítrio só foi inventado para que possamos ser punidos, para que possamos nos sentir culpados”, diz Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (1888), na seção “Os quatro grandes erros”.]

Já a liberdade-de-fora é quase definida sempre em termos negativos: liberdade seria não ser tolhido em minha liberdade. Todas nós teríamos o potencial de ser plenamente livres se somente não fôssemos tolhidos por pai ou mãe, costumes ou leis da sociedade. Nosso mundo político atual foi fundado no século XVIII com base nessa aspiração de liberdade: se o Estado somente não tolher as pessoas em sua busca natural pela felicidade, se garantir sua liberdade de expressão, de religião, de associação, etc etc, então o mundo naturalmente vai se resolver. Idealmente, todas as pessoas deveriam desfrutar da máxima liberdade-de-fora possível, restringida apenas pelas liberdades das outras pessoas. Não é à toa que outro dos princípios fundacionais de nossas leis é que tudo que não é explicitamente proibido está implicitamente permitido.

No contexto da Prisão Liberdade, vou estar falando de ambos os tipos de liberdade. Quando quiser diferenciá-las, falarei de liberdade de pensamento, ou liberdade-de-dentro, e liberdade de ação, ou liberdade-de-fora.*

[*Sempre me pareceu instintivamente óbvio que ambos os tipos de liberdade só podiam ser pensados juntos e me impressionava muitíssimo só encontrá-los sendo pensados em separado. Quem me ajudou a desatar esse nó foi o filósofo e cientista político Philip Pettit, em A Theory of Freedom: From the Psychology to the Politics of Agency, publicado em 2001 e escrito exatamente para propor uma nova teoria da liberdade que contemplasse ambas as esferas. Esse texto não existiria sem os insights de Pettit.]

* * *

Somos mesmo tão livres assim?

Quando decido racionalmente ser não-monogâmico, mas não consigo, porque o simples pensamento da pessoa-que-está-comigo transando fora me enche de raiva, de ciúme, de medo, sentimentos avassaladores e incontroláveis que me oprimem e me impedem de viver o tipo de relacionamento que escolhi… posso me considerar realmente livre?

Quando decido racionalmente me alimentar de forma saudável, mas não consigo, porque sou bombardeado por todos os lados, na TV ou no cinema, no ônibus ou no metrô, por anúncios de carne prensada entre duas fatias de pão e, pior, ao passar pela lanchonete, ainda sou fisicamente atacado por aquele cheiro de carne grelhada e gordura quente, e, em todas as células do meu corpo, milhares de antepassados gritam “vai lá! por mim! eu teria matado por isso!”… posso me considerar realmente livre?

Se a Constituição Federal me garante liberdade de expressão, mas os meios de comunicação de massa do meu país de duzentos milhões de habitantes são controlados pelas mesmas seis famílias e, mais ainda, a escola pública onde estudei não me ensinou a escrever bem o suficiente para ser publicado neles, mesmo se houvesse essa oportunidade, que não existe… posso me considerar realmente livre?

Se a Constituição Federal me garante o direito de estudar em qualquer uma das muitas excelentes universidades federais, mas as escolas públicas onde estudei não me prepararam nem para passar no processo seletivo nem para acompanhar as aulas… posso me considerar realmente livre?

Se tenho o direito de ir e vir, e de consumir o que eu quiser, mas vivo com um salário mínimo que mal me permite sobreviver*… posso me considerar realmente livre?

[*… pois se fosse maior quebraria o país, dizem os economistas liberais. Desenvolvi o tema na Prisão Patriotismo.]

Se não posso servir em um submarino, por ser mulher, ou doar sangue, por ser homossexual… posso me considerar realmente livre?

* * *

A busca por liberdade pode ser uma prisão

Garantir mais liberdade-de-fora, ou seja, mais liberdade de ação, mais liberdade política, a todas as pessoas cidadãs, especialmente aos grupos subalternos e marginalizados, é uma das grandes lutas políticas de nosso tempo.* Mas quando a liberdade vira um objetivo por si só, um fetiche consumista e insaciável, ela pode se tornar uma Prisão.

[*Como vimos na Prisão Classe, uma das definições possíveis de privilégio é ter escolhas: quanto mais privilegiada a pessoa, mais escolhas ela tem, logo, mais livre ela é.]

Afinal, quanta liberdade é liberdade o suficiente?

Se a pergunta nos soa tão non-sense é justamente por ser a liberdade insaciável por definição. (A Felicidade é uma Prisão pelo mesmo motivo; será a próxima.)

Infelizmente, de nada adianta liberdade-de-fora, ou seja, a liberdade de agir, se não houver liberdade-de-dentro, a liberdade de pensar, de conceber, de decidir.

O que também impede mulheres de servirem em submarinos — além, por óbvio, da regra que as proíbe — é o fato de terem sido educadas desde meninas para considerar que submarinos não são para elas, que serviço militar é coisa de homem. (Se mulheres quisessem ser submarinistas nas mesmas proporções que querem ser médicas ou engenheiras, duas profissões nas quais também são sub-representadas, a pressão popular tornaria insustentável a proibição.)

Nossa liberdade-de-fora é muito mais restrita do que deveria ou poderia ser, especialmente se fazemos parte de grupos subalternizados: uma pessoa negra não tem as mesmas liberdades que uma branca, uma mulher não tem as mesmas liberdades que um homem.* (Quem tem interesse em restringir minha liberdade de ação?)

[*Desenvolvi esses temas na Prisão Classe.]

Nossa liberdade-de-dentro é muito mais restrita do que nos vendem, limitada não tanto por nossa genética quanto por nossa falta de imaginação. Uma falta de imaginação que não é natural ou espontânea, mas, pelo contrário, cuidadosamente cultivada. A melhor ferramenta de controle social que existe é uma ideologia que torna impensável o inconformismo, a rebeldia, a insatisfação — especialmente nos grupos subalternizados. (Quem tem interesse em me fazer pensar que sou mais livre do que realmente sou?)

As Prisões são justamente essa ideologia: cada Prisão é uma “verdade” tão gigantesca, consensual e hegemônica que elas nos cegam às suas alternativas. O primeiro pré-requisito para poder des-escolher a Monogamia é conceber que essa é uma alternativa possível, e assim por diante. Somos tão pouco livres que não dispomos nem do vocabulário para articular nossa falta de liberdade.*

[*Essa frase, hoje já quase proverbial e que poderia ser a epígrafe desse Livro das Prisões, é do filósofo esloveno e enfant terrible Slavoj Žižek, e está na introdução de sua coletânea de ensaios Bem-vindo ao Deserto do Real!: Cinco Ensaios Sobre o 11 de Setembro e Datas Relacionadas, publicada no Brasil em 2003 pela Boitempo.]

Quando as classes dirigentes modificam a grade curricular do ensino médio público para substituir História e Geografia, Filosofia e Sociologia, por matérias profissionalizantes, o que estão revelando é exatamente o seu projeto de país. Nas escolas particulares, afinal, as crianças de elite continuarão estudando as disciplinas que vão expandir seus horizontes e prepará-las para gerir a nação. Já as filhas das classes baixas, bem, para quê enganá-las com um potencial ilusório que não tem como se realizar, ou melhor, que não queremos que se realize? Melhor que já saiam da escola como carpinteiras e eletricistas, encanadoras e mecânicas. Afinal, as nossas BMWs não vão se consertar sozinhas. Nada pode ser mais perigoso do que pessoas pobres com aspirações mais altas que sua classe social.

Estamos presas na Prisão Liberdade quando nós, pessoas privilegiadas aqui lendo esse livro sobre Prisões, colocamos nossa própria liberdade individual como meta de vida, uma meta impraticável e inalcançável, uma tentativa insaciável de realizar todos esses desejos infindáveis que surgem dentro de nós, ao mesmo tempo em que vivemos cercadas, e tenho minhas unhas feitas e meu chão varrido, por pessoas que mal possuem a liberdade de existir, cuja mera faculdade de sonhar com uma vida melhor foi propositalmente embotada.

* * *

Como quantificar liberdade?

Há muito tempo atrás, quando eu ensinava Cultura Brasileira em uma universidade norte-americana, parte da aula incluía explicar como funcionava nosso sistema político.

E comentei que, apesar do mito local de que “os Estados Unidos eram a nação mais livre do mundo”, a partir de um certo nível de liberdade, todas as nações livres eram igualmente livres. A Austrália é mais livre que a França? A Argentina que o Japão? Afinal, não existe “liberdade” absoluta: politicamente falando, país livre é aquele onde a liberdade das pessoas cidadãs é limitada por leis que emanam delas e de seus representantes legitimamente eleitos. Naturalmente, por causa da variação nas leis, vão haver coisas, por exemplo, que as cidadãs do Brasil podem fazer que as dos Estados Unidos não podem, e vice-versa, mas, no geral, não faz sentido, nem existiria um critério mensurável objetivo, para afirmar que um desses países é mais livre que o outro.

A turma ficou visivelmente desconfortável pelo estrangeiro cutucando sua vaca sagrada e uma menina bufou:

— Então, me diz uma, uma coisa, que você como brasileiro pode fazer que eu, como americana, não posso.

— Visitar Cuba.

Ficou um silêncio chato.

* * *

Definindo liberdades

Liberdade é quando eu poderia tanto ter concebido agir diferente, como também efetivamente agido diferente, tanto em relação às minhas travas internas e psicológicas quanto externas e políticas.

Um exemplo: uma vez, passei dois meses dirigindo pelo Cone Sul, uma viagem particularmente tensa e triste. Durante esse período, pela primeira vez na vida, mesmo depois de ter morado no exterior por uma década, senti muita, muita falta de feijão com arroz. Aquilo para mim foi incrível porque nunca gostei tanto assim de feijão com arroz, e nem acho que é uma comida melhor do que a maioria das outras. Então, por que senti tanta falta? Me lembro de pensar: será então que esse é o meu gosto pessoal? Será que, na minha essência mais profunda, esse é o meu Eu: uma pessoa que não consegue passar dois meses sem feijão com arroz? Ou será que simplesmente sou uma pessoa brasileira, como duzentas milhões de outras, que passou a infância inteira comendo uma mesma comida e que, portanto, foi condicionada a apegar-se a ela, ainda mais em momentos de crise? Que não é um gosto pessoal, vindo das profundezas desse meu ó-tão-concreto Eu, mas sim um gosto cultural, contingente e construído, colocado em mim pelas circunstâncias da minha biografia, condizente com os hábitos alimentares da sociedade onde cresci?*

Enfim, eu não sou livre para não sentir essa saudade de arroz e feijão, mas sou totalmente livre para, se quiser, nunca mais comer arroz e feijão na vida. Não posso escolher não sentir essa saudade, mas posso escolher não comer esse prato.

[*Esse exemplo é desenvolvido, em outra direção, na 18ª prática do meu livro Atenção.]

* * *

Narrativas que me aumentam, narrativas que me diminuem

Quando algo acontece ou deixa de acontecer na minha vida, seja bom ou ruim, passar ou não em um concurso público, ser preso ou ser promovido, esse evento ou não-evento terá que ser inserido em minha autonarrativa, ou seja, na história da vida conforme contada por mim para mim mesmo. E sempre posso escolher ou me diminuir (ou seja, criar narrativas onde, quanto menor e mais impotente eu sou, menos responsável sou por minhas ações) ou me aumentar (ou seja, criar uma narrativa onde, quanto maior e mais potente eu sou, mais responsável sou por todas as minhas ações.)* Posso acreditar que fui preso porque a sociedade já era um jogo de cartas marcadas contra mim ou porque sou uma pessoa má na minha essência e não presto ou porque cometi erros que não vou cometer da próxima quando for mais experiente, ou porque tive azares completamente inesperados e imprevisíveis: cada uma dessas autonarrativas, independente de ser verdadeira ou não, me aumenta ou me diminui em diferentes graus, me atribui maior ou menor liberdade, maior ou menor responsabilidade.

[*De todos os livros sobre todos os tipos de liberdade citados nessa Prisão, se eu tivesse que recomendar somente um para a pessoa curiosa que deseja saber mais, certamente seria Freedom evolves (2004) do filósofo Daniel C. Dennett. A frase que ele mais repete e que talvez seja o melhor resumo do seu livro é: “se eu me diminuir o suficiente, consigo externalizar tudo”. Ou, em outras palavras, quanto mais indefeso, impotente e sem autonomia eu me imagino na narrativa que crio para mim mesmo, mais todas as minhas ações são fonte de estímulos externos alheios a mim, logo, menos responsável eu sou.]

A questão não é nem qual dessas narrativas é mais confortável (todas conhecemos pessoas para quem nada nunca é culpa delas ou tudo sempre é) nem qual me faz mais feliz*, mas sim qual fortalece e possibilita meu senso de autonomia para viver uma vida mais ética e mais compassiva.

[*Esse será o tópico da próxima Prisão, a Felicidade.]

Se acho que nada é minha responsabilidade e tudo é culpa do sistema, do mundo, da sociedade, do azar, das estrelas, da minha genética, da educação que recebi dos meus pais, etc, então, posso ou cair numa egotrip depressiva impotente (de que adianta agir se não sou responsável por nada que faço?) ou, se decidir agir, a ação mais provável será tentar mudar não eu mesmo (de novo, de que adianta?), mas sim essa externalidade quase onipotente que me pauta. (Mas como mudar o mundo se sou uma formiguinha totalmente impotente? Se nada é minha responsabilidade, então, como vou me responsabilizar por lutar por um mundo melhor?)

Por outro lado, se acho que tudo é minha responsabilidade, como se não sofresse influência externa alguma, como se o mundo e a sociedade não me pautassem, como se eu estivesse fadado a ser a mesma pessoa independente de minha genética ou criação, então posso ou cair numa egotrip depressiva e paralisante de autoculpabilização e autoflagelamento (de que adianta agir se sou responsável por tudo o que faço e, pior, só faço besteira?) ou numa egotrip maníaca de potência meritocrática, onde, se decidir agir, a ação mais provável será tentar mudar não o mundo (não se mexe em time que está ganhando!), mas a mim mesmo para me tornar uma pessoa melhor que toma decisões ainda melhores. (Mas de que adianta, ou o que significa, ser uma pessoa melhor em um contexto individualista e meritocrático como esse? Melhor pra quem? Melhor em quê? Em pisar nas coleguinhas? Em passar por cima das liberdades dos outros?)

Existe um certo egocentrismo em quem sinceramente acha que vai mudar o mundo. Mas existe um outro tipo de egocentrismo em quem nem mesmo tenta. Como cavar um caminho do meio? Como viver e agir de forma ética, correta e compassiva sem cair em nenhum desses dois extremos?

* * *

Liberdade e responsabilidade na esquerda e na direita*

[*Nessa subseção, vou fazer algumas generalizações muito a grosso modo sobre a esquerda e a direita pautadas não por leituras, mas por meu trânsito entre esses grupos nos últimos, digamos, dez anos, de 2013 a 2023. Por favor, mesmo se discordarem violentamente das minhas generalizações, leiam fazendo os devidos descontos e até o final, para ver a qual conclusão eu estava cambaleando para chegar.]

É impossível falar de liberdade sem falar de responsabilidade. Sim, Nietzsche está certo quando diz que inventaram o livre-arbítrio para que pudessem nos punir. Mas uma outra maneira de dizer a mesma coisa é dizer que inventaram o livre-arbítrio para que nós nos tornássemos responsáveis.

Hoje, nos círculos de esquerda onde eu mais transito, o tema liberdade/responsabilidade/escolhas é muito mal visto. Mais de uma pessoa já me disse que, quando começou a ler meus textos, minha ênfase nesses assuntos lhe deu a impressão que eu era de direita. Outras pessoas, as que não vieram falar comigo, devem ter concluído que sou um direitista infiltrado e pararam de me ler. Para muitas pessoas de esquerda, falar de responsabilidade é ser de direita:

— Só um direitista falaria em liberdade individual quando poderia estar apontando para as desigualdades sistêmicas e estruturais do capitalismo tardio!

Já eu defendo que todas nós perdemos, pessoas de direita e de esquerda e de todos os pontos do espectro ideológico, quando a pauta da liberdade e da responsabilidade vira monopólio de um único grupo, que pode fazer dela o que quiser, esgarçá-la até já não significar quase nada.

Existe hoje, na direita, um certo culto se não à liberdade absoluta, pelo menos à possibilidade da liberdade mais ampla que seria razoável defender. A grosso modo, em maiores e menores graus, desde YouTubers bolsonaristas histéricos até pensadores conservadores sérios, as pessoas de direita tendem a acreditar, e a agir no mundo, como se fosse possível ou desejável um certo ideal de liberdade absoluta, definido negativamente (ou seja, liberdade é ninguém interferir comigo), e que tem como consequência uma forte responsabilização sobre o indivíduo. Se ninguém estava me obrigando a nada, logo, sou livre e, se sou livre, logo, sou responsável pelos meus atos.

Se eu perguntar “A quem interessa manter viva essa ideologia da liberdade irrestrita e responsabilização absoluta?”, a resposta óbvia seria “os donos do mundo”. Porque essa visão da liberdade é hoje, na prática, para o bem ou para o mal, o senso comum da nossa sociedade, o status quo sob o qual vivemos. A sociedade de controle e a democracia liberal, o punitivismo e a meritocracia, nada disso faria sentido fora dessa concepção de liberdade individualista e quase irrestrita. Essa ideologia é literalmente o substrato da nossa vida.

Nos meios de esquerda, porém, começa a surgir um novo status quo: a partir da percepção, a meu ver correta, que a maior parte dos nossos problemas são estruturais e sistêmicos, as pessoas estão começando a dar cada vez mais passos em direção a uma autodiminuição radical. Esse movimento é não apenas politicamente condizente com nossa ideologia estrutural e anti-individualista, mas também pode ser bastante individualmente confortável e auto-complacente: afinal, acreditar na minha impotência absoluta diante da enormidade sistêmica das forças do mundo me poupa da angústia da liberdade e da responsabilização. (Já dizia Sartre, pensador nada liberal : “somos condenados à liberdade”.*) Pois se eu não era livre para fazer diferente, então não sou responsável nem pelo que fiz, e nem, talvez mais importante, pelo que deixei de fazer, seja por inação ou insegurança, por imperícia ou complacência

[*Essa frase famosa de Sartre está na palestra “O existencialismo é um humanismo”, realizada em Paris, em 1946.]

Por exemplo, uma pessoa de direta, que acredita mais na meritocracia individual do que em problemas sistêmicos, poderia apontar que a presença de um juiz negro no Supremo Tribunal Federal demonstraria não existirem impedimentos legais, políticos, práticos para pessoas negras alcançarem posições de liderança no Brasil – e talvez acrescentasse:

— Se merecerem, claro.

Já uma pessoa de esquerda poderia olhar para o mesmíssimo ministro e chegar à uma conclusão diametralmente oposta: um único juiz negro em toda a história do STF, em um país majoritariamente pardo, é a confirmação do nosso racismo estrutural. Afinal, se não houvesse, de fato, enormes impedimentos se não políticos e legais, mas certamente práticos, estruturais e sistêmicos, para uma pessoa jurista negra ascender ao Supremo, a tendência seria que a proporção de pessoas juízas negras para brancas seria mais ou menos semelhante à da sociedade como um todo. E talvez ainda desafiasse a pessoa de direita:

— Se as pessoas negras são 56% da população, mas somente 2% das pessoas juízas*, e a explicação não é o racismo estrutural da sociedade, qual seria a outra alternativa que você sugeriria? Está sugerindo que as pessoas negras não têm capacidade mental ou mérito profissional para serem juízas?

[*Os dados estão na matéria “Com apenas 1,7% de juízes e juízas pretos, equidade racial segue distante na Justiça brasileira” publicada pela Agência de Notícias do CNJ − Conselho Nacional de Justiça.]

Eu, pessoa confessadamente de esquerda, naturalmente concordo com a segunda posição, mas não deixo de enxergar o cerne de verdade da primeira: o fato de ser muito difícil para uma pessoa negra chegar ao STF significa, por definição, que é possível, ou seja, que essa possibilidade está aberta e que os critérios para que aconteça vão depender de vários fatores, entre eles e como defendem as pessoas de direita, mérito pessoal – e também, claro, sempre, sorte.*

[*A dimensão moral da sorte, sobre a qual falei na Prisão Classe, é a lufada de vento que derruba todo o castelo de cartas da meritocracia.]

Para entender a diferença entre “difícil” e “impossível”, basta pensar que, até 1879, as mulheres eram proibidas de cursar o ensino superior no Brasil. Então, digamos, se na década de 1890, era difícil de encontrar uma mulher estudando nas faculdades brasileiras, na década de 1860 era impossível. Do nosso acomodado e complacente ponto de vista, porém, cidadãs que somos de uma democracia liberal e politicamente estável, pode até ser fácil de desprezar essa diferença como pequena e insignificante. Mas, para quem está presa nela, para a menina brilhante legalmente impedida de estudar, ela é do tamanho do universo.

Ainda sobre racismo, o modo como direita e esquerda enxergam esse problema, que ambas reconhecem, é bem ilustrativo de suas estratégias discursivas. Pessoas de direita reconhecem que o racismo existe, mas como um problema individual, de total responsabilidade das pessoas racistas. Nesse contexto, definem racismo de maneira bem estreita e restrita, como apenas xingar ou agredir pessoas negras. Já pessoas de esquerda vêem no racismo um problema estrutural e sistêmico que inclusive independe da existência de pessoas efetivamente racistas. Um simpósio universitário com dezenas de palestrantes e nem uma única negra seria, por definição, um evento racista – independentemente da falta de ódio racial por parte das pessoas organizadoras. Seu próprio “distraído esquecimento” (“Oops, esqueci que existem acadêmicas negras!”) já seria um sintoma revelador do racismo estrutural da sociedade.

Enquanto isso, as pessoas de esquerda têm cada vez mais dificuldade de reconhecer e articular o próprio conceito de liberdade. A publicidade serve como um bom exemplo.* Já ouvi pessoas de esquerda argumentando, apaixonadamente e de boa fé, que não seríamos livres para comer o que desejamos por culpa da publicidade maciça:

[*Como falei na Prisão Trabalho, poucas coisas que horrorizam tanto quanto a Publicidade.]

— Que liberdade eu tenho para comer uma saladinha verde e um copo d’água morna se para cada lado que eu olho tem outdoor de xarope açucarado de cola ou de dois hambúrgueres com molho especial? Ok, comi dois, mas não foi culpa minha, não! Acabou o livre-arbítrio!

Já o meu entendimento é radicalmente oposto: a publicidade, apesar de detestável, é uma boa notícia. A tentativa de influenciar nossa liberdade é literalmente a prova que ela existe. O palhaço escocês não veio até a minha casa, arrombou a porta e me enfiou goela abaixo resíduos de frango prensados e fritos: quem foi até a loja, ou pediu no aplicativo, fui eu — aliás, muito mais vezes do que seria razoável. Naturalmente, as maiores corporações do mundo gastam rios de dinheiro em publicidade não só porque somos livres para consumir ou não seus produtos, mas também porque publicidade funciona. Então, sim, por óbvio que a publicidade nos manipula a querer consumir aqueles produtos, mas, de novo, ela só se dá ao trabalho de fazer isso porque somos livres para não os consumir. Ninguém anuncia comida de bandejão numa penitenciária: as pessoas presidiárias comem o que está sendo servido, e pronto. Sem liberdade, não existe publicidade.

Por óbvio que não existe essa tal liberdade ampla e quase absoluta que as pessoas de direita ou acreditam ou, pelo menos, gostariam que existisse. Já sabemos o mundo que seria criado pela disseminação dessa ideologia: literalmente, o nosso mundo, a sociedade de controle, punitivista e meritocrática, onde vivemos. Por óbvio, igualmente, que também não somos tão pequenos e impotentes quanto muitas pessoas de esquerda parecem acreditar. Não sei que tipo de mundo seria criado pela disseminação dessa ideologia e, sinceramente, espero nunca saber.

Do meu ponto de vista de pessoa de esquerda, a liberdade e a responsabilidade são pautas importantes demais para serem dadas de mão beijada para a direita. Qualquer tentativa de vivermos de maneira mais ética e mais compassiva começa necessariamente com uma reflexão sobre nossa autonomia para realizar esse projeto.

O conceito de liberdade talvez seja também parecido com o conceito de raça em um último aspecto fundamental: ambos não existem em teoria, mas pode ser bom agirmos como se existissem na prática. Enquanto categoria objetiva, científica, mensurável, raça certamente não existe; o livre-arbítrio ainda está em debate. Mas, porque nós agimos como se existissem, então efetivamente, para todos os fins e efeitos práticos, eles existem. Políticas públicas baseadas em raça, como cotas raciais em universidades, por exemplo, podem ter um impacto positivo na sociedade, mesmo raça não existindo, mesmo baseadas em uma completa ficção, justamente porque buscam ajudar as pessoas cujas vidas são prejudicadas por serem vítimas dessa ficção. Da mesma maneira, ainda que o livre-arbítrio não exista, pode valer a pena vivermos como se existisse.

Se o mundo é enorme e vasto, muito maior, mais poderoso, mais insondável do que podemos conceber, existe sim um pequeno cercadinho dentro do qual podemos ser livres, um cercadinho mental e político onde podemos pensar e agir livremente: um cercadinho bem menor do que diz o senso comum da direita, mas também, felizmente, muito maior do que diz o senso comum da esquerda.

Para vivermos vidas éticas e ativas, nosso desafio é determinar o tamanho do cercadinho onde podemos efetivamente ser donas de nossos pensamentos e de nossas ações, ou seja, da nossa liberdade. Nem egocêntricas ao ponto de achar que podemos mudar o mundo. Nem egocêntricas ao ponto de nem tentar.

* * *

Sou livre para ter opiniões?

De quem são as minhas opiniões? Quantas opiniões eu tenho só porque são as opiniões do meu grupo? A direita afirma que a Reforma da Previdência é necessária e a esquerda, que o rombo da Previdência é uma mentira — simplificando grosseiramente. Eu não sei nada sobre o assunto e não tenho tempo para me informar adequadamente. Então, como me auto-identifico como uma pessoa de esquerda, adoto a postura majoritária do meu grupo: sou contra. Mas sou realmente contra? Sei realmente do que estou falando? É intelectualmente sustentável ter uma posição em um debate tão importante somente por tribalismo?

Por mais que tenhamos ilusões de individualismo, tudo em nós, até nossas opiniões mais pessoais, são na verdade coletivas. Nosso pensar é gregário. Temos como pensar fora do nosso grupo?

Usando uma questão polêmica e divisiva como exemplo: se todas as pessoas que conheço são a favor do aborto, eu terei como até mesmo conceber a posição contrária? Tenho a liberdade de pensamento de ousar conceber uma opinião que, se verbalizada, me custaria simplesmente todo o meu círculo social? Tenho a liberdade de ação de, caso sim, efetivamente dobrar a aposta e articular essa heresia?

Algumas dúvidas que tenho, tentando ao máximo expor cada lado da questão parafraseando os argumentos de suas defensoras:

Uma mulher trans é “uma mulher que merece a proteção do feminismo”, como dizem as transativistas ou é “um homem colonizando o movimento”, como dizem as feministas radicais?

A prostituição deve ser legalizada, para maior proteção das trabalhadoras sexuais, ou abolida, para maior proteção das trabalhadoras sexuais?

O discurso de ódio deve ser tolerado e protegido, como parte de nosso compromisso com a liberdade de expressão, ou coibido e proibido, como parte de nosso compromisso com a liberdade de expressão? Nessa linha, como definir “discurso de ódio”?

“Liberdade de expressão” deve ser definida negativamente (“liberdade de expressão é o Estado não se envolver”) ou positivamente (“o Estado se envolver para amplificar as vozes mais fracas”)?

Em que momento começa a vida? Tem como saber? Ou qualquer ponto escolhido será sempre necessariamente arbitrário? Se a vida começa em algum ponto antes do nascimento, até que ponto o aborto pode ser considerado assassinato, ou talvez um tipo diferente de assassinato? Se o aborto é assassinato, ou algum tipo de assassinato, ele deve ser proibido em todas as circunstâncias, porque a vida é sagrada, ou deve ser qualificado, pesando a sacralidade da vida com questões de saúde pública e autonomia do corpo feminino?

Em termos de ação política, não temos como mudarmos o mundo sem escolhermos um lado em cada uma dessas questões e lutarmos por ele. Mas, de certo modo, ao fazermos isso, simplificamos a conversa e deixamos de ver as enormes complexidades de cada uma delas.

Eticamente, intelectualmente, conceitualmente, essas são algumas das questões filosóficas mais interessantes do nosso tempo. Nenhuma dessas questões é simples, banal, preto-no-branco. Todas as pessoas, de ambos os lados de cada questão, têm argumentos intensos e sinceros, racionais e importantes, que merecem ser ouvidos e respeitados e contraargumentados em seus próprios termos.

Se tenho uma opinião formada sobre cada uma delas, muito bem. É meu direito e, de certo modo, meu dever. Mas se acho que “é simples”, então provavelmente é porque não pensei, li, me informei sobre o assunto a fundo.

Pelos últimos anos, não tenho pensado com tanta liberdade intelectual quanto poderia estar pensando, quanto já pensei em outras épocas, porque estava ou muito preocupado com a luta política, seus resultados concretos e suas consequências práticas, ou muito receoso de talvez chegar a alguma conclusão que ferisse a ortodoxia política do meu lado. Ou seja, minha ação política empobreceu minha ação intelectual. Terminando aqui O Livro das Prisões, que estou escrevendo há 22 anos, meu objetivo é começar a reverter esse processo, começando por escrever mais ficção.

Por fim, uma amiga comentou:

— Alex, esse seu texto não tá meio isentão demais?

E respondi:

— O texto é justamente sobre o momento político atual, onde é possível surgir essa palavra com conotação negativa para descrever pessoas que não correm para se posicionar sobre todas as questões.

* * *

Inato ou adquirido

Quem nos influencia mais? Nossos genes? Ou a maneira como fomos criadas? Se duas pessoas gêmeas idênticas (ou seja, mesma genética) forem criadas em ambientes radicalmente diferentes… de que maneira elas se tornarão adultas iguais (por influência da genética idêntica) ou adultas diferentes (por influência da criação distinta)?*

[*Uma das grandes discussões do pensamento mundial, que sempre reaparece em todos os campos de saber sob os mais diversos nomes, é aquela que, em inglês, leva o perfeito nome de nature versus nurture. Em português, infelizmente, não temos ainda uma expressão consagrada. Talvez “natureza versus criação”, talvez “genética versus meio ambiente”. Até segunda ordem, vou aceitar a solução da Wikipédia e usar “inato ou adquirido”.]

Por óbvio, nossa genética e nosso meio ambiente nos limitam de diversas maneiras. Podemos escolher olhar para todo o impacto dessas limitações sobre mim e nos diminuirmos cada vez mais… até de fato concluirmos que não somos nem jamais poderíamos ser livres. Afinal, sou um homem corpulento que nasceu no Brasil: não sou livre para ser ginasta olímpico nem para me tornar falante nativo de chinês. (Se eu me encolher o suficiente, consigo externalizar tudo.)

Mas o mesmo biotipo pesado que me dificulta ser ginasta olímpico me facilita a performance em diversos outros esportes, como futebol americano ou várias lutas, ou mesmo é indiferente, como no arco e flecha. Não tenho a leveza para dançar balé clássico, mas tenho a precisão pra bailar tango bem decentemente. Quanto ao meio ambiente, se eu nunca “terei a liberdade” de ser falante nativo de chinês, eu posso sim decidir começar a aprender hoje e, se eu me dedicar, ser tão fluente quanto qualquer chinês, apesar de algum sotaque.*

[*Na Prisão Patriotismo, falo um pouco sobre as muitas vantagens de ser brasileiro.]

* * *

A quem interessa esvaziar o conceito de “liberdade”?

Se você diz que não é livre, ou que liberdade não existe, porque suas escolhas são restritas, ou porque todas as suas opções são ruins, eu responderia duas coisas.

Em primeiro lugar, bem vinda ao clube. Aqui, no mundo real das pessoas de carne e osso, nunca existiu escolha entre uma infinidade de alternativas perfeitas e maravilhosas. Toda escolha é sempre entre um número limitado de opções e, sim, infelizmente, muitas vezes todas são horríveis. Podemos escolher livremente entre dois ou mais empregos, mas não podemos escolher entre arrumar emprego ou nascer herdeiro.

Em segundo, o fato de suas escolhas serem restritas, ou todas suas opções, ruins não significa que “liberdade” não exista, porque ninguém nunca definiu o conceito de liberdade dessa maneira tão ampla, nem os mais alucinados libertários. Ou seja, essa liberdade que você diz que não existe não existe mesmo: ela nunca foi postulada por ninguém. Se liberdade fosse isso, então ela de fato não existiria. Mas, quando falamos em liberdade, estamos falando de outra coisa.*

[*Essa é uma variação da Falácia do Escocês de Verdade. Alguém diz que “todo escocês é perdulário”, outra pessoa retruca: “olha, o Scrooge McDuck é escocês e não é!” e o primeiro sentencia: “ah, mas ele não conta porque ele não é escocês de verdade: ele é um pato!”]

Porque se eu afirmo que não sou livre por causa das minhas muitas limitações físicas, mentais, políticas (e vamos lembrar que todas nós temos diversas limitações físicas, mentais, políticas), então o que estou também afirmando é que a liberdade, a verdadeira liberdade, só existe, só pode existir, na ausência de limitações físicas, políticas, mentais.

Mas, como todo ser vivo que já existiu, existe ou existirá só existe no espaço restrito possibilitado por suas muitas limitações físicas, mentais, políticas, o que estou dizendo não é nem que liberdade não existe, mas, pior, que jamais poderia existir nesse nosso mundo material limitado pelo tempo e pelo espaço. A liberdade, portanto, só pode existir para um Deus onipotente, onipresente, onisciente que fosse livre de toda e qualquer limitação biológica, temporal, existencial — e, por óbvio, só para quem acredita nele.

Pra quê serve esse conceito de liberdade, então? Só pra confundir? De que nos adianta um conceito de liberdade definido de forma tão restrita que só é aplicável em discussões teológicas? Qual é a utilidade prática que essa impossibilidade teórica tem na nossa vida real de pessoas humanas tentando decidir como viver de forma correta, compassiva, ética? Quando definimos uma palavra de forma tão restrita que ela deixa de ter qualquer utilidade ou aplicabilidade, quem ganha?

Acho engraçado quando pessoas dizem, em tom depreciativo, “ah, essa palavra é inventada!”. Pois claro que é. Palavras não dão em árvore, não são fruto da natureza. Todo conceito foi inventado por alguma pessoa e só permaneceu sendo usado por outras porque se mostrou útil, seja como ferramenta descritiva, filosófica, etc.

Um exemplo. As pessoas vêm agindo de forma racista há meio milênio, talvez desde sempre, mas a palavra “racismo” é uma invenção do século XX — criada não pelas pessoas racistas, que estavam muito bem fazendo o que sempre fizeram sem sentir a menor necessidade de nomeá-lo, mas sim pelas pessoas que queriam poder descrever em uma única palavra algo que viam como um problema a ser combatido e solucionado. Nesse sentido, definir racismo de forma tão restrita que já mais quase nada é racista (como fazem muitas pessoas de direita, para quem ser racista se restringe a xingar ou agredir pessoas negras) é uma maneira de efetivamente bloquear a luta antirracista. Se nada ou quase nada é racista, então “pra quê tanto alarde? Pra quê cotas raciais? Tudo tempestade em copo d’água para resolver um problema que já está resolvido…”

Entendo porque muitas pessoas de esquerda estão trabalhando, nem que apenas inconscientemente, para esvaziar o conceito de liberdade. Para elas, liberdade é uma ilusão utilizada pelas pessoas mais conformistas e conservadoras para justificar a pobreza, a desigualdade, a meritocracia: “Olhaí, as universidades públicas estão abertas pra todos, não entrou quem não quis, quem não estudou!”

Mas o que estou sugerindo é que a liberdade não precisa ser instrumentalizada só para isso. O conceito de liberdade é uma ideia que podemos tomar, ou retomar, para nos possibilitar levar vidas mais éticas, mais deliberadas, mais corretas. Assim como raça não existe biologicamente, mas essa ficção conceitual nos permite descrever e combater os efeitos políticos nocivos que essa ilusão têm no mundo, a liberdade também pode ser vista como uma ilusão positiva, uma ilusão benéfica, uma ilusão verídica.* Se raça não existe, o racismo sim existe e, graças a ele, a luta antirracista também. Então, mesmo se eu achar que o meu livre-arbítrio é uma ilusão, minha ação correta e ética, no mundo real, não é.**

[*Essa é uma das conclusões do livro The illusion of conscious will, publicado em 2002 e escrito pelo psicólogo Daniel Wegner, que não acredita que o livre-arbítrio exista mas considera que pode ser útil como “uma ilusão benéfica”.]

[**Como expliquei com mais detalhes na penúltima prática de Atenção. “Escolher agir com cuidado”, se eu ajudar a velhinha a atravessar a rua “ironicamente”, “zoando dela na minha cabeça”, etc, no final das contas, o resultado da minha ação é que uma pessoa que precisava de ajuda foi ajudada.]

* * *

Quem é esse Eu que pretende ser livre?*

 [*A 18ª prática do meu livro Atenção., “Desapegar do Eu”, é um longo desenvolvimento desse assunto. Aqui, vou tratar somente do ângulo da liberdade.]

As primeiras menções à palavra “Psicologia” vêm do século XV: enquanto a Anatomia estudava o corpo, a Psicologia estudaria a alma (“psique” em grego). Ou seja, a Psicologia surge como “Psicologia Cristã”, inseparável da dicotomia “corpo-alma” que caracteriza o pensamento cristão, voltada a estudar tudo o que acontece nesse espaço por definição etéreo e não-observável, escondido e misterioso, sublime e respeitável. Séculos depois, com o Iluminismo, o conceito de “alma” começa a perder sua força explicativa nos círculos intelectuais humanistas. Entretanto, apesar de nossa ânsia em fugir do cristianismo, ainda não tínhamos inventado ferramentas conceituais que nos permitissem superar os limites impostos pela dicotomia cristã “corpo-alma”.

Então, apenas trocou-se “alma” por “mente”. O pobre “corpo”, tão concreto e tão observável, tão cheio de entranhas e tão pulsante de artérias, tão bestial e tão limitado, foi novamente posto em oposição a algo etéreo e não-observável, escondido e misterioso, sublime e respeitável: não mais “alma”, claro que não, somos philosophes, acha que acreditamos nessas crendices cristãs?!, mas, voilá, a “mente”!

O problema é que “mente”, apesar de ser um conceito que poderia ser debatido a sério por sofisticados intelectuais humanistas e agnósticos, sem a necessidade de passar por superstições cristãs simplistas, era, na prática, somente a “alma” com uma nova roupagem. Afinal, onde está a mente? Quanto pesa? Como funciona? Não só não sabemos como não temos como saber: a “mente” compartilha do mesmo mistério incognoscível da “alma”.*

[*Uma das primeiras pessoas a rejeitar o conceito de “mente” da maneira como descrevi foi o filósofo britânico Gilbert Ryle, em The concept of mind, de 1949. Mais tarde, em Uma história da mente: a evolução e a gênese da consciência, de 1992, o psicólogo britânico Nicolas Humphrey dá prosseguimento ao argumento, defendendo a “função social no intelecto” e considerando que nossas capacidades cognitivas são adaptações evolutivas à nossa vida social, sendo assim um dos fundadores da “psicologia evolutiva”.]

Freud, em sua criação da Psicanálise, leva esse processo ao seu limite lógico e expõe todas as suas contradições. Apesar de ter começado sua prática médica tratando de pessoas doentes que apresentavam sintomas físicos reais, ele logo se autoconverte em verdadeiro cartógrafo de uma geografia invisível da mente, mapeando a mente humana como os portugueses mapearam a costa do Brasil. A diferença, naturalmente, é que a costa do Brasil existe.*

[Em Por que Freud errou: pecado, ciência e psicanálise, de 1995, especialmente capítulos 22 e 23, Richard Webster desenvolve o argumento que parafraseei nesse texto. É um dos livros mais impactantes que já li na vida, e recomendo para todas as pessoas que ou amam ou odeiam Freud. O livrinho Freud, publicado pela UNESP em 2006, como parte da coleção “Grandes filósofos”, oferece um bom resumo e é mais fácil de encontrar. Vou dar só um exemplo de o quanto esse livrinho foi importante pra mim. Tenho um Kindle desde 2009 e, como dá pra ver por esse livro, eu não leio pouco. Pois esse livrinho de Webster foi a primeira e única vez em que o Kindle me impediu de continuar sublinhando: eu literalmente cheguei no limite de quantos por cento do livro eu podia sublinhar sem ferir os direitos do autor. Eu nem sabia que esse limite existia e nunca mais esbarrei com ele novamente.]

Abaixo, alguns dos conceitos teorizados ou cooptados por Freud para descrever fenômenos por definição não-observáveis, não-comprováveis, não-falsificáveis: Ego, Id, SuperEgo, catexia, decatexia, anticatexia, escolha objetal, modelo anaclítico, deslocamento, resíduo mnêmico, condensação, imago, princípio da constância, teoria da relação de objetos, etc etc. Esses conceitos não estariam em uso até hoje se não fossem úteis para pensar o comportamento humano. Muitos deles, entretanto, são apenas novas articulações, com roupagem científica, de velhos conceitos consagrados.

Por exemplo, falar que “os três mestres tirânicos do Ego são o mundo externo, o Super-Ego e o Id” é pouco mais do que dizer que a consciência do homem é governada por seu ambiente externo, por sua consciência e por seus instintos inatos. O Complexo de Édipo, por seu lado, é uma versão laica do Pecado Original: não interessa o quão virtuoso seja nosso comportamento, não há como fugir ou como superar o mal que trazemos dentro de nós, etc.*

 [*A observação sobre “os três mestres tirânicos do Ego” é de Allen Esterson, citado em Webster, Por que Freud errou, capítulo 13.]

Freud começou sua carreira tratando pacientes com sintomas físicos, mas logo concentrou-se apenas em fenômenos psíquicos internos, tornando-se incrivelmente refratário a fatos externos observáveis. Para ele, o comportamento externo das pessoas, suas ações e suas palavras, são sempre fundamentalmente suspeitos, como se servissem apenas para ocultar ao mundo as profundas realidades psíquicas dos fenômenos mentais – que ele, como terapeuta, teria a função de desvelar, descobrir, desencavar. Em seus estudos de caso, Freud frequentemente toma como axioma que as pacientes querem dizer o oposto do que falam — com base em quê? — e articula hipóteses exploratórias que, na página seguinte, já se transformam em conclusões comprovadas sem nenhuma etapa intermediária. Tudo aquilo que Freud efetivamente vê e escuta não lhe desperta confiança e nem interesse: seu objeto de estudo é justamente a “realidade interna não-física”, aquele quarto secreto e não-observável onde ele pode especular à vontade sem jamais correr o risco de que provem que está errado.

Ler um psicólogo brilhante como Freud escrevendo, especulando, viajando sobre a “mente” é como ler teólogos brilhantes, como Agostinho de Hipona e Bernardo de Claraval, João da Cruz e Mestre Eckhart, escrevendo, especulando, viajando sobre a “alma”. Eles dizem “a alma sente”, “a alma vai”, “a alma procura”, e ficamos nos perguntando: como sabem?, o que viram?, de onde vem tanta certeza? Naturalmente, se Freud diria que não inventou nada e se baseou apenas sua própria mente, seu consultório e suas pacientes, os teólogos acima também diriam que não inventaram nada e se basearam apenas em suas próprias almas, suas igrejas e suas congregações. Na verdade, o maior choque é perceber que estão falando rigorosamente do mesmo objeto e utilizando a mesma metodologia. A única diferença é o projeto freudiano de apresentar esse conteúdo, religioso em sua essência, com uma nova roupagem científica mais palatável ao público do século XX.

Nada disso quer dizer que esse conteúdo deva ser jogado no lixo. Não acredito nem em Deus e nem em psicanálise, nem em alma e nem em Super-Ego, mas os cinco autores citados tiveram enorme impacto em minha vida, me informaram e me consolaram, me instigaram e me inspiraram. Mas o valor desses textos está justamente em sua tentativa mística de tocar o Mistério, não em seu rigor científico.*

[*Noite escura, de João da Cruz, e As confissões, de Agostinho foram diretamente responsáveis pelo caminho religioso que estou trilhando até hoje, e do qual esse livro que você está lendo faz parte. Agostinho, pra mim, é como se fosse um irmão mais velho: autoritário e brilhante, carola e compassivo, moralista e articulado, turrão e companheiro.]

Naturalmente, a Psicologia, como campo do saber, é muito maior do que a Psicanálise, como método terapêutico e técnica hermenêutica. Depois que Freud expôs ao mundo as contradições inerentes no seio de uma pretensa ciência humana que, na prática, se dedicava a estudar a “alma”, mas somente com um novo nome, logo surgiu a reação, como sempre violenta e radicalmente oposta: o Behaviorismo. Em um primeiro momento, um Behaviorismo mais radical acabou se constituindo em pólo oposto à Psicanálise: enquanto a segunda era completamente refratária ao comportamento externo, como se atos fossem irrelevantes em comparação à enormidade de fenômenos psíquicos, a primeira considerava apenas o comportamento externo, como se fôssemos seres sem vida interior e sem consciência. Hoje, quase um século depois, ambos os extremos, tanto o Behaviorismo quanto a Psicanálise stricto sensu, em suas formas mais puras e originais, já foram largamente desacreditados e sobrevivem apenas em versões mais light e mais ecumênicas, ao lado de outras escolas, métodos e tendências que foram surgindo ao longo do século XX.

Tanto a Teologia, desde sempre, quanto a Psicologia, em grande parte, associariam o comportamento externo dos seres humanos a uma “realidade interna não-física”, que chamariam de “alma” ou “mente”. Mas não existe esse quarto fechado misterioso para o qual precisamos encontrar uma chave, seja física, para abri-lo, ou metafórica, para interpretá-lo. Nosso comportamento externo não é uma pista que nos permite acesso àquilo de realmente importante e essencial que está acontecendo dentro de nós. Pelo contrário, nosso comportamento externo é quem realmente somos.

Enquanto acreditávamos que existia essa tal “realidade interna não-física” que podia ser estudada (ou, pelo menos, sobre a qual se poderia especular, seja chamando-a de “alma” ou de “mente”), ela era o objeto de estudo da Psicologia. Mas, se não existe, se o objeto da Psicologia passou a ser o comportamento humano como um todo, então, qual é a diferença entre ela e tantas outras ciências que, fundamentalmente, fazem o mesmo, da Sociologia à História, da Economia à Antropologia? Ainda faz sentido falar em Psicologia?*

[*Não quero dar a impressão que sou contra a existência da Psicologia como campo do saber, mas certamente acho que, para continuar sendo útil, suas premissas precisam ser repensadas. O último capítulo de The concept of mind, do Ryle é dedicado a essa discussão e convido as pessoas interessadas a lerem.]

Se a dicotomia “mente-corpo” não nos serve mais (porque já percebemos que não existe “mente”), uma solução possível seria simplesmente substituir “mente” por “cérebro”. Afinal, o cérebro existe, não? O cérebro tem peso, tem massa, dá pra pegar, dá pra cheirar. Mas, na verdade, não. Se a dicotomia “mente-corpo” é teológica, a “cérebro-corpo” é non-sense. Porque cérebro é corpo.

Um cérebro, por si só, fora de um corpo, em um pote de formol, é apenas isso: um troço esponjoso que tem peso e que tem massa, que dá pra pegar e que dá pra cheirar, mas que não possui nem consciência e nem pensamentos, nem cognição e nem emoções. Para isso, o cérebro precisa estar dentro de um corpo, dentro do corpo humano que evoluiu junto com ele, moldando e sendo moldado, repleto de terminações nervosas e reações neuroquímicas. Por isso, nossa alma e nossa mente, nossa consciência e nossa cognição, não acontecem em nosso cérebro, mas em nosso corpo inteiro.

Somos seres inteligentes porque temos corpos inteligentes. Somos seres conscientes não porque temos “alma” ou “mente”, mas porque nossa consciência é uma das características selecionadas pela evolução de nossos corpos inteligentes. Só existe corpo.*

[*Esse parágrafo é uma paráfrase do capítulo 23 de Por que Freud errou, de Webster.]

* * *

Livre-arbítrio existe?

Quem lê jornal já deve ter lido por aí que a “ciência provou que não temos livre-arbítrio”. Você leu isso por dois motivos. Em primeiro lugar, sim, alguns experimentos de fato apontaram nessa direção; vou descrever o principal deles mais abaixo. Em segundo, como o senso comum da nossa sociedade conservadora e direitista ainda é esse livre arbítrio quase irrestrito que justifica o punitivismo e a meritocracia, a ciência provar ou indicar que ele talvez não exista é literalmente notícia (já dizia o velho repórter: “cachorro morde homem” não é notícia, “homem morde cachorro” sim), uma notícia importante que uma esquerda cada vez mais interessada em desmontar as narrativas da direita fez questão de amplificar. Mas, feliz ou infelizmente, as notícias sobre a morte do livre-arbítrio foram muito exageradas.

Dos vários experimentos que parecem indicar a não-existência do livre-arbítrio talvez o mais famoso seja o conduzido pelo neurocientista Benjamin Libet em 1983.* Resumindo brutalmente, os participantes, com eletrodos na cabeça e sentados diante de um relógio de precisão, receberam as seguintes instruções: mover o pulso em algum momento aleatório e registrar o instante exato em que tinham tomado a decisão de fazer esse movimento. Libet descobriu que os cérebros das participantes já estavam se preparando para fazer o movimento cerca de meio segundo antes do instante em que disseram ter decidido fazer o movimento. (A ênfase em “disseram” é minha.) Escreveu Libet: “O início da ação voluntária parece começar no cérebro de forma inconsciente muito antes da pessoa conscientemente decidir que ela quer agir!” (Já a exclamação é dele.)

[*O experimento é explicado em detalhes em todos os livros contemporâneos sobre livre-arbítrio, seja como prova cabal da não-existência desse unicórnio, seja para demonstrar que na verdade as coisas não são bem assim. Estou seguindo aqui o oitavo capítulo, “Are you out of the loop?” de Freedom evolves, do Dennett. A citação de Libet está nesse capítulo. No time contra, vale a pena ver também o segundo capítulo de Livre-arbítrio, de Mark Balaguer. Já no time a favor, o primeiro capítulo,“The unconscious origin of the will”, de Free will, de Sam Harris, dá apenas uma versão muito resumida do experimento, talvez por presumir que ele já é decisivo e convincente por si só.]

O experimento, portanto, parece indicar que um movimento físico começa a acontecer antes da mente tomar a decisão de se mover. Ou seja, não foi a pessoa conscientemente que decidiu fazer o movimento: o braço começou o processo de se mover e a consciência — como tantos dos melhores políticos, liderando a partir da retaguarda e correndo na frente para se fazer de líder de algo que já estava acontecendo sem ele — “decidiu” mover o braço que já estava em processo de se mover. Para alguns autores, o experimento demonstraria a existência de um apavorante “vazio moral” de meio segundo entre uma ação ser iniciada e a mente tomar consciência dela. Com base nesse experimento, e em outros similares, alguns autores, estudiosos e pensadores correram para decretar a morte do livre-arbítrio.* O tema, por ser espetacular e gerar cliques, ganhou destaque especialmente nas manchetes de jornal.

[*Talvez o mais famoso seja Free will, de Sam Harris, publicado em 2012, que nega radicalmente a possibilidade de existência do livre-arbítrio e que eu fiz o sacrifício de ler do começo ao fim. Considerando que Harris tem uma persona pública detestável, comprando brigas a torto e a direito, se comportando sempre de forma arrogante e debochada, talvez sua defesa seja singelamente que não tem escolha a não ser se comportar como um babaca. Na verdade, Harris é tão, mas tão babaca — perdoem o ranço — que ele consegue ser radicalmente contra o livre-arbítrio e ainda assim continuar agarrado a uma das piores e mais perversas excrescências humanas, o punitivismo, que só existe por causa desse livre-arbítrio. Para Harris, não é porque livre-arbítrio não existe que deveríamos parar de encarcerar pessoas — quando, na verdade, esse seria um dos poucos pontos positivos de uma sociedade que realmente se organizasse como se livre-arbítrio não existisse: “Viewing human beings as natural phenomena need not damage our system of criminal justice. If we could incarcerate earthquakes and hurricanes for their crimes, we would build prisons for them as well. We fight emerging epidemics—and even the occasional wild animal—without attributing free will to them. Clearly, we can respond intelligently to the threat posed by dangerous people without lying to ourselves about the ultimate origins of human behavior. We will still need a criminal justice system that attempts to accurately assess guilt and innocence along with the future risks that the guilty pose to society.”]

Outros estudiosos e pesquisadores, porém, discordam. O filósofo Mark Balaguer, autor de diversos estudos sobre livre-arbítrio, afirma ser um exagero completamente não justificado utilizar experimentos como os de Libet para defender que não temos livre-arbítrio: quando muito, eles somente indicam que nosso livre-arbítrio talvez seja mais limitado do que gostaríamos que fosse. Se algumas de nossas decisões talvez sejam pré-determinadas por fatores biológicos ou subconscientes, muitas outras não são: nesse cercadinho está o nosso livre-arbítrio. Afinal, nenhum defensor do livre-arbítrio, nem os mais ferrenhos ou radicais, consideram que dispomos de liberdade total e irrestrita: os experimentos, na melhor das hipótese, apenas delimitam o tamanho do cercadinho, mas passam longe de provar que ele não existe.* Mas Balaguer basicamente concorda com os resultados do experimento de Libet, somente os interpreta de maneira a não negar a existência do livre-arbítrio: é mais uma operação retórica que científica. Aliás, o próprio Libet não considerava que seu experimento demonstrasse a não existência do livre-arbítrio.

[*O argumento de Balaguer contra as conclusões de Libet está no sétimo capítulo, “Can we block the scientific argument against free will?”, de Livre-arbítrio, publicado em 2014 na série The MIT Press Essential Knowledge series. É um resumão muito básico, acessível e disponível em português sobre as pesquisas recentes em livre-arbítrio.]

O filósofo Daniel Dennett, por outro lado, discorda radicalmente do experimento de Libet: das premissas, da execução e, principalmente, da conclusão que não teríamos livre-arbítrio. Eu não teria como reproduzir aqui a linha de raciocínio de Dennett – que começa, naturalmente, fazendo uma descrição do experimento de Libet muito mais detalhada do que caberia nesse livro aqui já enorme, para em seguida desmontá-lo ponto a ponto até não sobrar absolutamente nada. Para os fins da minha argumentação na Prisão Liberdade, basta dizer que eu, leitor de Dennett, fechei seu livro Freedom evolves, plenamente convencido de que o livre-arbítrio existe e passa bem, obrigado — mesmo que eu não seja igualmente capaz de convencer você, pessoa leitora do Alex Castro, a fechar O livro das Prisões igualmente convencida. Então, pela única vez nesse livro, vou passar o ônus da explicação adiante: quem estiver especialmente interessada em livre-arbítrio, por favor, leia o oitavo capítulo de Freedom evolves. Daqui em diante, continuarei a Prisão Liberdade considerando que a existência do nosso livre-arbítrio já foi demonstrada. Antes de encerrarmos essa subseção, porém, quero fazer um comentário pessoal e uma última paráfrase do Dennett.

Durante muitos anos, nas décadas de 1990 e 2000, eu e minha amiga querida Isabel Löfgren, que fez a capa desse livro e de quase todos os meus livros, trabalhamos com usabilidade de websites no Brasil. Usabilidade é basicamente um método para tornar interfaces mais fáceis de usar, que sempre foi importante (um vídeo-cassete precisava ter uma boa usabilidade) mas tornou-se questão de vida e morte a partir do começo do e-commerce: afinal, se em 1988, a consumidora só descobriria que o vídeo-cassete era difícil de usar depois de comprá-lo, em 1999, se o site da livraria online fosse difícil de usar, se a consumidora não encontrasse o livro que procurava ou se não conseguisse pagar, a empresa não fazia a venda. Pessoas que trabalham com programação e design acabam tendo dificuldade em criar sites usáveis justamente por terem familiaridade demais com a interface: simplesmente não conseguem se colocar no lugar de uma velhinha perdida que quase nunca usou a internet. Nosso método, portanto, era ir às próprias velhinhas e descobrir onde estavam tendo dificuldades. E chegamos assim no motivo que me fez contar essa historinha aparentemente não relacionada. Seja por falta de memória ou por vontade de agradar, por confusão ou por insegurança, simplesmente perguntar para as usuárias não funcionava: todas, ou quase todas, diziam que o site era ótimo, fácil, incrível, etc, mesmo se não tivessem conseguido usá-lo para nada. Nosso trabalho era elaborar uma lista de tarefas para as participantes realizarem no site, sentar do lado delas enquanto navegavam e, então, observar nós mesmas onde estavam tendo mais dificuldades. (O lema da nossa empresa era “Observe e aprenderás”.) Depois, tomando café e biscoitos, era fatal: as usuárias que menos tinham conseguido fazer qualquer coisa eram as que mais elogiavam o site: “ah, meu filho, adorei, é muito fácil de usar!”

Então, vocês me perdoem, mas não fiquei anos assistindo pessoas quebrando a cabeça pra achar o “fale conosco” de um site sem nunca conseguir e depois ainda elogiarem que o site era ótimo e fácil, para hoje confiar que participantes de um experimento vão conseguir determinar o milissegundo exato no qual formaram a decisão consciente de mexer o pulso. Uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco: o desse experimento é esperar demais de pessoas tão lentas e falhas, imprecisas e inexatas, quanto todas nós.

Por fim, uma última questão: quem é esse eu que decide mover o braço? Onde ele está fisicamente? O que Dennett argumenta — e eu não conseguiria nem tentar reproduzir sua cadeia de pensamento— é que Libet não demonstrou que a consciência está sempre atrasada em relação aos tais processos decisórios inconscientes, mas sim que o processo decisório consciente requer tempo para acontecer ao longo do espaço do nosso corpo. Todas essas etapas (decidir; olhar o relógio; anotar horário da decisão) não são nem pré, nem pós nada: elas são o próprio processo decisório acontecendo através do tempo e do espaço. Não existe separação entre o-que-eu-faço e quem-eu-sou: sou uma unidade que incorpora ambos. Não existe essa ação mental começada de forma inconsciente e depois percebida pela consciência, onde um Eu externo observa tudo e espera o momento de obter acesso consciente ao que já está acontecendo inconscientemente — como se o processo decisório fosse um trem onde o Eu embarca só depois de já começada a viagem.

Não existe esse eu separado do meu braço que então decide mover o braço: eu sou esse braço que se move.*

[*A 18ª prática do meu livro Atenção., “Desapegar do Eu”, é um desenvolvimento zen-budista dessa perspectiva.]

* * *

Liberdade é ser o leme, não a vela*

[*Essa subseção incorpora alguns trechos da subseção “Não existe liberdade”, da 18ª prática do meu livro Atenção.: “Desapegar do Eu”.]

Já ensinava Spinoza que liberdade não é reagir aos estímulos externos: “só é livre quem é causa de si mesmo”.

A liberdade é muitas vezes entendida como liberdade para realizar nossos desejos, ou seja, para fazermos o que quisermos sem que ninguém nos impeça. Mas de onde vêm esses desejos? Que desejos são esses? Eles nos pertencem? Pertencemos a eles? Somos nossos desejos? Existe esse Eu que deseja?

Talvez essa liberdade que tanto desejamos seja apenas a liberdade da biruta, livre para soprar em direção sudoeste ou noroeste, dependendo desse ou daquele vento, mas sem nunca sair do lugar. Talvez precisemos nos libertar de nossas velhas definições de liberdade. Talvez a verdadeira liberdade seja não uma liberdade para nossos desejos, mas uma liberdade dos nossos desejos. Talvez a verdadeira liberdade seja não a liberdade de descobrir e nos entregar aos desejos que estão dentro de nós (quais são? de onde vieram?), mas sim a liberdade de construir novos desejos e criar quem queremos ser.

Quase sempre, as pessoas que vêm a um encontro chamado As Prisões estão em busca de se libertar de suas prisões e de realizar uma tal “liberdade verdadeira”. Mas como pode haver liberdade verdadeira se não existe nem mesmo um Eu verdadeiro para desfrutar dela? Minha liberdade é tão contingente e tão construída, tão desprovida de essência intrínseca e de existência autônoma, quanto o Eu a quem ela pertence.*

[*A 18ª prática do meu livro Atenção., “Desapegar do Eu”, é justamente sobre essa desconstrução do Eu.]

Se a liberdade é simplesmente podermos realizar esses desejos que pipocam dentro de nós, vindos sabe-se lá de onde, então, a pessoa dita livre não passa de um veleiro à deriva, indo para lá e para lá ao sabor dos elementos. Mas a liberdade não está nas velas ou nas marés: está em não ser refém de nossos apegos e de nossas compulsões, dos ventos que nos sopram ou das correntezas que nos puxam. A verdadeira liberdade é podermos decidir para onde vamos navegar esse barco. A verdadeira liberdade é o leme.

Liberdade não é vermos uma foto impossivelmente deliciosa de carne prensada entre duas fatias de pão, e termos a renda e a disponibilidade de nos deslocar até um restaurante, comprar esse produto e consumi-lo. A verdadeira liberdade é não permitirmos que essa foto, por mais apetitosa que pareça, determine o que vamos fazer de nossa vida; não é adicionarmos mais uma camada de controle (“preciso controlar minha gula!”) em cima do controle que o anúncio já exerce sobre nós (“você merece esse sabor!”) mas simplesmente nos livrarmos do controle do anúncio; não mais autocontrole, menos autocontrole. A gula, a vaidade, a preguiça, se não cedermos a elas, também desaparecem: podemos sentar na estação e não precisamos embarcar em nenhum dos trens que passam.

* * *

Os muros internos e os muros externos

Para muitas de nós, pessoas bem-alimentadas e bem-resolvidas, o maior inimigo da liberdade são os muros externos da prisão: queremos que ninguém nos impeça de viajar livremente, de casar livremente, de escrever livremente. Garantir essas liberdades fundamentais é uma das lutas políticas mais importantes de nosso tempo e de qualquer tempo.

Infelizmente, a maioria das pessoas jamais será limitada pelos muros externos pois já introjetaram muros internos mais poderosos e mais eficazes. Na verdade, na prática, o maior obstáculo para que viajemos livremente, casemos livremente, escrevamos livremente somos nós mesmas, nossos próprios preconceitos e nossas próprias limitações.

Por exemplo, o que mais impede pessoas do mesmo sexo de se casarem livremente é o fato de terem nascido e crescido, viverem e pensarem, em uma sociedade homofóbica em sua raiz, homofóbica em cada um de seus aspectos mais elementares, que representa negativamente pessoas homossexuais em todas as esferas políticas, religiosas, culturais. (Todas crescemos “sabendo” que gostar de pessoas do mesmo sexo é pecado. Então, um dia, sentimos os primeiros desejos homossexuais e descobrimos, para nosso horror, que aquela pessoa tão ruim que todo mundo usa como xingamento…. somos nós!) Em um contexto sociopolítico como esse, a proibição ao casamento homossexual pode ser vista somente como uma redundância do sistema, um quase desnecessário mecanismo de segurança, um distante muro externo para impedir a fuga das poucas radicais incorrigíveis que conseguem vencer o muro interno.

Concretamente, o quê impede uma pessoa adolescente moradora em uma favela de estudar em uma universidade federal? O muro externo é a educação precária que recebeu na escola pública, que não lhe possibilita passar em um vestibular disputado. O muro interno, porém, é que entrar em uma universidade federal não é uma possibilidade concebível em seu horizonte de expectativas. Como não conhece ninguém que estudou em federal, então, “estudar em federal” é algo que não faz parte de seu mundo, é algo que está na categoria “coisas que outras pessoas fazem, mas não eu”, como ir à Lua ou se hospedar no Copacabana Palace. Para ajudar essa criança, não adianta apenas vencermos seus muros externos — lhe ensinarmos os conhecimentos necessários para passar no ENEM — se não vencermos seus muros internos — lhe convencermos que sim, ela pode estudar em uma federal. Ela precisa saber que essa possibilidade está aberta a ela também.

Se não derrubarmos os invisíveis e socialmente aceitos muros internos, a luta política para tentar derrubar o visível e imponente muro externo será irrelevante, praticamente um capricho bem alimentado para que a elite pensante e problematizadora se mantenha ocupada — “toma aí essa militância política pra você brincar”. A luta contra o muro externo é, em larga medida, irrelevante porque, na prática, o muro externo é irrelevante: ele só está lá como símbolo concreto do nosso conformismo, um monumento à nossa mansidão. Contra um povo que derrubou seus muros internos, não mais controlado pela publicidade, não mais refém de suas compulsões, não mais apegado aos seus preconceitos, o muro externo não duraria cinco minutos. Não era o Muro de Berlim que impedia ninguém de nada: era o medo. Quando acabou o medo, o muro caiu na mesma noite.

Liberdade não é se livrar de controles externos: é se livrar dos controles internos, das compulsões desse Eu tão cheio de vontades, e perceber que sempre fomos livres. Se a liberdade não fosse nosso estado natural, não seria necessário gastar tanto dinheiro para nos convencer que xarope de cola com açúcar é gostoso. Infelizmente, muitas das pessoas mais livres e destemidas da Alemanha Oriental foram fuziladas contra o Muro de Berlim. Ser livre pode ser perigoso, mas é sempre melhor do que ser escrava – mesmo que apenas escravas de nós mesmas, escravizadas pelos delírios e pelas compulsões desse Eu que inventamos.

* * *

Liberdade na clausura

Uma vez, perguntaram ao monge beneditino John Main por que ele havia se tornado monge. Ele respondeu que foi por sua vontade de ser totalmente livre.* Os monges foram os primeiros revolucionários e os monastérios, as primeiras utopias. Em todas as sociedades, a maioria das pessoas vive no piloto automático, passivas e inconscientes, aceitando a narrativa hegemônica e jogando pelas regras do jogo, pensando pouco e questionando nada, mais preocupadas com o dia-a-dia cotidiano do que com as grandes questões existenciais e filosóficas. O monge, pelo contrário, é a pessoa que pensou e questionou, que não aceitou a narrativa corrente e recusou as regras do jogo, que escolheu criar uma nova sociedade sob novas regras e adotar um estilo de vida mais deliberado e mais refletido.

[*A anedota de John Main está em seu livro, Meditação Cristã.]

O historiador britânico Edward Gibbon (1737-94) escreve sua obra-prima, Declínio e Queda do Império Romano, para demonstrar a tese radical de que o cristianismo havia sido o maior culpado pelo fim de Roma. E, dentro do movimento cristão, Gibbon considerava o surgimento do monasticismo, por volta do século IV, no Egito, como o seu ponto mais baixo. Todo o seu capítulo 37 é totalmente dedicado a detonar monges e monastérios, esses recém-chegados na história humana, com toda a verve insincera e brilhante de que só ele é capaz. Declínio e Queda do Império Romano é fácil um dos cinco livros mais importantes da minha vida*, eu não poderia recomendá-lo com mais empolgação e ênfase, mas discordo radicalmente do ranço de Gibbon. Para mim, o fenômeno social e religioso do monasticismo é das consequências mais inesperadas e positivas do cristianismo.

mapa de onde ficavam os padres do deserto

[*Ninguém me perguntou, mas os cinco livros mais importantes da minha vida, além de Gibbon, são a Bíblia, a Ilíada, o Cantar de meu Cid e Paraíso Perdido, de Milton.]

Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, encerrando trezentos anos de perseguição e martírio, algumas pessoas consideraram que sua prática religiosa cristã era incompatível com essa nova religião de Estado que surgia, institucionalizada e poderosa, e decidiram simplesmente se internar nos desertos do Egito, sozinhas ou em pequenas comunidades. Essas pessoas, apesar de hoje lembradas como Padres e Madres do Deserto e de serem respeitosamente referidas como “monge” ou “abade”, em sua enorme maioria não eram religiosas ordenadas; não possuíam nenhum treinamento ou formação sacerdotal, teológica, litúrgica; não tinham nenhum apoio ou chancela das instituições cristãs oficiais da época. Eram só pessoas, imbuídas de uma fé profunda e quiçá enlouquecida, que se isolaram do mundo para poder viver mais livremente o tipo de vida que consideravam adequado. Não eram fofas. Não estimulavam visitas. Não tentavam convencer ninguém. Acreditavam com intensidade na força do momento-presente.

padres do deserto

Uma vez, um irmão perguntou a um dos padres: “Padre, caí em tentação! O que faço?” E ele respondeu: “Ué, levanta.” E o irmão: “Eu me levantei, mas caí novamente!” E o Padre aconselhou: “Então, levanta de novo, toda vez!” “Mas até quando?”, perguntou o irmão. “Até você ou aprender a não cair ou ficar confortável no chão.” Em outra ocasião, perguntaram a um dos monges porque tinha vendido sua Bíblia e ele retrucou: “Ora, se não foi esse mesmo livro que me instruiu a vender tudo que eu tinha para dar aos pobres!”*

padres do deserto

[*A primeira história está em A orientação espiritual dos Padres do Deserto, de Anselm Grün, p.53, e a segunda em A sabedoria do deserto: ditos dos Padres do Deserto do século IV, de Thomas Merton, p.41. Ambos os livros são os melhores em catálogo atualmente no Brasil sobre os Padres do Deserto.]

Na Idade Média, os Padres do Deserto foram celebrados; na Renascença, esquecidos; no século XX, recuperados. Um dos responsáveis por sua renovada popularidade é o monge trapista Thomas Merton (1915-68), que escreveu:

“[Os Padres do Deserto] insistiam em permanecer humanos e ‘comuns’. … [F]ugir ao deserto para ser extraordinário é somente carregar o mundo como um padrão implícito de comparação. … Os homens simples que viveram suas vidas até uma idade avançada entre pedras e areia só o fizeram porque haviam ido ao deserto para serem eles mesmos, para viverem seu eu ordinário, e para esquecerem um mundo que os mantinha afastados de si mesmos. … O que ganhamos ao viajar à lua se não formos capazes de cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos? … [D]eixar o mundo é … ajudar a salvá-lo, salvando-se a si mesmo. … Os eremitas cópticos que deixaram o mundo, embora estivessem escapando de um naufrágio, não pretendiam apenas salvar suas vidas. Eles sabiam que eram incapazes de fazer algum bem aos outros enquanto se debatessem no naufrágio. Porém, uma vez que conseguissem colocar os pés em terra firme, as coisas seriam diferentes. Nesse momento eles não apenas teriam o poder, mas a obrigação de trazer todo mundo a salvo atrás deles.”*

[Em A sabedoria do deserto, pp.12, 24-25. Recomendo tudo de Thomas Merton.]

Para mim, trilhando o caminho do zen, os atos, as falas, as histórias dos Padres e Madres do Deserto têm tido um impacto profundo. Diziam os Padres do Deserto que o Santo era uma farpa na carne da História.* Os monastérios também são farpas na carne da civilização, lembretes permanentes e incômodos, por sua própria existência e resistência, que nem todo mundo aceitou a narrativa hegemônica, que nem todo mundo está jogando esse mesmo jogo, que é possível uma outra vida, uma outra condição, uma outra liberdade.

[*A citação está em A montanha no oceano: meditação e compaixão no Budismo e Cristianismo, de Jean Leloup, mas ele não diz a fonte e eu nunca encontrei a frase em nenhuma outra compilação dos Padres do Deserto que li. Leloup é padre grego ortodoxo e o livro fala, entre outras coisas, sobre o hesicasmo, técnicas de meditação dos padres ortodoxos de Monte Atos, na Grécia.]

Samvega é uma palavra em língua páli e também em sânscrito para um sentimento difícil de descreve em português. É uma sensação de, ao mesmo tempo, choque, consternação e urgência: choque, ao perceber a falta de sentido e futilidade da vida como é vivida em nossa sociedade; consternação, ao reconhecer como nos entregamos com tanta cegueira e complacência a esse estilo de vida; e urgência, em buscar uma saída desse ciclo nocivo que agora enxergarmos. Sem samvega, dizia o Buda, não é possível nenhum tipo de mudança pessoal, de autoconhecimento, de autoconstrução. Sem samvega, também não existiriam monges nem monastérios. Sem samvega, eu não estaria escrevendo sobre Prisões e nem você me lendo.

Shantideva, o autor budista que mais me inspirou, agradecia aos seus desafetos, pois lhe ajudavam a cultivar sua samvega. Por outro lado,“[e]logios e louvores me atrapalham e me distraem: / aumentam minha segurança e minha complacência. / Ao me sentir menos insatisfeito e menos deslocado, / diminui minha urgência em percorrer o caminho.”*

[*Guia de estilo de vida do Bodisatva, capítulo 6, estrofe 98. O terceiro e quarto versos são uma tradução adaptada para “sentir menos samvega”.]

Sou escritor. Quem vive de escrever sabe que as palavras não valem nada. Livros, textos, artigos, resenhas, manifestos são perfumaria. O papel aceita tudo. O que conta é o que a gente faz: nossa conduta, nossa postura, nosso exemplo. O que conta é onde colocamos nosso corpo. Minha vida e meu corpo, minha existência e minha carne, são os únicos materiais brutos, verdadeiros, concretos que tenho para fazer arte, para colocar na mesa, para contribuir ao grupo, para apostar na roleta da História. Escolhi viver minha vida em público porque a vida de uma artista deve ser, antes de tudo, uma obra de arte. Desde viver relações não-monogâmicas até abrir a casa para visitas, desde aceitar dinheiro das mecenas até dar gratuidades em meus encontros, desde escrever dedicatórias apócrifas até incluir biografias fictícias em meus livros, nada do que eu faço é natural ou espontâneo: cada um desses gestos é um ato de criação artística deliberado e consciente. O objetivo de tanta evasão de privacidade em meus textos nunca foi me gabar ou convencer alguém de qualquer coisa, mas simplesmente mostrar que era possível viver outra vida, de outro jeito, com outras regras, pensando em cada escolha, com mais consciência, com mais reflexão. Vivi e vivo minha vida em público, o que Deus sabe que é um sacrifício, porque foi a maneira que encontrei de comunicar às ovelhas negras, às pessoas perdidas e insensatas, que elas não estavam sozinhas.

Todas as pessoas que me acompanham, que leem meus textos, que vêm aos meus encontros, estão tomadas por diferentes graus de samvega. Obrigada a todas vocês por estarem comigo nesse caminho. Afinal, ser uma pessoa bem-sucedida em um mundo canalha quase sempre é indicativo de nossa própria canalhice.

* * *

O preço da liberdade

Outro dia, no mercado, eu estava fazendo compras completamente descabelado e eis que encontro uma amiga bem intencionada que, com uma sinceridade digna de mim, me avisou do meu pobre estado e ainda perguntou:

— Como é que você se permite sair de casa assim, Alex?

— Bem, o primeiro passo é sinceramente cagar para a opinião dos outros. A partir do momento que você esteja firme e forte no primeiro passo, os passos seguintes se tomam sozinhos.

Desde então, ela tem estado fria comigo. Oras, a moça não estava nem um pouco errada, mas alguém que tem coragem de dizer o que ela disse não deveria também ter também a coragem de lidar com a humilde resposta? Sinceridade é sempre boa indo; vindo parece que o povo não gosta.

Algumas pessoas não entendem como posso, ao mesmo tempo, dizer que cago para as opiniões dos outros e também viver pedindo opiniões sobre os meus textos. Pra mim, são duas esferas tão distintas que às vezes esqueço a maioria das pessoas não enxerga a fronteira entre elas. Então, explico.

Existe uma separação bem clara entre, por um lado, as pessoas terem opiniões sobre meu cabelo, minha aparência, minhas escolhas, ou seja, sobre elementos da minha vida que só existem em função de mim, e, por outro lado, terem opiniões sobre meus textos, ou seja, sobre obras que só existem e que foram literalmente criadas para que pessoas leitoras como elas os lessem e formassem opiniões sobre eles.

Tenho todo interesse em saber tudo que qualquer pessoa acha sobre meus textos: suas dúvidas e críticas, seus comentários e questionamentos. Não tenho interesse algum em saber nada que nenhuma pessoa acha sobre minha vida e aparência, minhas escolhas e decisões.

* * *

Um outro amigo também bem-intencionado:

— Alex, se você continuar falando tudo o que passa na sua cabeça e fazendo tudo do seu jeito, você nunca vai ser bem-sucedido na vida.

Eu:

— Oras, falar tudo o que passa na minha cabeça e fazer tudo do meu jeito é minha definição de ser bem-sucedido na vida! Mas, afinal, por que você tanto quer ser bem-sucedido?

Ele:

— Você tem cada uma, Alex! Pra eu poder ter independência financeira pra não precisar mais medir minhas palavras ou puxar o saco da chefa, pra poder fazer o que eu quero do jeito que eu quero.

— Bem, eu devo ter pulado uma etapa então, porque eu já vivo assim.

Hora do meu amigo abrir os meus olhos:

— Pô, Alex, às vezes você não tem idéia do efeito que causa nas pessoas. Eu conheço gente que acha esse seu jeito muito inconveniente, te evita, não te chama pras coisas. Isso não te incomoda?

Eu:

— Olha, quando eu era adolescente, eu também tinha esse medo de que ninguém iria gostar de mim. Então, me envolvi em política estudantil e, mesmo sendo gordo, feio e inconveniente, eu consegui ser amado por quase todo mundo, ter entrada em todos os grupinhos rivais e vencer todas as eleições que disputei. Mas, depois, me dei conta que era tudo vaidade sob o sol, como diria um outro amigo meu. De que adiantava puxar o saco e ser legal com tanta gente que não me importava? O que aquelas pessoas me acrescentavam? Um belo dia, eu parei de falar o que as pessoas queriam ouvir e passei a falar o que eu queria dizer. Uma multidão de malas se afastou, é verdade, mas outras pessoas incríveis começaram a se aproximar. E eu me dei conta: se existe tanta gente que vai me amar por eu ser do jeito que eu sou, qual é o sentido de me reprimir pra ser aceito pelas outros? O que eu devo a esses outros, afinal?

Ele:

— Não deve nada. Mas ontem teve festa na casa da Paulinha, sabia?

Meu amigo bem-intencionado não desiste:

— Alex, não existe nada mais adolescente e imaturo do que querer fazer o que se quer na hora que se quer!

Estranhamente, se não me falha a memória da minha adolescência e das pessoas adolescentes que ensinei e ainda ensino, nada mais adolescente que querer ser aceito a todo custo. Naturalmente, indo mais longe, ambas atitudes são francamente adolescentes. Paradoxalmente, eu pergunto: e daí? Ser adolescente é ruim? Toda criança é genial. Somos nós, as pessoas adultas, que perversamente as massacramos até extirparmos cada dose de individualismo e originalidade, para que se moldem ao que mediocremente chamamos de “o mundo”, “a vida”, “as coisas como elas são”, etc. As pessoas mais interessantes que conheci tinham quinze anos de idade. E depois se tornaram adultas chatas e caretas, cheias de filhos e de dívidas, fazendo hora extra e colocando dinheiro no fundo de pensão, misturando Viagra com tônico capilar, Centrum com óleo de peixe. Hoje em dia, minhas amigas de infância me são um eterno alerta contra os horrores da vida adulta. Aos 18 anos, eu era sério e responsável, presidente do grêmio e editor do jornal da escola, não usava drogas e obedecia todas as leis. Aos 48, felizmente, minhas prioridades já estão em ordem faz tempo: leio e escrevo, medito e acolho, tento viver uma vida mais ética, mais compassiva, mais deliberada.

Mas meu amigo ainda tem um trunfo na manga:

— Bem, é muito fácil viver assim se você não tem filhos!

É verdade, tudo na vida é muito mais fácil se você não tem filhos – o que, aliás, é o principal argumento para não ter filhos. Minha vida é fácil? Comparada a do meu amigo, claro que é. Minha vida é fácil porque eu decidi não complicá-la tendo filhos e formando família. Minha vida é fácil porque eu abdiquei das vantagens de ser pai para não ter que sofrer as desvantagens. Minha vida é fácil porque eu, apesar de adorar crianças, não tenho um mini-me pra eu ensinar a gostar de Senhor dos Anéis, mas também não tenho dívidas e hipotecas, não pago escola particular nem curso de inglês. Cada pessoa com suas prioridades.

Por fim, meu amigo balança a cabeça, põe a mão no meu ombro e diz:

— Isso tudo é muito bonito, Alex, e vai dar um bom texto pra você incluir aí nesse Livro das Prisões, mas a triste verdade é que, um dia, você vai pagar o preço.”

Um dia?! Ora, estou pagando o preço hoje. Só eu sei as colegas que alienei, as oportunidades que me negaram, as costas que me viraram. E só eu sei as aventuras que vivi, as mulheres que amei, as amigas que conheci. Pago o preço feliz e ainda sobra troco. Já tracei meu caminho faz tempo: mais vale fracassar fazendo as coisas do meu jeito do que vencer só porque me anulei.

* * *

Conclusão

Nossa própria felicidade individual é vendida de forma quase unânime por nossos pais, por nossa cultura, por nossa publicidade, até por grande parte de nossas filosofias e religiões, como sendo o mais importante objetivo último da vida de qualquer pessoa. Por isso, para muitas de nós, é extremamente difícil perceber que essa felicidade compulsória pode ser uma prisão, e ainda mais difícil conceber que podem existir outros objetivos de vida igualmente válidos.

Uma amiga explicou que, para ela, sua felicidade individual era o critério que utilizava para saber se uma coisa era boa ou não. Por exemplo: “Ajudo ou não a minha amiga? Qual é a opção que me fará uma pessoa mais feliz? Acho que serei mais feliz se ajudá-la, logo ajudá-la é bom.” Do ponto de vista de minha amiga, se excluísse a felicidade como fim último, não teria como saber se uma ação possível a se tomar era boa ou não, ou se as consequências dessa ação eram desejáveis ou não.

A Prisão Felicidade é justamente isso: não é escolhermos a felicidade como o objetivo último de nossas vidas (afinal, todas temos o direito de vivermos em função do que quisermos) mas sim não conseguimos enxergar nenhum outro objetivo último possível para nossas vidas que não seja a nossa própria felicidade individual. Se não existe opção à felicidade, então a felicidade, automaticamente, por definição, é uma prisão.

Buscar a liberdade para ser feliz, colocar nossa felicidade pessoal como medida de sucesso, talvez seja a maior de todas as prisões. Perceber que a felicidade não precisa necessariamente ser nosso fim último nos permite destravar os múltiplos potenciais sentidos de nossa própria vida. Se não vivo para ser feliz, vivo para quê?

* * *

Excurso III

Liberdade de expressão, uma defesa a partir da esquerda

Não é verdade que a esquerda seja contra a liberdade de expressão, mas é verdade que muitas pessoas de esquerda consideram automaticamente que essa seja uma pauta da direita. O objetivo desse pequeno excurso é fazer uma defesa da liberdade de expressão a partir de uma perspectiva de esquerda.

Não tem como falar de politicamente correto sem falar de liberdade de expressão. Dizem que o politicamente correto é inimigo da liberdade de expressão, mas não é verdade. O politicamente correto defende uma verdadeira liberdade de expressão, onde todos os grupos sociais possam ser ouvidos igualmente, ao invés daquele bom e velho uníssono de sempre das pessoas privilegiadas impondo sua voz e defendendo seus privilégios.*

[*O texto inteiro é largamente caudatário, parafraseia livremente e faz amplo uso das ideias e argumentos do professor de comunicação Venício Arthur de Lima, especialmente seu livro Liberdade de expressão vs Liberdade da imprensa: Direito à comunicação e democracia (2010), e duas entrevistas: “É preciso universalizar a liberdade de expressão”, defende o professor Venício Lima, concedida ao site de notícias da UFMG, em 20 de março de 2013, e Liberdade de expressão x liberdade de imprensa. Entrevista especial com Venício Lima, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos, em 16 de junho de 2010. Muito obrigado ao André Pasti, por ter me apresentado ao Venício.]

* * *

Toda expressão é uma ação*

[*Essa subseção é uma paráfrase de vários trechos de There’s no such thing as free speech, and that’s a good thing, too (“Não existe isso de livre expressão, ainda bem”, 1994) de Stanley Fish. Em tempo: Fish é especialista em Paraíso Perdido, um dos meus cinco livros preferidos, e seu livro Surprised by sin: the reader in Paradise Lost, publicado em 1967, talvez seja também um dos meus livros favoritos de crítica literária de todos os tempos. Que privilégio poder ler um grande crítico extraindo novas camadas de sentido do grande poema de um grande artista. É uma aula de literatura, e sou grato por ela.]

Nunca houve, nem poderia haver, uma verdadeira liberdade de expressão. Não somos livres para gritar “fogo” em um teatro lotado, ou qualquer outra fala que possa causar dano imediato.

Um dos principais intelectuais a escrever em defesa do politicamente correto foi o iconoclasta Stanley Fish, ainda em 1994, quando o termo acabava de surgir. Fish argumenta que a primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos protege o direito à livre expressão, desde que seja uma “expressão que não se torne ação”, uma expressão teoricamente separada da esfera da conduta. Ele considera porém que toda expressão, especialmente o chamado “discurso de ódio” contra minorias, seria por definição uma ação, inseparável de consequências concretas no mundo real. Portanto, conclui, “não há nada para a emenda proteger.” Em outras palavras, para Fish, em diferentes graus, todo discurso de ódio seria equivalente a gritar “fogo” em um teatro lotado, apenas com consequências mais ou menos imediatas.

Um famoso juiz norte-americano defendeu a liberdade de expressão dizendo que “a luz do sol é o melhor desinfetante”, ou seja, que deixar que essas opiniões ofensivas sejam ditas acaba expondo-as ao ridículo*, mas, segundo Fish, a História ensina que mesmo as piores ideias, quando entram em circulação, sempre atraem muitos aderentes.

[*Quem disse que “a luz do sol é o melhor desinfetante” foi Louis Brandeis, (1856-1941), juiz da Suprema Corte norte-americana.]

Uma pessoa racista não acorda de manhã e pensa, “hoje vou passar o dia vomitando opiniões racistas odiosas”; ele pensa, “hoje vou mostrar ao mundo a Verdade!” O discurso de ódio, portanto, não é uma anomalia, um deslize cognitivo, um erro corrigível, algo que possa ser diagnosticado e curado, mas sim a verdade de uma visão de mundo que desprezamos. Por isso, para Fish,“a única maneira de lutar contra o discurso de ódio é reconhecê-lo como o discurso do seu inimigo, e o que faz com o discurso do inimigo não é lhe receitar um remédio mas tentar erradicá-lo.”

* * *

A cultura do silêncio

Liberdade de expressão é o direito de expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir e de optar. Em nossa sociedade, ainda colonial e tão desigual, esse direito sempre pertenceu somente às pessoas privilegiadas e foi utilizado para manter a maioria da população proibida de expressar-se de forma autêntica, proibida de ser. Submetidas aos mitos inferiorizantes da cultura hegemônica, essas pessoas silenciadas têm dificuldade de perceber o potencial de sua ação transformadora, de se dar conta de que são seres criadores e recriadores, de fazer a conexão entre o não-dispor da palavra e o sistema de exploração no qual vivem. Para se defender, para se preservar, para sobreviver, acabam finalmente se amuralhando atrás da mudez: por isso, no grande debate nacional, a única voz que se escuta é a das pessoas privilegiadas.

O pedagogo Paulo Freire, de quem tomei emprestadas as palavras acima, chamava isso de a “cultura do silêncio”: “Na cultura do silêncio existir é apenas viver. O corpo segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra, proibido.”*

[*O grande, luminoso Paulo Freire fala de “cultura do silêncio” em vários trabalhos, mas o conceito é articulado com mais detalhes em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (1981), de onde tirei os trechos parafraseados. Seu livro Pedagogia do oprimido (1970) é uma das coisas mais lindas que já foram escritas em qualquer língua. Por favor, leiam.]

* * *

Liberdade de expressão e discurso marginalizado*

[*A subseção “Liberdade de expressão e discurso marginalizado” contém paráfrases de Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill.]

Em seu livro Sobre a Liberdade (1859), o filósofo britânico John Stuart Mill faz uma defesa apaixonada da liberdade de expressão. Afirmando que todo discurso deve ser livre, inclusive os mais radicais, ele acrescenta que aquilo que hoje chamaríamos de “discurso de ódio” é muito mais perigoso quando usado em defesa do status quo, pois desestimula outras pessoas de manifestarem opiniões contrárias (criando assim a cultura do silêncio descrita por Freire), do que quando usado por rebeldes, já marginalizados por definição. Por isso, continua Mill, no interesse da Verdade e da Justiça, se tivermos que reprimir a linguagem violenta de alguém, seria mais importante, digamos, evitar que o status quo religioso ataque as pessoas sem religião do que proteger a (poderosa) religião do (fraco) ateísmo. Mill usa esse exemplo em 1859 e, de certa maneira, ele continua atual.

Vivemos em um mundo onde o discurso religioso está por todos os lados, hegemônico, dominante, não-questionado. As pessoas desejam “vai com Deus” umas às outras sem nunca perguntar se a outra acredita em Deus. (Para recuperar a estranheza disso, imagine se você fosse rotineiramente cumprimentado por pessoas que simplesmente presumem que você torce pro Flamengo, nasceu em Pernambuco ou é de Capricórnio.) Tribunais e escolas que deveriam ser laicos penduram crucifixos e celebram o Natal. Nas revistas da Turma da Mônica, temos um Anjinho e, ocasionalmente, Deus e santos, mas nunca um Golem ou um bodisatva. No Congresso, bancadas religiosas insistem em passar leis cujo fundamento é somente religioso, como se todas as pessoas brasileiras devessem viver sob a tirania da religião de algumas delas.

Apesar disso, ouço frequentes críticas ao exagero e ao radicalismo do discurso… dos ateus militantes.

Mas, sob qualquer métrica possível e mensurável, o discurso religioso é muito mais radical e exagerado, muito mais hegemônico e predominante, do que qualquer coisa que os tais ateus militantes possam conceber. Esse ateísmo-gota-d’água só pode parecer “radical” e “exagerado” em oposição ao oceano-da-religião para quem naturalizou de tal maneira o discurso hegemônico religioso que não consegue mais ver que ele está por todos os lados, violentamente invadindo nossa subjetividade e nos vendendo sua ideologia a cada momento.

A questão não é quem está certo ou errado, se Deus existe ou não, se os ateus militantes estão corretos ou não em suas táticas de luta. A questão é que, como aponta Mill, não faz sentido exigir o silêncio de quem já está na minoria marginalizada, interpelando o discurso hegemônico com todos os riscos inerentes a essa luta tão desigual. Não faz sentido exigir o silêncio de quem já vive na cultura do silêncio.

Alguns homens reclamam que “as feministas são radicais”, mas a pior coisa que fazem as feministas mais radicais é escrever textos; já o machismo mainstream mata milhares de mulheres todo dia, desde que o mundo é mundo.

O discurso subalterno nunca é realmente radical e exagerado, pois ele não tem os meios para tanto: na prática, só o discurso hegemônico pode ser radical e exagerado. Não só isso: o discurso hegemônico é radical e exagerado por definição.

As pessoas que mais mandam são as que se sentem mais acuadas pela “patrulha” de quem não manda nada. O discurso hegemônico age como se estivesse sempre na defensiva: homens reclamam da “histeria das feminazis”; pessoas cis, da agressividade das militantes trans; pessoas brancas, do “vitimismo” do movimento negro, pessoas hétero, da “ditadura gay”. Segundo muitas pessoas privilegiadas (homens, brancas, cis, ricas, etc), as militantes de causas subalternas (movimento negro, LGBT, trans, feministas, indígenas, etc) seriam agressivas, defensivas, estressadas, etc.

Mas é fácil ser uma pessoa calma e tranquila quando se está sentada no topo da pirâmide do privilégio. Quando se possui todas as vantagens, todos os direitos, todas as seguranças. Quando não se é diariamente encoxada no metrô ou revistada pela polícia. Quando suas comunidades não são invadidas ou remanejadas ou inundadas. O maior de todos privilégios é justamente poder viver uma vida calma e tranquila, sem nunca precisar refletir sobre privilégios.

As militantes de causas subalternas quase sempre estão mais estressadas do que as pessoas privilegiadas porque, além de sofrer tudo o que sofrem todas as pessoas subalternas, elas também veem a opressão e a desigualdade, gritam contra elas com todas as suas forças e, para piorar, ainda são chamadas de “estressadas”. Se algum discurso precisa ser protegido, é o dessas pessoas. Se algum discurso não precisa de proteção, é o discurso hegemônico das pessoas privilegiadas, que já tem a seu favor todo o peso institucional da sociedade, da mídia, da igreja, da família.

Uma pessoa homossexual jamais pode ignorar o discurso heteronormativo da nossa sociedade: ele está literalmente por todos os lados, opressivo, inquestionável. Já um dos principais privilégios de quem está no campo hegemônico é poder viver sua vida como se não existisse o contradiscurso às suas opiniões. Para essas pessoas, acostumadas ao privilégio de ser parte da opinião dominante e nunca interpelada, qualquer contradiscurso, mesmo marginalizado e quase impotente, soa ofensivo e intolerável.

Por isso, reclamam tanto do “feminismo radical”, do “racismo reverso” e da “ditadura gay”: seu ideal é a “feminista feminina”, a “negra que sabe o seu lugar”, a “gay dentro do armário”. Não há postura mais privilegiada do que só tolerar o Outro se ele ficar caladinho no seu canto, nunca demonstrando sua alteridade. (Entendo as pessoas privilegiadas defendendo seus privilégios, não entendo a militante negra reclamando das “feminazis”, a ateia se insurgindo contra o “racismo reverso”, a gay incomodada pelas ateias militantes. Falta espelho e falta solidariedade.)

O comportamento paradoxal do discurso-dominante-que-se-pensa-perseguido talvez explique um dos maiores paradoxos da nossa época. Antigamente, eram os grupos minoritários que lutavam com mais afinco pela liberdade de expressão, pois seriam seus maiores beneficiários. Hoje, são eles que exigem leis criminalizando, por exemplo, manifestações de racismo e homofobia. Em resposta, grupos de extrema direita cooptaram para si a defesa da liberdade de expressão e agora exigem seu direito de continuar insultando e ofendendo as minorias que seus pais e avós já ofendiam e insultavam. Isso quer dizer que a liberdade de expressão deixou de ser uma bandeira da esquerda e passou a ser da direita? Quem é de esquerda agora deve ser contra liberdade de expressão? A liberdade de expressão agora pertence ao Bolsonaro?

Stanley Fish responde que esse jogo é e sempre foi político: conceitos abstratos como “liberdade de expressão” não possuem um conteúdo “natural”, mas são preenchidos com o que conseguirmos enfiar neles. “Liberdade de expressão” é somente o nome que damos ao comportamento verbal que serve aos nossos interesses: não é um valor ou um princípio, mas um objetivo político e, se tiver sido capturado por nossos adversários políticos, se torna um obstáculo e precisa ser retomado. Ou, como diria Judith Butler, ressignificado.

* * *

Nós somos o que falamos*

[*A subseção “Nós somos o que falamos” é uma paráfrase de vários trechos de Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (1990) e Discurso de ódio: Uma política do performativo (1997), de Judith Butler.]

Se Stanley Fish afirma que não existe livre expressão, pois toda expressão é indissociável de uma ação, a filósofa Judith Butler argumenta que toda linguagem é performativa, ou seja, não apenas diz, mas também faz, age e constrói. Por isso, afirma, toda linguagem violenta é uma violência.

Até aí Fish concordaria. Entretanto, apesar de reconhecer que a linguagem violenta pode causar danos reais, Butler considera que censurá-la é impossível e contraproducente. “Discurso de ódio” será sempre algo muito difícil de definir e dependente do contexto: a mesma palavra pode ser carinhosa, se trocada entre duas pessoas negras, ou ofensiva, se dita por uma pessoa branca. Portanto, como o discurso de ódio só pode ser rotulado a posteriori, teríamos que delegar ao Estado o poder de defini-lo, às vezes à revelia de suas vítimas. E, por fim, qualquer tentativa de censurar um discurso só faz propagá-lo e torná-lo mais interessante.

Diante disso, Butler propõe que as minorias se aproveitem dessa característica performática do discurso para transformar a realidade através da linguagem e ressignificar as palavras que lhes ofendem — como a comunidade homossexual fez com “queer“.

Para Judith Butler, não existe nem essência masculina nem feminina. Os atributos de gênero não são expressivos, mas performativos e, portanto, esses atributos constituem de fato a identidade que pretendem expressar ou revelar. Em outras palavras, ser homem ou mulher, hétero ou homossexual, não são categorias imanentes, pois não existe uma essência, digamos, masculina que precede a existência do indivíduo do gênero masculino: masculino é quem se comporta de acordo com os padrões de comportamento culturalmente definidos (e forçosamente determinados) como masculinos. Nossa identidade de gênero é construída diariamente, através de nossos atos. Mas não só ela: a performatividade discursiva pode ser usada por qualquer identidade minoritária, tanto para se construir através da fala em um “ato de insurreição”, quanto para ressignificar palavras historicamente carregadas.

“Liberdade”, por exemplo, um conceito tão defendido pelos homens brancos das Revoluções Americana e Francesa, explicitamente excluía as pessoas negras e as mulheres. Palavras encardidas como “liberdade”, “igualdade”, “justiça” não são propriedade de quem as sujou, nem estão tão podres que já não tenham utilidade: elas podem adquirir uma nova inocência, uma nova vida, um novo objetivo. O desafio é forçar essas palavras a abraçar as pessoas que antes excluíam, com a consciência de que esse abraço não será fácil.

A atual polarização política causou uma separação cada vez maior entre a esfera política e a intelectual. Sintomas disso são a incapacidade de questionar nossas próprias convicções políticas e as tentativas de reprimir discursos que machucam e excitam, ameaçam e ofendem. Para Butler, porém, esse esforço de limitar o discurso público refrearia também o impulso político de explorarmos o potencial de insurreição da linguagem.

Ao ser transferida de uma batalha para outra e perder seu teatro de guerra original, a palavra ofensiva (como queer) deixa de ser uma ferramenta de opressão e agora se torna uma arma de resistência. Mas o ato rebelde de usar palavras sem autorização tem um preço: ele coloca em risco o lugarzinho aconchegante que ocupamos dentro da própria língua e destrói a certeza de que nossas palavras sempre vão nos obedecer.

A cada vez que abrimos a boca, estamos vulneráveis e arriscando mal-entendidos. Esse risco e essa vulnerabilidade são inerentes ao processo democrático: nunca sabemos o sentido que outras pessoas vão atribuir a nossas palavras, quais conflitos de interpretação vão surgir, como resolver as diferenças.

Por fim, Judith Butler dá o alerta: a possibilidade de ressignificação das palavras e de uma luta efetiva contra o discurso do ódio vem exatamente do significado aberto e da ambiguidade inerente à nossa fala. Sem essa abertura, avisa ela, não existe a possibilidade de apropriação e ressignificação.

* * *

Qual liberdade de expressão defendemos?*

[*A subseção “Qual liberdade de expressão defendemos?” contém paráfrases de A Ironia da Liberdade de Expressão (1994), de Owen Fiss.]

Um dos problemas do debate sobre liberdade de expressão é se dar sobre premissas diferentes.

Existe uma concepção liberal da liberdade de expressão, definida em termos negativos (liberdade de expressão seria o Estado não tolher a liberdade de expressão de ninguém), tendo o Estado como seu principal potencial antagonista, priorizando a liberdade como valor máximo, e justificada em termos francamente narcisistas: a liberdade de expressão seria importante como meio de autoexpressão e autorrealização individual.

Também existe uma concepção republicana da liberdade de expressão, definida de forma positiva (o Estado seria promotor de um debate público livre e robusto), tendo o Estado como agente responsável por sua promoção e defesa, priorizando a igualdade como valor máximo, e justificada em termos coletivos: a liberdade de expressão seria importante como meio de autodeterminação coletiva de um povo.

Portanto, um debate entre pessoas que defendem duas concepções tão diferentes de liberdade de expressão pode logo se tornar inviável: aquilo que para uma é o maior problema (o Estado se meter, ou o Estado não se meter) para outra é a principal solução.

Mas não é necessário escolher entre liberdade e igualdade.

Na primeira concepção de liberdade de expressão, a voz dos grupos mais fortes naturalmente se sobrepõe à voz dos mais fracos: há liberdade (para algumas pessoas privilegiadas), mas não há igualdade.

Na segunda concepção, ao garantir que a voz de todos os grupos possa ser ouvida igualmente, garante-se assim mais liberdade para todas as pessoas, uma verdadeira liberdade de expressão, uma liberdade através da igualdade.

O professor Venício Lima, especialista em liberdade de expressão, explica: O conceito republicano de liberdade de expressão se baseia nas noções de participação, espaço público e interesse coletivo. É uma liberdade fundamentalmente pública e anti-individualista, construída em conjunto com as outras pessoas no espaço democrático, moldada na participação ativa da gestão da sociedade, possibilitada por mecanismos que fomentem a ampliação dessa participação, associada à ideia de autogoverno. Sem um espaço aberto para a atuação de uma opinião pública realmente livre, a vivência democrática se corrompe. No Brasil, entretanto, nunca tivemos nada parecido. Nossa sociedade é marcada pela exclusão e pela cultura do silêncio, pela ausência de voz de grande parte das pessoas e por uma opinião pública viciada pela ideologia dos meios de comunicação de massa. O conceito liberal de liberdade de expressão, defendido violentamente por esses veículos e preocupado exclusivamente com as liberdades individuais, traz o risco de nunca fazermos a ponte entre a liberdade de expressão individual e a liberdade de expressão pública, de as pessoas privilegiadas continuarem sendo também privilegiadas no acesso aos meios de comunicação.

E conclui o professor Venício: “Há uma tensão entre o privado e o público, e a liberdade republicana é uma tentativa de resolver essa tensão ao supor a liberdade como construção coletiva. Na República, o sujeito é livre na medida em que constrói, junto com os demais, o que é melhor para todos, e não apenas o que é melhor para si.

* * *

Liberdade da imprensa, para quem?

O sujeito da liberdade de expressão é cada pessoa-cidadã individual. Mas quem é o sujeito da liberdade de imprensa? Em 2013, a associação de músicos Procure Saber, formada por artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento, Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Roberto Carlos, se manifestou publicamente em favor da restrição às biografias não-autorizadas. No meio da polêmica que se seguiu, a presidente da associação, Paula Lavigne, apareceu no programa “Saia Justa”, no GNT, e desabafou: “As coisas foram deturpadas na imprensa, e nós fomos acusados de censores de uma maneira desrespeitosa. Ninguém deu espaço na mídia para a gente se explicar.” Gil é ex-ministro da cultura. Caetano tinha coluna fixa no jornal O Globo. Roberto é o dono da palavra “rei”. Será que essas pessoas realmente não tiveram espaço na mídia para se explicar? Uma das reportagens sobre a polêmica informa: “As assessorias de Djavan, Chico Buarque e Gilberto Gil confirmaram seu posicionamento à Folha.” Quantas de nós têm assessorias de imprensa que confirmem nossos posicionamentos à Folha? O jornal O Globo chegou a criar um infográfico especial reunindo as dezenas de artigos publicados pelos artistas da Procure Saber na grande mídia brasileira, editoriais assinados onde temos acesso direto às suas opiniões sobre o tema. E, apesar disso, a presidente da associação, falando em um programa de TV para milhões de pessoas (e não em uma mesa de bar para meia dúzia de amigas próximas), desabafou sua frustração com a falta de espaço na mídia.

Paula Lavigne acertou no diagnóstico da doença — falta de espaço na mídia é um grave problema social — só não acertou quem são as pessoas doentes. Quem sofre desse mal não são eles: somos nós.

Se o Chico falar “imprensa” três vezes diante do espelho, aparece uma coletiva no seu banheiro. Até suas idas à padaria dão pauta. Quando Roberto saiu da Procure Saber, seu comunicado foi reproduzido em todos os grandes veículos de imprensa e ele deu até uma entrevista ao Fantástico. Só uma gigantesca falta de autoconsciência, nascida de um privilégio midiático normatizado há décadas, pode explicar que esses artistas se considerem “sem espaço na mídia”. A pessoa privilegiada nunca vê seu privilégio, o peixe nunca vê a água.

Mas o episódio também é emblemático por outro motivo: a mídia é tão, mas tão poderosa que até Chico, Caetano, Roberto se sentem pequenos e indefesos diante dela.

E nós, que nem temos assessoras de imprensa?

Na guerra entre o “Estado censurador” e “as grandes empresas de mídia defensoras da liberdade de expressão”, as profissionais de imprensa quase sempre servem apenas de bucha de canhão: recebem o salário mais ou menos em dia enquanto reproduzem (sinceramente ou não) a ideologia do andar de cima, levam um passaralho na cara quando ousam praticar a liberdade de expressão que tanto defendem. Em 2010, o editor da revista National Geographic, do grupo Abril, foi demitido por fazer críticas à revista Veja, também do grupo Abril, no Twitter. Para não deixar dúvidas, o redator-chefe da National Geographic confirmou: “Foi demitido por comentário do Twitter com críticas pesadas à revista. A Editora Abril paga o salário dele e tomou a decisão.” Nas eleições de 2014, o colunista Xico Sá foi demitido da Folha de São Paulo por declarar o voto em uma de suas colunas. Pouco depois das eleições, o jornalista João Paulo Cunha se demitiu de O Estado de Minas por ter sido proibido de escrever sobre política em sua coluna. Os exemplos poderiam continuar indefinidamente.

Se a tal liberdade de imprensa não vale nem para profissionais de imprensa, então ela vale para quem? Quem é o sujeito dessa liberdade de imprensa? Não somos nós, o público. Não são as jornalistas. Não são nem as celebridades, aparentemente.

Sobram apenas a meia dúzia de famílias que é dona de quase todos os meios de comunicação em nosso país. A liberdade de imprensa só é realmente garantida aos proprietários da imprensa.*

[*A frase “a liberdade de imprensa só é realmente garantida aos proprietários da imprensa” é do jornalista norte-americano A. J. Liebling.]

* * *

Liberdade de imprensa vs liberdade de expressão

O conceito de liberdade de imprensa surge na Inglaterra do século XVII, muito antes de surgirem os primeiros jornais, como a simples “liberdade de imprimir”. Ou seja, cada cidadão teria o direito de escrever um texto, ir até uma imprensa, ou seja, uma máquina de imprimir, e então imprimir suas palavras para distribuí-las nas ruas. Portanto, nesse momento histórico, a liberdade de imprensa se referia a uma maneira concreta de fazer valer a liberdade de expressão, e o sujeito de ambas era a pessoa-cidadã individual. Ao longo do tempo, a situação se inverteu. A “imprensa” deixou de ser uma máquina que qualquer um poderia alugar por algumas horas para imprimir suas ideias e passou a ser formada por gigantescas empresas, mais poderosas do que muitos países, e concentradas nas mãos de meia dúzia de famílias.

Antes, a liberdade de imprensa era o direito da pessoa individual de amplificar sua voz através de meios impressos. Hoje, é o direito de um punhado de famílias de nos impor sua ideologia e ainda lucrar com isso. E quando o Estado, representante eleito e legítimo das pessoas-cidadãs que não têm voz nessa imprensa, tenta regulamentar a mídia, essas empresas resistem, se enrolam na bandeira e se arrogam em defensoras da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa — como se fossem a mesma coisa.

Mas essa liberdade de imprensa é para quem? A cidadã comum, a pessoa pobre, a moradora da favela, a pessoa homossexual, negra, trans… elas têm liberdade nessa imprensa? Elas têm liberdade de ter suas vozes ouvidas e amplificadas pelo SBT, pelo Estadão, pela CBN? Mesmo jornalistas têm liberdade de expressar suas opiniões nessa imprensa? Ao contrário do que tenta nos vender a grande mídia, liberdade de expressão e liberdade de imprensa não são a mesma coisa. Isso só faria sentido se essa liberdade de imprensa incluísse também o direito à comunicação de cada pessoa, individualmente, de se expressar através de qualquer meio, inclusive dessas grandes e lucrativas empresas. A Suprema Corte norte-americana, surpreendentemente menos conservadora do que a nossa, afirmou em 1969: em questões de liberdade de imprensa, a prioridade é o direito das telespectadoras e das ouvintes, não das empresas de comunicação.

O Estado não é inerentemente mais confiável do que a mídia. O ideal é que um vigie a outra. Mas existe uma grande, enorme diferença entre ambos. O Estado brasileiro é nosso representante legítimo. Temos poder sobre ele. Podemos controlá-lo e influenciá-lo de diversas maneiras, diretas e indiretas. Para isso, elegemos vereadores, deputados, senadores, presidentes, que respondem diretamente a nós. Já as Organizações Globo só respondem à família Marinho. O máximo que podemos fazer é cancelar a assinatura de O Globo, ou trocar de canal da Rede Globo, ou cancelar a TV a cabo da Globosat, ou desligar a rádio Globo, ou não acessar o G1, ou não ver filmes da Globofilmes, ou não comprar CDs da Som Livre. (O pior é que devo ter esquecido algum!)

Uma mídia realmente plural e inclusiva seria mais confiável do que o Estado. Entretanto, melhor um único Estado, mas que responde a nós, do que uma mídia monopolizada que só responde a seis famílias.

* * *

A imprensa é livre, mas quem nos defende dela?

As grandes empresas de mídia não são apenas poderosas: elas também são fundamentalmente diferentes das empresas grandes e poderosas de outros mercados. Além de serem fonte de poder, elas também lutam por ainda mais poder sobre a sociedade, em benefício dos seus interesses e valores políticos, ao mesmo tempo em que rejeitam qualquer tentativa de regulamentação.

No Congresso de 2014, de acordo com o site Donos da Mídia, 48 deputados federais e 20 senadores possuem empresas de mídia, em flagrante violação ao artigo 54 da Constituição. (O nome disso é coronelismo eletrônico.) Se a mídia fosse uma bancada, seria a quarta da Câmara de Deputados, atrás somente de PT (70), PMDB (66) e PSDB (54), e a primeira no Senado, à frente de PMDB (17), PT (13) e PSDB (12). Nas eleições presidenciais de 2014, a grande mídia brasileira não só tinha se constituído abertamente em partido político, como também estava tão à direita que não tinha nenhuma candidatura factível que representasse suas posições. Na prática, as instituições mais próximas das grandes empresas de mídia são os partidos políticos.*

[*A observação de que a mídia se tornou um partido político é de Perseu Abramo, em Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, de 1988, e de lá pra cá, a situação só piorou.]

Ao longo de nossa história, as pessoas privilegiadas tradicionalmente tomaram para si o “ônus” (na verdade, privilégio) de interpretar e articular o interesse público, em nome de um povo que pretensamente não teria capacidades intelectuais ou cultura refinada para tanto. Foram essas pessoas que, em diferentes momentos históricos, foram contra a Abolição e as eleições diretas. São elas que hoje batem no peito para defender sua própria liberdade de expressão de continuar dizendo ao povo silenciado o que esse povo deve pensar, o que deve vestir, em quais partidos votar, quais cervejas deve beber. John Stuart Mill, apesar de muito citado pelos ideólogos das liberdades individuais, afirmava que o maior inimigo da liberdade de expressão era não o Estado mas sim o poder dos costumes e a uniformidade do pensamento.

Hoje, no Brasil, esse poder é exercido por nossa mídia, inconstitucionalmente concentrada e criminosamente monopolizada. Ou, como disse o jornalista Vito Gianotti, as empresas de rádio e televisão

“na verdade não são concessões públicas, são sesmarias que foram doadas a seus donatários, como na época da colônia. São as sesmarias do ar doadas a Roberto Marinho.”

Não é a imprensa que precisa de mais liberdade para se defender do Estado. Somos nós, as pessoas-cidadãs, que precisamos de mais liberdade para nos defendermos da imprensa. Vários países reconhecem, além dos direitos à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, o direito à comunicação, também chamado de direito de antena, ou direito de acesso ao espaço público. Os nomes variam de país em país, mas a definição é similar: “o direito à participação, em condições de igualdade formal e material, na esfera pública mediada pelas comunicações sociais e eletrônicas.”* Ou seja, qualquer pessoa-cidadã ou grupo legalmente organizado teria direito de exprimir suas ideias e mensagens através dos veículos de comunicação de massa, como rádio e televisão. Para tanto, o Estado se obrigaria a garantir a existência de uma imprensa livre e diversa e a impedir a concentração de propriedade nas mãos dos mesmos grupos de mídia. Mais igualdade e, assim, mais liberdade.

[*A definição de direito à comunicação é do Observatório do Direito à Comunicação.]

* * *

O discurso de ódio é silenciador

Vivemos em uma sociedade onde é senso comum, entre outras coisas, que pessoas negras são melhores em esporte e em dança, que mulheres nasceram para a maternidade, que homens gays são hiperssexualizados e vão pro inferno. O problema é que esse discurso do senso comum é discurso de ódio. E tem um profundo impacto negativo na autoestima dos seus alvos: essas pessoas não apenas se sentem menos dispostas a participar do debate público (pois sabem que não têm como participar em pé de igualdade) como, quando participam, suas palavras são menosprezadas: “deixa de ser feminazi”, “você vê racismo em tudo”, “assim já é ditadura gay”, etc. Pior, o discurso hegemônico lhes rouba até a autoridade de dar testemunho sobre suas próprias experiências, como quando um homem tenta convencer uma mulher que cantadas de rua não são ofensivas, ou uma pessoa branca tenta convencer uma negra que sua experiência de ser parada em todas as blitz não é racismo.

O discurso de ódio é silenciador. O discurso de ódio é o pai da cultura do silêncio. Portanto, para que as vítimas do discurso de ódio possam de fato exercer sua liberdade de expressão, é preciso limitar o discurso de ódio que as silencia. Já permitimos que o Estado imponha limites à nossa liberdade de ação para um bem maior, como nas restrições ao porte de armas e na lei seca nas estradas. No caso de limitar o discurso de ódio, o bem maior seria promover a existência de uma sociedade autenticamente democrática, onde a livre expressão das pessoas privilegiadas não silencie ou sufoque a livre expressão das desprivilegiadas.

Não cabe ao Estado decidir quais discursos estão certos e quais estão errados. O que cabe ao Estado é garantir que a livre expressão de todos os grupos sociais tenha chances equivalentes de chegar ao grande público, promovendo assim as condições mínimas de autodeterminação coletiva da sociedade. Como fazer isso?

* * *

Regular a mídia não é censura, é atribuição constitucional*

[*A subseção “Regular a mídia não é censura, é atribuição constitucional” deve muito, inclusivo o título, ao artigo Regulação da mídia não é censura, por Pedro Ekman e Bia Barbosa, publicado no blog da Intervozes em 4 de junho de 2014.]

Em uma sociedade complexa como a nossa, não existe nenhum mercado ou indústria que não seja regulado. Ao regular o mercado de mídia, o Estado não está agindo como censor, mas apenas cumprindo seu papel constitucional. Hoje, a mídia brasileira não tem diversidade nem pluralidade de conteúdo, além de estar concentrada nas mãos de poucas famílias. Em termos de mercado desregulado, somos mais reais do que o rei: até nos Estados Unidos, meca do capitalismo e do livre-mercado, a empresa dona do jornal The New York Times não poderia ser dona de uma estação de rádio nesse estado e um canal de TV não poderia ter acima de um percentual máximo de audiência em uma região, para não exercer poder político demais. Enquanto isso, vivemos em um país que não tolerou que a Colgate dominasse o mercado de pasta de dente e quebrou a Kolynos para criar a Sorriso, mas que considera aceitável que as Organizações Globo tenham jornais impressos, rádios, emissoras de TV, empresas de TV a cabo, portais de internet, produtoras de filme, gravadoras de músicas e mais algumas que, de novo, devo estar esquecendo — porque são muitas.

Trinta anos depois de promulgada nossa constituição, nenhum artigo do capítulo sobre comunicação social foi regulamentado: O artigo 220 diz que não pode haver monopólio (mas uma emissora controla 70% do mercado de TV aberta); o 221 diz que a produção regional independente deve ser estimulada (mas 98% do conteúdo televisivo é produzido no eixo Rio-São Paulo pelas próprias emissoras); e 54 diz que congressistas não podem ser donos de concessionárias de serviço público (mas já vimos que formariam a maior bancada do Senado!) A proibição norte-americana de um jornal impresso também ser dono de uma estação de rádio é de 1934, no começo da Era do Rádio. Enquanto isso, já no século XXI, o Estado brasileiro é acusado de censor ao tentar implementar a Constituição de 1988.

Já disseram que tentar recuperar a reputação erroneamente destruída pela mídia é como tentar juntar as penas de um travesseiro atirado pela janela do último andar de um arranha-céu. Então, uma maneira de o Estado promover mais diversidade e inclusão na mídia é sendo mais agressivo na concessão dos direitos de resposta. Por exemplo, programas televisivos veiculados pela Rede Mulher e TV Record continham tantas ofensas às religiões afrobrasileiras que essas emissoras agora terão que veicular sete dias de programação informativa sobre essas religiões.

Outra maneira é empoderando grupos minoritários. Em seu papel de alocador de recursos, o Estado pode distribuir megafones para amplificar as vozes das pessoas silenciadas. Entretanto, só isso não basta: também cabe ao Estado alocar recursos de modo a tirar megafones das pessoas que estão silenciando outros discursos com seu poder financeiro. Ou, no mínimo, abaixar o volume. Na hora de bibliotecas públicas assinarem periódicos ou de autarquias públicas comprarem espaço publicitário na mídia, por exemplo, uma parte significativa das verbas poderia ser garantida para veículos regionais e minoritários — que, ao contrário da grande mídia, de fato precisam de apoio estatal para sobreviver e adicionar suas vozes ao debate nacional.

Ao tomar essas iniciativas, o Estado não estará censurando nem reprimindo ninguém, somente utilizando seu poder alocador de recursos para garantir que a sociedade brasileira tenha acesso a uma maior diversidade de opiniões e ideias. Essa é a verdadeira liberdade de expressão, universal, coletiva, para todas as pessoas.

* * *

Quem censura quem?

O Estado não necessariamente é o inimigo da liberdade de expressão: pelo contrário, ele pode ser uma fonte de liberdade de expressão, ao promover a robustez do discurso social, tanto ao alocar recursos públicos para aquelas pessoas cujas vozes estavam sendo silenciadas, quanto ao não premiar com recursos públicos o discurso de ódio de quem as silenciava. Ao contrário do que dizem as defensoras das liberdades individuais, quando o Estado simplesmente não interfere, a consequência não é mais liberdade de expressão, e sim menos, pois a voz das elites, o discurso único da ideologia das famílias donas dos meios de comunicação, sufoca e emudece as vozes das minorias. Para garantir uma verdadeira liberdade de expressão a todas as pessoas brasileiras, a função do Estado é promover o debate aberto e integral, assegurando que a pluralidade de vozes da sociedade possa ser ouvida pelo público e garantindo que o alto volume do discurso dos poderosos não silencie a fala das minorias.

Se nossa Constituição garantisse a liberdade de expressão para que Band, Estadão, Jovem Pan, tenham mais liberdade para nos impor suas ideias e ainda lucrar com a venda de publicidade, então já estaria tudo resolvido. Mas, se o objetivo da liberdade de expressão é garantir a existência de um debate público democrático onde todas as vozes possam ser ouvidas, então, não, não está funcionando. Infelizmente, a cada vez que o Estado sinaliza o interesse de refletir essa questão junto com a sociedade e de cumprir seu papel de implementar e regular a Constituição, a grande mídia declara estado de sítio e grita “censura!”, como se qualquer tentativa de refletir o seu papel na sociedade fosse um gesto autoritário. Como se ela mesma, coitadinha, não percebesse o enorme tamanho do seu poder. (Talvez, como os artistas do Procure Saber, até a grande mídia ache que ela não tem espaço na grande mídia!) Para a grande mídia, a liberdade de expressão se tornou um fim em si mesmo. Liberdade de expressão porque sim. Porque é bom. Ponto.

Mas, no Brasil outrofóbico que vivemos, onde as velhas vozes de homens brancos politicamente incorretos continuam obtendo espaço desproporcional em relação às vozes das minorias sobre quem fazem piadas, cabe realmente perguntar: Para que serve essa liberdade de expressão? Para quem serve essa liberdade de expressão? Essa liberdade de expressão está funcionando? É essa liberdade de informação que queremos no futuro?

Na verdade, existe sim uma forte censura no Brasil de hoje, praticada não pelo Estado, ao tentar timidamente discutir um controle social da mídia, mas pela grande imprensa, ao abafar e silenciar a possibilidade desse debate sempre que surge. A quem interessa que a situação continue como está? Só à grande mídia, e a mais ninguém. Uma situação em que a grande mídia tenha o poder de completamente abafar e silenciar qualquer tentativa de discutir ela mesma é a verdadeira antítese da liberdade de expressão. É a prova de que não temos uma verdadeira liberdade de expressão.

* * *

O politicamente correto e a verdadeira liberdade de expressão

As pessoas “politicamente incorretas” que estão se sentindo limitadas em sua fala têm uma certa razão. Foram mesmo. Mas porque sua fala era silenciadora. Nunca existiu nem poderia existir essa liberdade de expressão que pregam como ideal, de poderem falar o que quiserem e fodam-se as consequências. Quer dizer, para eles, para esse grupo humano bem específico, até existiu, mas em detrimento da liberdade de expressão dos grupos que silenciavam, grupos que sempre tiveram que lidar não apenas com as restrições inerentes à fala (ou seja, o risco e a ambiguidade que Butler menciona) mas também com a cultura do silêncio criada pelo discurso de ódio.

Então, voltando à questão inicial, não, o politicamente correto não censura nem ameaça à liberdade de expressão. Pelo contrário, o politicamente correto é a aplicação concreta dos ideais da liberdade de expressão republicana; uma liberdade de expressão mais ampla, mais aberta, mais inclusiva; uma liberdade da expressão que contemple todas as vozes, e não somente aquelas mesmas velhas vozes de sempre.

* * *

Esse texto foi importante pra você?

Se meus textos tiveram impacto em você, se minhas palavras te ajudaram em momentos difíceis, se usa meus argumentos para ganhar discussões, se minhas ideias adicionaram valor à sua vida, por favor, considere fazer uma contribuição do tamanho desse valor. Assim, você estará me dando a possibilidade de criar novos textos, produzir novos argumentos, inventar novas ideias.

Sou artista independente. Não tenho emprego, salário, renda, pai rico. Vivo exclusivamente de escrever esses textos que abriram seus olhos e mudaram sua vida. Dependo da sua generosidade. Se não você que me lê, então quem?

Se você mora no exterior e a taxa de câmbio é favorável, uma das maiores ajudas que pode me dar é depositando uns dólares nos meus cartões-presente da Amazon — preciso ler muitos livros importados para escrever esses textos! Basta visitar os links abaixo, escolher o valor e enviar para eu@alexcastro.com.br:

Espanha: amazon.es/cheques-regalo

EUA: amazon.com/gift-cards

pix: eu@alexcastro.com.br

apoia.se/alexcastro

* * *

Série “As Prisões”

Aqui estão os textos já reescritos, revisados e finalizados em 2023:

  1. Verdade
  2. Religião
  3. Classe
  4. Patriotismo
  5. Respeito
  6. Trabalho
  7. Autossuficiência
  8. Monogamia
  9. Liberdade
  10. Felicidade (em breve)

* * *

O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 19h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São PauloSuplemento PernambucoQuatro Cinco UmRascunho.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

Uma resposta em “Prisão Liberdade”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *