Existe uma gigantesca lacuna na literatura oitocentista brasileira, uma ausência tão grande e tão inesperada que chama atenção: apesar de termos sido a maior economia escravista de todos os tempos, os dramas humanos inerentes à escravidão simplesmente não aparecem na literatura do período.
Foram sim escritas muitas obras, poemas e peças, contos e romances, que encararam de frente os horrores e dramas, os dilemas e os paradoxos de uma monarquia ocidental escravista em pleno século XIX, mas, tanto antes quanto depois da Abolição, essas obras foram sistematicamente desvalorizadas, esquecidas, descanonizadas.
(Em 2005, fui para Nova Orleans fazer Doutorado em Português e Espanhol na Universidade de Tulane — logo na chegada, levei com o Furacão Katrina na cabeça. Em 2011, abandonei o curso e voltei para o Rio de Janeiro, por razões que explico aqui. Minha tese de doutorado, que um dia ainda pretendo desenvolver em um ensaio livre, vai resumida abaixo. Omiti a comparação com a literatura oitocentista cubana, por não ser de interesse para o público brasileiro que não conheceria as obras mencionadas.)
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Introdução
O período entre a abolição da escravatura (1888) e o lançamento de Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, é marcado por uma quase completa ausência da escravidão do discurso intelectual brasileiro, um processo consciente de rasura por parte da elite brasileira no qual a escravidão, como categoria explicativa de Brasil, é substituída por raça e mestiçagem. O novo discurso racista-cientificista legitima negar a contribuição africana ao Brasil; do seu ponto de vista, a própria existência dos afro-brasileiros é o problema nacional: eles seriam a “antítese do progresso” e o país deveria se livrar de sua influência degradante o mais rápido possível. Enquanto as discussões sobre o problema escravo antes de 1888 falavam em liberdade e disciplina, no século XX elas giram em torno de degeneração, alcoolismo, incapacidade mental e imoralidade. Os afro-brasileiros seriam pobres, doentes e incultos não por terem sido explorados por 350 anos e, então, libertados sem nenhuma ajuda financeira ou plano de inserção social: para os intelectuais brasileiros, “doutores de uma nação doente”, a explicação era apenas uma: inferioridade racial.
A literatura serve então como sintoma e reflexo desse processo, através da canonização ou esquecimento de obras que sustentam ou subvertem essa rasura intencional. A aparente ausência de narrativas de escravidão na literatura brasileira — ao contrário da cubana, onde essa presença é forte — pode ser lida como uma das marcas conspícuas dessa rasura. Enquanto a literatura canônica brasileira apresenta uma “ausência ornada” (na expressão de Toni Morrison) de obras que dialoguem diretamente com os dilemas inerentes à escravidão, existe todo um corpus subterrâneo, esquecido há mais de um século, de romances, contos, folhetins e peças teatrais que ousaram problematizar a instituição que nossa elite chamava “sua grande vergonha nacional”.
Durante o século XIX, no Brasil, a literatura contou tanto com obras açucaradas e alienadas, que não problematizaram a realidade nacional, quanto com obras combativas e incômodas sobre as grandes questões de seu tempo: posteriormente, entretanto, para ficar apenas na obra de Joaquim Manoel de Macedo, canonizou-se A Moreninha (1844) e não As Vítimas-Algozes (1869). Em Cuba, também existiram os dois tipos de obras literárias: a produção combativa, sobre a escravidão, era subterrânea e subversiva, circulava em manuscrito, era lida em voz alta em reuniões clandestinas e era, quando possível, somente publicada no exterior; já os romances açucarados e alienados publicavam-se com grande sucesso e muitos leitores na imprensa de amenidades. Seu processo de canonização, entretanto, foi radicalmente oposto ao brasileiro: os primeiros, em grande parte inéditos em sua época, formam hoje o centro do cânone literário oitocentista cubano; os segundos, apesar do sucesso contemporâneo que gozaram, são hoje somente notas de pé de páginas nos manuais de literatura.
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Uma ausência marcada, ornada, planejada
O Brasil foi a última nação independente ocidental a abolir a escravidão, em 1888. Por toda sua história colonial e nacional, a escravidão definiu o caráter da cultura, da economia e da civilização brasileira de modo geral. Ao longo do século XIX, o debate sobre a escravidão dominou a vida política e cultural do país. No Parlamento, nos editoriais, nas ruas, discutia-se tanto a necessidade econômica da escravidão quanto suas justificativas morais. Surpreendentemente, o debate não se refletiu na literatura. Se entendermos “romance sobre a escravidão” como um romance que apresente a escravidão como seu tema principal, em primeiro plano, seja para atacá-la ou defendê-la, então fica claro que a literatura brasileira canônica do século XIX não conta com nenhum exemplar desse gênero. Para fins de comparação, outras duas nações escravistas contemporâneas envolvidas em debate semelhante produziram romances memoráveis sobre a escravidão, como A Cabana do Pai Tomás, Huckleberry Finn e a noveleta Benito Cereno, nos Estados Unidos, e Sab e Cecília Valdés, em Cuba. No Brasil, entretanto, apesar de algumas peças de teatro e poesias, nenhum romance canônico explorou os dramas humanos intrínsecos à escravidão. Apesar de a escravidão ser quase onipresente, especialmente na capital do Império, a maior produtora de cultura do país, os escravizados são quase invisíveis na literatura canônica brasileira do século XIX.
No ensaio “Coisas indizíveis não-ditas”, disponível no livro A fonte da autoestima, a romancista Toni Morrison, ganhadora do Nobel de Literatura e autora de Amada, ataca a ausência da escravidão da literatura norte-americana. Suas observações se aplicam perfeitamente também à literatura brasileira, onde a ausência da escravidão é ainda mais dramática. O invisível não está necessariamente ausente, escreve Morrison; uma lacuna pode estar vazia mas não é um vácuo. Certas ausências são tão enfatizadas, tão ornamentadas, tão planejadas, que chamam a atenção. A grande pergunta não é nem porque o negro está ausente da literatura mas, muito mais interessante, que malabarismos intelectual tiveram que ser feitos para excluir da literatura uma instituição (a escravidão) e um ator (o negro) tão fundamentais para a sociedade onde essa literatura foi produzida. Como foi realizado esse desaparecimento intencional? Como ele afetou o resultado final? Em meados do século XIX, no auge da escravidão e do debate abolicionista, escreve Morrison, autores norte-americanos (e brasileiros) escolheram produzir romances românticos. Onde, nesses livros, está a sombra dessa presença da qual o texto fugiu? Qual é o efeito dessa fuga? Será o texto sabotado por suas próprias proclamações de universalidade? Não existirão presenças-fantasma nesses textos, distorcendo suas intenções e fazendo-os funcionar de maneira diferente? Por fim, Morrison conclui:
“Nota-se uma ausência enorme, artificial e imposta, nos primórdios da literatura americana, e eu defendo que essa ausência é instrutiva. Só aparentemente o cânone da literatura americana é “natural” e “inevitavelmente” “branco”. Na verdade, ele o é cuidadosamente.” (11-15)
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Escravidão nas ficções de fundação
Na América Latina, a literatura foi uma importante ferramenta de auto-afirmação da identidade nacional. Tentando construir uma nova mitologia para seus nascentes estados nacionais, os autores do século XIX produziram um novo tipo de romance. Românticos, açucarados e simplistas, esses romances apresentavam uma versão idealizada da vida local e se alinhavam aos interesses ideológicos das elites nacionais que se consolidavam no pós-independência: são as ficções de fundação.
A maioria das ficções de fundação foi escrita como literatura de aventura ou romântica, histórias folhetinestas e escapistas vendidas como entretenimento. Estavam essencialmente ligadas ao projeto de construção nacional sendo realizado pelas elites locais e, dentro disso, possuíam um complexo significado simbólico, social e político. Não por acaso, essas ficções nacionais épicas foram muitas vezes entronizadas nos cânones literários nacionais completamente à revelia de seu limitado valor artístico.
Naturalmente, qualquer crítica à realidade, qualquer debate sobre projetos alternativos de construção nacional, está proeminente e necessariamente ausente das ficções de fundação. Uma das principais características desse tipo de romance é seu projeto pacificador:
A coerência [dos romances fundacionais] deriva do projeto comum de construir reconciliações e amálgamas de grupos nacionais, representados nas obras como amantes, destinados a desejar um ao outro. Isso produz uma forma narrativa surpreendentemente consistente que parece ser adequada a uma série de posições políticas; que são guiadas pela lógica do amor.” (Sommer)
Não se quer dizer, naturalmente, que não tenham existido romances contemporâneos com uma visão mais crítica da realidade. Somente que, como esse tipo de debate não interessava ao projeto pacificador da elite cultural, tais romances não entraram no cânone e tenderam ao esquecimento gradual. Úrsula, por exemplo, romance de Maria Firmino dos Reis, apesar de não ser um romance sobre a escravidão, mostra escravizados com mais humanidade e autonomia do que qualquer romance canônico contemporâneo: depois de mais de um século de completo esquecimento, só nos últimos anos o livro vem sendo reabilitado, lido e estudado.
No Brasil particularmente, os escritores fundacionais escolheram idealizar o índio como o paradigma do perfeito brasileiro. O branco ainda era por demais associado ao português, em oposição a quem a jovem nação recém-independente queria se definir. O negro, considerado inferior e onipresente, era fundamental à vida cotidiana e, talvez por isso, não se prestava a uma idealização épica: sua figura era por demais doméstica. Sobrava o índio, que havia sido convenientemente exterminado, era invisível na cultura brasileira e totalmente ausente da rotina diária da capital. Por não existir um índio cotidiano para comparação, o índio idealizado seria até mais verossímil. Começa a ficar mais claro, portanto, por que a ficção de um país que se definia escravista simplesmente jamais enfrenta abertamente a escravidão.
Escolher o escravizado como figura central da literatura já significaria colocar em discussão as próprias fundações da sociedade escravista. Não por acaso, outros temas potencialmente polêmicos e antitéticos ao projeto de pacificação nacional também foram cuidadosamente evitados: violência, trabalho, pobreza. Mesmo quando representavam figuras subalternas, como o índio, esses romances o faziam somente para silenciá-los e moldá-los de acordo com os valores da classe senhorial branca — que eram, afinal, os autores e leitores destas obras.
“O romance do século XIX oferece um autorretrato da sociedade onde foi escrito e lido, reproduzindo, na representação literária, as barreiras hierárquicas que caracterizavam a realidade social. Não gerou nenhuma forma de transgressão.” (Roberto Reis, The Pearl Necklace, 50-52)
A questão do trabalho nunca está completamente dissociada da escravidão. Essa literatura mostra sobretudo um mundo iluminado por saraus, teatros e namoros, onde o trabalho produtivo praticamente inexistia. (27) Ou melhor, existia, mas era realizado por escravizados e homens pobres livres, personagens que o romance canônico brasileiro preferiu não mostrar. Na estrutura narrativa, o escravizado era apenas figurante, contribuindo na aproximação romântica dos protagonistas brancos, servindo alimentos e bebidas, até mesmo servindo de válvula de escape para os dissabores amorosos do senhor: ajudava a compor o ambiente onde se desenrolava a ação, ao lado de móveis, roupas, carruagens e utensílios. (46) Nem mesmo nos poucos romances canônicos que mostram a vida das camadas mais pobres, como Memórias de Um Sargento de Mílicias, o escravizado existe literariamente: é como se naquele momento não existisse trabalho escravo. (52) Não por acaso, o escravizado só é mostrado ou mencionado quando está realizando algum serviço, e depois some da trama. Só interessa seu status de ferramenta, não sua humanidade: quando não está servindo os brancos é como se não mais existisse. (Faces da Personagem Escrava, Marília Conforto)
Ao negar a contribuição africana na construção da identidade nacional, a literatura nada mais fez do que conceder a essas populações o mesmo status que possuíam no mundo real, ou seja, meros instrumentos de trabalho: “o que surpreende o leitor contemporâneo é que, mesmo sendo de fundamental importância para a economia brasileira desde o período colonial, em nível literário a personagem escrava teve um outro tratamento.” (105) (Faces da Personagem Escrava, Marília Conforto)
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Escravidão na literatura não-canônica
Apesar de a escravidão, enquanto tema problematizado, estar conspicuamente ausente do cânone literário oitocentista brasileiro, o tema foi abordado, direta ou indiretamente, por uma série de romances que, por motivos políticos ou literários, não se canonizaram. Em alguns casos, como As Vítimas-Algozes (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, canonizou-se parte da obra do autor, mas não as obras que denunciavam a escravidão. Em outro caso, toda a produção de um autor então canônico, Antonio Gonçalves Teixeira e Souza, foi esquecida, levando com ela os seus romances sobre temas escravistas, como Maria ou A Menina Roubada (1853). Finalmente, obras de autores subalternos, como Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, mulher, negra e provinciana, nunca são canonizados e caem no esquecimento assim que são escritos, somente sendo recuperados em nossa época. O mais importante, talvez, é a confirmação de que, apesar do que o cânone pareça mostrar, houve obras literárias brasileiras que ousaram abordar e problematizar a escravidão.
Temas relativos à raça e à escravidão não foram de modo algum preponderante ou popular na literatura do Império. A mulata era estigmatizada como um ser eminentemente sexual, mesmo que à sua revelia (como em A Escrava Isaura, 1875, de Bernardo Guimarães), o negro raramente era retratado como possuidor das mais altas emoções humanas (como em A Cachoeira de Paulo Afonso, 1871, de Castro Alves) e, mesmo assim, nunca lhe era dada voz própria; e o escravizado, apesar de presença indispensável na vida econômica do país, era visto apenas como força de trabalho, como um figurante nas sombras da trama, nunca como ser humano, nunca como protagonista. Apesar de alguns poucos personagens escravizados cuja presença no enredo parece problematizar a escravidão (como Raimundo, em Iaiá Garcia, 1878, de Machado de Assis), nenhum romance brasileiro tomou para si esse tema ou se propôs a abordar os dilemas humanos intrínsecos e exclusivos ao sistema escravista.
A exceção aparente seria o já citado A Escrava Isaura, que apesar de narrar uma situação somente possível durante a escravatura (o cativeiro de uma bela moça branca), apresenta-se, enquanto romance, interessado apenas no destino dessa personagem e completamente alheio ao destino dos outros escravizados que, com a exceção de uma mulata, não são jamais nem mesmo nomeados.
Entretanto, ao contrário do que apontam as leituras do cânone citadas acima, não é verdade que a literatura brasileira do Império não tenha problematizado diretamente a escravidão. Durante o século XIX, no Brasil, foram escritos romances, contos e peças teatrais que de fato ousaram abordar esse tema tão incômodo, mas essas obras acabaram em larga medida não-canonizadas, esquecidas, nunca reeditadas ou relegadas a curiosidades de pé de página nos manuais literários. Por baixa qualidade? Por incômodo político? Ambos? Nenhum?
O romance As Vítimas-Algozes: Quadros da Escravidão (1869), de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882), é um dos poucos romances brasileiros escritos especificamente para denunciar os males da escravidão: é composto por três novelas independentes, cada uma sobre um escravo diferente. Posteriormente, cada personagem consolidou-se em estereótipos raciais que persistem até hoje, entre eles: a “mulata lasciva” que corrompe o lar do branco, o “negro alcoólatra e violento” que leva o desassossego aos cidadãos de bem, o “preto velho feiticeiro” que infesta a sociedade de crendices e impede o “avanço das luzes, o “negro servil e traiçoeiro”, o “mulato indolente”, etc.
Na primeira novela, Simeão é criado como um filho pela família branca, sem precisar trabalhar e recebendo até mesada mas, ingrato e vingativo por não receber a liberdade, acaba invadindo a casa com um bando de criminosos e assassina seus benfeitores com requintes de crueldade. Pai Raiol, na segunda, é um feiticeiro africano que convence uma escrava da casa a envenenar a patroa, seus filhos, casar com o patrão e, finalmente, matá-lo também. Por fim, Lucinda, uma mucama, corrompe as delicadas sensibilidades morais de sua sinházinha, cometendo horrores como ensinar-lhe sobre a menstruação e estimular-lhe a ser mais namoradeira.
O grande objetivo de Macedo era mostrar como a escravidão é prejudicial ao branco pois, ao animalizar o negro, cria o próprio bicho peçonhento que vai picá-lo. Ao mesmo tempo anti-escravidão e anti-escravo, o personagem cativo de Macedo é perverso, sexual, ciumento, intenso, mas, ironicamente, nos parece mais vivo e mais humano do que os personagens brancos, sempre perfeitos, bem-comportados e rasos. Em As Vítimas-Algozes, convivem duas escolas literárias: os brancos vivem em um bem comportado romance romântico, enquanto os escravos parecem existir em um intenso romance naturalista, como se A Moreninha fosse visitar O Cortiço.
Macedo é um dos nomes mais canônicos da literatura brasileira oitocentista, constantemente citado como autor do primeiro romance brasileiro, A Moreninha (1844), amplamente considerado como um dos pais fundadores (quando não o fundador) da literatura romântica no Brasil, e autor também de outros romances românticos que, assim como A Moreninha, foram canonizados e longamente ensinados em escolas, muitos até hoje, como O Moço Loiro (1845). Entretanto, enquanto seus romances mais descartáveis e açucarados foram canonizados como perfeitos representantes do nosso romantismo em prosa, As Vítimas-Algozes foi, nas palavras de Ubiratan Machado “o livro mais atacado pela crítica durante o período romântico”. A má recepção do livro se dá no contexto de uma guinada na carreira de Macedo, quando ele passa a produzir romances mais incômodos, problematizando aspectos da vida cotidiana, como a prostituição em Mazelas da Atualidade (1865), e começa a ser visto como um autor imoral e quase pornográfico: os outros livros dessa segunda fase também não se canonizam, chegando até nós somente a imagem do Macedo romântico da primeira fase. As Vítimas-Algozes, depois de uma tímida segunda edição quase trinta anos depois, é esquecido por um século, até ser resgatado por Flora Sussekind, que lança uma edição crítica em 1991. Finalmente, como parte de uma política consciente de valorizar temas negros, sua adoção no vestibular da Universidade Federal da Bahia motiva a publicação de uma quarta edição, em 2005, por uma pequena editora gaúcha.
Enquanto isso, A Moreninha, um romance alienado onde o negro escravo somente aparece como figurante e força de trabalho, nunca saiu de catálogo, teve incontáveis reedições por dezenas de editoras e ainda é saudado (erroneamente) como o marco inaugural do romance brasileiro. Enquanto A Moreninha reafirma o confortador projeto de formação nacional da burguesia brasileira, As Vítimas-Algozes revela justamente a grande fratura interna desse projeto: depois de sua recepção polêmica, o livro nunca cessou de ser controverso — ainda que somente pelos poucos críticos que se ocuparam dele. Toller Gomes (1988) o considera uma aberração por sua visão distorcida e preconceituosa do negro; Sayers (1956) classifica o livro de doentio; Conforto (2001) analisa em detalhes o discurso do livro e sua novidade em relação ao discurso vigente mas, ao longo de doze páginas, se abstém cuidadosamente de qualquer valoração, seja positiva ou negativa, o que por si só é digno de nota; finalmente, Conceição (2006) compara o livro de Macedo a’O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (2002), do escritor angolano José Eduardo Agualusa, e também à ações recentes da organização criminosa PCC, em São Paulo, teorizando que os marginais de hoje, assim como os escravos de Macedo, são ao mesmo tempo vítimas e algozes da sociedade que os vitimou.
Existiram pelo menos outros dois romances românticos que, ao contrário de As Vítimas-Algozes, não tinham como objetivo problematizar a escravidão ou abordar seus dilemas intrínsecos mas que, ainda assim, em oposição flagrante ao cânone, apresentam protagonistas escravos, com mais humanidade, iniciativa e autonomia do que qualquer personagem negro canônico. Maria ou A Menina Roubada, de Antonio Gonçalves Teixeira e Souza (1812-1961), saiu na imprensa em forma de folhetim entre 1852 e 1853, sendo então publicado em forma de livro. A história é simples: uma menina branca é sequestrada por uma feiticeira negra e seu escravo, que planejam pedir resgate por ela. Quando o pai da criança oferece uma recompensa pela filha, um outro escravo decide resgatá-la. Por trás das inúmeras e inverossímeis peripécias desse romance de aventuras, talvez o fato mais importante seja que protagonistas e antagonistas são negros e escravos, demonstrando mais heroísmo e vilania, iniciativa e humanidade, do que em qualquer outro romance canônico. Muitos críticos literários consideram Teixeira e Souza (e não Joaquim Manuel de Macedo) autor do primeiro romance brasileiro, O Filho do Pescador (1843). Entretanto, todos esses também fazem questão de enfatizar as deficiências criativas e estilísticas do autor. Na época, porém, os romances de Teixeira e Souza eram bastante conceituados e vendiam bem, pelo menos até o final do século XIX. Maria ou A Menina Roubada aparentemente fez tanto sucesso que foi novamente serializado na imprensa, entre 1859 e 1860, saindo uma 2ª edição corrigida, em forma de livro, no último ano. Nunca mais foi reeditado. Teixeira de Souza, assim como Machado de Assis, era mulato (filho de pai português e mãe negra livre) e foi aprendiz na tipografia de Paula Brito, que apoiou sua carreira. O primeiro crítico a vê-lo de forma extremamente negativa é Silvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira, não por acaso publicada em 1888. A Abolição marca não apenas o período de rasura da escravidão no pensamento brasileiro, mas também o início do esquecimento desse autor mulato, pioneiro e best-seller em sua época, Teixeira e Souza. (Hebe Cristina da Silva, “A Circulação de Romances de Teixeira e Souza: Best-Sellers do Século XIX?”)
Por fim, o romance Úrsula, também escrito por uma afro-brasileira, Maria Firmina dos Reis, longe da Corte, no Maranhão, em 1859. Aparentemente, trata-se de um romance romântico folhetinesco como tantos, repleto de peripécias aventurescas e centrado na paixão de um belo casal de brancos, perseguidos pelo malvado tio do rapaz. Entretanto, boa parte dos personagens secundários são negros escravos: nem os monstros bestializados de Macedo e nem os heróis e vilões de Teixeira e Souza, nem os hiper-românticos de Castro Alves e nem os figurantes mudos e rasos de grande parte da literatura canônica, mas somente pessoas surpreendentemente normais, negros pela primeira vez vistos de um ponto de vista interno, por uma perspectiva afro-descendente. Somente por isso, Úrsula já seria revolucionário comparado aos outros romances do cânone, ainda que não aborde a escravidão ou seus dilemas como seu tema principal. Escrita por um autor triplamente subalterno, mulher, negra e provinciana, Úrsula tinha poucas chances de ser canonizado. Depois de sua primeira publicação, sem merecer menções dos críticos e historiadores literários da época, Úrsula some, sendo redescoberto somente em 1975, e reeditado em 1988 e 2004. (Eduardo de Assis Duarte, “Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira”.)
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Escravidão no teatro
Mais do que na literatura em prosa, entretanto, foi no teatro brasileiro, entre as décadas de 1850 e 1860, que a escravidão tornou-se um dos principais temas. Quando decai o estilo dramático neoclássico, popularizado pelo ator João Caetano e caracterizado por performances melodramáticas, dois novos gêneros, muitas vezes indistinguíveis, dominam os palcos brasileiros. Os dramas românticos, muitas vezes em prosa e ainda excessivamente exagerados e melodramáticos, preocupavam-se mais com questões de formação da identidade nacional, frequentemente enfocando momentos-chave da história brasileira. Por sua ênfase na união da nação e superação de conflitos, essas peças raramente abordavam de frente temas polêmicos como a escravidão: que se saiba, somente um drama romântico o fez, Sangue Limpo (1861), de Paulo Eiró. Outros dramas históricos românticos, apesar de não abordarem o tema diretamente, também continham personagens negros escravos que problematizavam a questão: Calabar (1858), de Agrário de Menezes e Gonzaga ou A Revolução de Minas (1867), do canônico Castro Alves. A escola realista, entretanto, seguiu um outro paradigma, com montagens mais comedidas, trocando situações violentas e sentimentalismo por uma objetividade descritiva, abandonando o olhar para o passado e tentando reproduzir a realidade e os costumes contemporâneos — um “daguerreótipo moral”, na expressão de José de Alencar. Rejeitando a “arte pela arte” romântica, esses autores se confessavam utilitaristas e moralistas: o objetivo de suas peças seria a regeneração da sociedade tendo por base os valores éticos da nascente burguesia urbana, denunciando males como prostituição, adultério, o jogo, o casamento por influência, a usura, a agiotagem. Finalmente, talvez o maior e mais persistentemente mal social denunciado pelo engajado teatro realista tenha sido a escravidão.
Sangue Limpo (1861), de Paulo Eiró (disponível na Antologia do teatro romântico) é talvez a única peça romântica a abordar diretamente o tema da escravidão, assim como a substituir a poesia usual pela prosa. Em resposta a um concurso do Conservatório Dramático Paulista destinado a premiar o melhor drama original sobre algum dos “gloriosos episódios da nossa história”, Eiró, ao invés de escrever o panegírico patriota que se esperava, decidiu abordar os temas espinhosos da escravidão e da miscigenação, tendo como pano de fundo a proclamação da Independência. Sangue Limpo não apenas não ganhou o concurso como foi muito mal recebida, mergulhando o autor numa depressão profunda e fazendo-o desistir da literatura. Acabou sendo publicada a sua revelia, por amigos, em 1863, sendo somente reeditada em uma edição do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, em 1940. A história é simples: uma mulata, filha de um sargento negro e livre, se apaixona por um branco rico, contra as vontades dos pais de ambos. A grande novidade da peça é a presença de uma família de negros livres, honrados e dignos — assim como os personagens de Maria Firmina dos Reis, nem bestializados nem idealizados. A escravidão entra no deus ex machina na trama, quando um escravo revoltado mata o pai do rapaz, deixando-o livre para casar com a amada, mesmo que contra os desejos do pai dela.
A peça realista História de uma Moça Rica (1861), de Francisco Pinheiro Guimarães, merece ser considerada em detalhes, apesar de não ser especificamente sobre escravidão, mas por ser uma das peças mais ambiciosas e bem-sucedidas do período: não contente em atacar somente um alvo, o moralismo burguês do autor investe contra os casamentos de conveniência, o adultério, a prostituição e, finalmente, sobre as relações sexuais entre patrões e escravas permitidas pela “vergonhosa instituição”. A escrava mulata Bráulia, precursora de tantas mulatas perversas e sensuais, seduz o marido de sua dona, vira-o contra ela, torna sua situação insustentável até que a sinhá foge e, então, amanceba-se com o senhor — posteriormente, a peça nos informa que ela ainda o envenena. A mensagem de Pinheiro Guimarães é a mesma que Macedo também tentaria transmitir pouco depois, com As Vítimas-Algozes: escravos dentro de casa, em proximidade com o senhor, sendo seres perversos e sem moral, eram um perigo constante aos brancos. De acordo com Faria (1993), História de uma Moça Rica foi uma das peças mais bem-sucedidas na época, sendo publicada em livro no mesmo ano e recebendo fartos elogios de escritores como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e Quintino Bocaiúva. O impacto aparentemente foi grande: cinquenta anos depois de sua estréia, Escragnolle Dória ainda se recorda de uma dama da sociedade dizer que nunca mais teve mucamas em casa: “Depois que vi A Moça Rica, nunca mais me passam pela porta!” (Citado em Mendes.) Ainda assim, tanto a peça quanto o autor caíram em esquecimento: sua reedição seguinte foi somente em 1937, como parte de um grosso volume publicado privadamente pelo neto do autor, reunindo sua obra ficcional e ensaística.
Por fim, a escravidão e seus dilemas são o tema centra de duas peças mais famosas e bem-sucedidas da época, O Demônio Familiar (1857) e Mãe (1860), ambas de José de Alencar, um dos autores mais canônicos da literatura brasileira. Por isso, essas peças não apenas ditam o tom que o teatro realista vai seguir e enfatizam o fator moralizante dessa escola, como também mostram que mesmo um autor historicamente ligado à escravidão, como Alencar, não fugia ao tema. Entretanto, suas críticas não são nunca aos aspectos estruturais, sociais, políticos ou econômicos da escravidão, mas aos operacionais.
Em O Demônio Familiar, temos um moleque, Pedro, escravo de casa, presumivelmente adolescente: ao se intrometer na vida dos moradores de sua família, algumas vezes por malícia, outras por descuido, Pedro causa uma série de confusões e mal-entendidos, finalmente solucionados somente ao final da peça. Por fim, para puni-lo por sua irresponsabilidade, o senhor lhe dá a liberdade, para que agora seja imputável por seus próprios atos. Precursor de História de Uma Moça Rica e As Vítimas-Algozes, o grande alvo da crítica moralizante de O Demônio Familiar são os efeitos perniciosos da escravidão doméstica para a família branca. A escravidão, em si, não parece ser um problema: pelo contrário, é a liberdade que é mostrada não apenas como um castigo, mas como algo que se concede, nunca como uma condição inerente do ser humano — pelo menos, não do ser humano negro.
Em Mãe, uma escrava idosa é secretamente a mãe e protetora do seu senhor, Jorge. Para poder ajudar financeiramente o futuro sogro, Jorge hipoteca a escrava e termina vendendo-a, dando origem a uma das frases mais bombásticas e famosas do teatro dessa era:
“Desgraçado! Tu vendeste tua mãe!”
Quando o segredo é revelado, o próprio sogro, apesar das ajudas que Jorge lhe prestara, admite, aparentemente a contragosto, que o casamento não poderia acontecer:
“Sinto muito, porém… O senhor compreende, a minha posição… As considerações sociais…”
Uma vez mais, entretanto, o foco da crítica de Alencar não parece ser a escravidão como instituição, mas a “facilidade operacional” que ela fornece aos adúlteros e fornicadores. Ao contrário das outras peças aqui citadas, tanto Mãe quanto O Demônio Familiar contaram com diversas reedições ao longo dos anos e foram amplamente estudadas pela crítica. (Miriam Garcia Mendes, A Personagem Negra no Teatro Brasileiro.)
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A rasura da escravidão
Poucos anos após a abolição da escravatura, o processo consciente de sua rasura parece estar encaminhado entre a intelligentsia brasileira. Nos primeiros anos da República, Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, queima grandes quantidades de documentos relativos à escravidão, promovendo até mesmo um Auto-de-Fé no quinto aniversário da Lei Áurea, onde dois vagões de documentos são queimados em praça pública ao som da banda da polícia de Salvador. As razões alegadas por Rui eram duas: em primeiro lugar, evitar futuras demandas de indenização por parte de senhores de escravizados e, também, evitar que os arquivos fossem usados para
“envergonhar certos brasileiros com a nódoa da escravidão”.
Um editorial de 1890 , comentando a queima dos documentos, se refere à história da escravidão como “misérias inenaerráveis daqueles tempos de barbarismo”, tempos de barbarismo, nota-se, ocorridos meros dois anos antes. No mesmo ano, o poeta Medeiros e Albuquerque compõe o Hino da República, do qual fazem parte os seguintes versos:
“Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país”.
Não é por acaso que a reabilitação de um pintor como Debret só acontece na Era Vargas: suas representações da crueldade contra escravizados eram insuportavelmente impalatáveis antes disso. Ainda em 1901, um intelectual erudito como José Vieira Fazenda defendia não apenas a queima dos documentos referentes à escravidão, mas também das gravuras que a representavam, usando como exemplo uma estampa de Rugendas mostrando um negro sendo flagelado no pelourinho:
“É uma estampa que horroriza, devia ser destruída como o foram os papéis e documentos que se referiam aos tristes e escandalosos fatos da escravidão no Brasil.”
Valentim Magalhães, um dos literatos mais influentes de finais do século XIX, editor de A Semana e futuro patrono da Academia Brasileira de Letras, publica em 1885 um livro de contos entitulado Vinte Contos. Uma das melhores e mais controversas histórias do livro é “Praça de Escravos”, onde Magalhães pinta um quadro ao mesmo tempo realista, engraçado e monstruoso de como funcionava o antigo mercado de escravos do Valongo. Em 1895, porém, a segunda edição do livro já não apresenta esse conto. Diz a introdução:
“Julgou este [autor], e com ele concordamos [os editores], excluir dessa edição o conto Praça de Escravos, que tão profunda impressão produzira, e substituí-lo por outro, por entendê-lo inteiramente descabido na época atual, em que nem quase memória felizmente resta daquelas cenas atrozes e vergonhosas.”
O novo discurso racista-cientificista legitima negar a contribuição africana ao Brasil; do seu ponto de vista, a própria existência dos afro-brasileiros é o problema nacional: eles seriam a “antítese do progresso” e o país deveria se livrar de sua influência degradante o mais rápido possível. Enquanto as discussões sobre o problema escravo antes de 1888 falavam em liberdade e disciplina, no século XX elas giram em torno de degeneração, alcoolismo, incapacidade mental e imoralidade. Os afro-brasileiros seriam pobres, doentes e incultos não por terem sido explorados por 350 anos e, então, libertados sem nenhuma ajuda financeira ou plano de inserção social: para os intelectuais brasileiros, “doutores de uma nação doente”, a explicação era apenas uma: inferioridade racial.
Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala (1933), finalmente supera o discurso do racismo cientificista que então imperava e traz a escravidão de volta ao centro explicativo do Brasil. Entretanto, muitas das narrativas oitocentistas da escravidão continuam esquecidas ou vão sendo reeditadas somente muito recentemente, como Úrsula e As Vítimas-Algozes.
Joaquim Nabuco é parte integrante desse processo de rasura, como ator e como sintoma. Em 1881, expatriado em Londres depois de perder as eleições, Nabuco escreve O Abolicionismo, talvez a mais radical e abrangente tentativa de se entender o Brasil que se fez no século XIX. Pela primeira vez, procura-se analisar a nação sob o prisma da escravidão, não como um acidente histórico, mas como um dos fatores constitutivos e centrais da brasilidade.
Quinze anos mais tarde, desempregado e sem causa para lutar, em época de relativo ócio, Nabuco embarca em seu projeto mais ambicioso: escrever uma biografia política do pai, tendo como pano de fundo a História do Império, biografia mais tarde publicada como Um Estadista do Império, em 1897. Um dos principais resultados do livro é construir o Império como uma Era de Ouro, imagem que ressoa até hoje em nossa cultura, criando uma certa “nostalgia imperial“. A grande ausência, entretanto, desse novo livro do autor de O Abolicionismo e antigo campeão abolicionista, é justamente a escravidão como categoria explicativa.
Finalmente, em 1900, Nabuco publica sua autobiografia (ou, como diz Ricardo Salles, autobiografia-currículo), Minha Formação: se em Um Estadista do Império, ele cria uma Era de Ouro repleta de heróis e semi-deuses, agora, ele mesmo se insere no panteão que criou, um elemento de continuidade entre aquela época nostálgica e os dias republicanos de hoje. Em uma época de profunda crise em sua vida, sem ter sustento garantido, tendo perdido seus dois grandes projetos políticos (a monarquia e a abolição), só resta a Nabuco olhar para trás, se construir como um grande estadista do passado e também, por que não, vender-se como um possível estadista do futuro. Para o Nabuco de Minha Formação, aceitar a república significava também abdicar, ou esquecer, da sua antiga luta, pela expansão e ampliação da cidadania, pela continuação do trabalho do abolicionismo até desaparecerem os efeitos residuais da escravidão. Desaparecida a escravidão, a sociedade se reorganiza com base em uma hierarquia informal que mantém, entretanto, as mesmas distâncias de casta do regime anterior. Na falta da dicotomia senhores e escravos, a cor passa a ser um dos principais fatores de exclusão social: sai de cena o escravo e entre o negro.
Se a escravidão some do discurso de Nabuco a medida em que ele envelhece e se torna mais conservador, seu maior mérito é não substituí-la, como tantos fizeram, pela raça como chave explicativa para as mazelas do país. Nabuco, precursor de Freyre, considera que o brasileiro não tinha preconceitos raciais: uma vez eliminada a escravidão, raça não seria mais um problema. É justamente sua recusa de usar raça como categoria explicativa e sua opinião de que a escravidão era central para o entendimento a sociedade brasileira que inocularam Nabuco contra as idéias racistas e cientificistas da época.
Em Minha Formação, lemos uma voz melancólica e fora de lugar que busca constituir para si um passado nostálgico e saudoso, que procura se inserir como participante na época de ouro que ela mesma criou. Se em O Abolicionismo era a luta presente que constituía o motor da existência, em Minha Formação o autor volta-se para seu passado intelectual, deixa suas lutas de fora, e constrói um cenário idílico em meio à paisagem que outrora ele mesmo tanto criticou. Na sua maturidade, o feroz abolicionista volta ao engenho.
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Conclusão
Enquanto a escravidão pouco aparece como tema principal na literatura canônica brasileira, várias obras literárias, entre contos, romances e peças de teatro, ativamente problematizaram a escravidão. Essas obras, entretanto, muitas das quais alcançaram sucesso ou foram alvo de fortes polêmicas em sua época, não foram canonizadas e gradualmente se esqueceram, deixando a literatura canônica brasileira conspicuamente livre de um tema tão polêmico em sua época.
Como contraponto ao Brasil, Cuba passa por um processo semelhante, mas inverso: durante o século XIX, Cuba também produziu obras literárias que problematizaram a escravidão, mas enquanto no Brasil essas obras se publicaram e, depois, se esqueceram, em Cuba essas obras não se publicaram, graças a censura, mas depois tornaram-se parte integrante do atual cânone da literatura cubana. As obras que de fato se publicaram em Cuba mostram as estratégias e despistes que os autores precisaram utilizar para publicar literatura em um ambiente tão politicamente opressivo, condenando as obras que abordavam a escravidão a uma existência subversiva da qual somente a posteridade as resgataria.
Depois da Abolição, no Brasil, intelectuais embarcam num projeto nacional de rasura da escravidão e branqueamento, exemplificado pela trajetória intelectual de Joaquim Nabuco, que em 1880 descreve a escravidão como principal nexo explicativo do Brasil e, em 1900, escreve uma história do Império que praticamente deixa a escravidão de fora. Nabuco não é o único: em uma época de popularidade de um pensamento racista-cientificista, intelectuais passam a explicar os problemas do Brasil apelando não mais para os males da escravidão, mas para os males da presença negra. Romances, contos, gravuras, sobre a escravidão tornam-se incômodos aos projeto nacional de branqueamento e começam a ser sutilmente esquecidos. Durante esse período, sob essa ideologia, grande parte das obras literárias brasileiras sobre escravidão do século XIX é descanonizada, realizando-se na literatura o branqueamento que se desejava para a nação.
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Obras citadas
Conceição, Francisco Matheus. “As Ações do PCC: Vítimas-Algozes?” in Revista Espaço Acadêmico, no.62, julho de 2006.
Conforto, Marília. Faces da Personagem Escrava. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2001.
Duarte, Eduardo de Assis. “Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira“.
Magalhães, Valentim. Vinte Contos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1895.
Mendes, Miriam Garcia. A Personagem Negra no Teatro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1982.
Morrison, Toni. “Coisas indizíveis não-ditas: A presença afro-americana na literatura americana”, em A fonte da autoestima: ensaios, discursos, reflexões. SP: Cia das Letras, 2020.
Reis, Roberto. The Pearl Necklace. Toward an Archeology of Brazilian Transition Discourse. Gainesville: University of Florida Press, 1998.
Sayers, Raymond. The Negro in Brazilian Literature. New York: Hispanic Institute in the United States, 1956.
Silva, Hebe Cristina da. “A Circulação de Romances de Teixeira e Souza: Best-Sellers do Século XIX?” in 1º Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, Rio de Janeiro, Casa Rui Barbosa, 8 a 11 de novembro de 2004.
Sommer, Doris. Ficções de Fundação, os romances nacionais da América Latina. BH: Ed. UFMG, 2004.
Toller Gomes, Heloísa . O Negro e o Romantismo Brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Escravistas & escravizados, do meu curso A Grande Conversa, a ideia de Brasil na literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 1º de abril de 2021 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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A ausência da escravidão na literatura brasileira é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 23 de abril de 2021, disponível na URL: alexcastro.com.br/ausencia-escravidao-literatura-brasileira // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato