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Como sobreviveram as tragédias gregas

É difícil exagerar por quão pouco não perdemos todas as tragédias gregas. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa)

É difícil exagerar por quão pouco não perdemos todas as tragédias gregas.

Por volta do ano 200 EC, um professor bizantino fez uma coletânea de 24 tragédias gregas: sete de Ésquilo, inclusive as três da Orestéia; sete de Sófocles; e dez de Euripides, inclusive As bacantes. Essa coletânea fez sucesso e foi copiada e recopiada. Graças a ela, hoje temos acesso a Ésquilo e a Sófocles: desses autores, as únicas obras que sobreviveram foram essas sete escolhidas.

Em História Antiga, tudo é suposição. Supomos que foi por volta do ano 200 porque, antes disso ainda havia muitas citações a tragédias fora desse grupo. Depois dessa data, progressivamente só se citam essas peças escolhidas. Supomos que foi uma coletânea selecionada por um único autor porque a seleção parece não ter sido motivada nem por qualidade literária nem por popularidade, mas por serem peças dos ciclos de Laio e de Atreu. Supomos que foi por um professor, para o ensino (de grego? de retórica?) porque era normalmente o que justificava essas seleções.

Além dessas 24 tragédias, temos nove outras peças de Euripides que sobreviveram em um único manuscrito, onde estão somente suas peças cujos títulos começavam com as letras épsilon, eta, iota, kappa — ou seja, de E a K. (Supomos que faziam parte de uma “obra completa” do dramaturgo, ordenada alfabeticamente.)

E é só. Ésquilo escreveu um total de 73 peças: nos sobraram sete. Sófocles, 123 e temos também sete. Euripides, pelo menos 92, e tivemos sorte: podemos ler dezenove. Outras centenas de dramaturgos, muitos deles famosos e celebrados, não chegaram até nós.

Os manuscritos em si nos trazem muitas informações. Uma maior quantidade de manuscritos sobreviventes nos indica quais peças eram mais populares. Édipo Rei, de Sófocles, era presumivelmente a mais popular: sobrevive em mais de duzentos manuscritos. Além disso, quanto mais manuscritos, mais podemos compará-los: a lacuna de um pode ser preenchida com o verso de outro; uma variação que só acontece em um único manuscrito deve ser espúria, etc. Comparando manuscritos, podemos construir o melhor texto possível, presumivelmente mais fiel ao original.

Quase sempre, os manuscritos trazem textos surpreendentemente uniformes, o que nos leva a confiar até mesmo nos textos que chegaram até nós em um único manuscrito. Os antigos levavam esse trabalho a sério, benditos sejam.

Infelizmente, quando só nos resta um único manuscrito, muitas vezes há lacunas. A peça central da Orestéia, por exemplo, As coéforas, chegou a nós em um único manuscrito, sem as primeiras linhas.

Das peças que leremos, outra que tem uma história textual complicada é As bacantes. Apesar de estar na coletânea de peças selecionadas e de ser uma das mais populares da antiguidade, era fisicamente o último texto do manuscrito, ou seja, estava no lugar mais vulnerável para sofrer toda sorte de acidentes, cortes, manchas, etc.

Não existe mais nenhum manuscrito com o texto completo de As bacantes. Temos um manuscrito bem conservado, com o texto completo até o verso 755, e o outro bem danificado, com duas lacunas perto do final, somando mais de cinqüenta linhas. Felizmente, por ser popular, era muito mencionada e referenciada em outras obras. Alguns dos trechos citados não estão em nenhum dos nossos dois manuscritos, então, supomos que pertencem à uma das duas lacunas. Mas qual lacuna? Em qual ordem?

Por isso, hoje, nenhuma edição de As bacantes é igual. Dependendo das premissas estabelecidas pela equipe de tradução, edição e organização, esses trechos podem ser inseridos de diferentes maneiras, ou até mesmo excluídos.

Para quem tem curiosidade específica sobre esse processo, minha melhor sugestão é o livro Surviving Greek Tragedy (2004), de Robert Garland, que narra o fascinante processo através do qual as peças gregas ou se perderam ou sobreviveram, e como foram reorganizadas. Também recomendo The lost plays of Greek Tragedy, em dois volumes, que apresenta tudo o que restou (trechos, enredos, etc) de todas as tragédias que sabemos que existiram. Por fim, a edição de As bacantes da editora Hackett, organizada por Cecelia Eaton Luschnig, explica em todos os detalhes as decisões textuais necessárias para reconstruir o texto: Electra, Phoenician Women, Bacchae, Iphigenia at Aulis (2011).

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Como sobreviveram as tragédias gregas é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 21 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/como-sobreviveram-tragedias-gregas // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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