Para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, estamos lendo o Livro do Gênese. Já escrevi sobre os autores do Gênese, seu contexto histórico, etc: leia todos os textos sobre o Gênese. Abaixo, algumas notas esparsas sobre diversos episódios.
A criação do universo
O primeiro dos relatos da Criação, na verdade, chama atenção por não ser mítico. Teogonias de outras culturas antigas quase sempre mostram o mundo começando em poderosas batalhas entre deuses ancestrais, mas aqui não temos nada disso. Só um único Deus, todo poderoso, que ordena o caos por força de sua vontade verbalmente articulada.
Há indícios de que, originalmente, havia outros mitos de criação israelitas mais convencionais, que teriam sido excluídos do Gênese, mas que deixaram rastros aqui e ali, em outros livros hoje canonizados na Bíblia, indicando que houve uma outra criação do mundo, mais violenta e mais conflituosa do que a do Gênese: Salmos 74, 12-17; 89, 9-10, e Isaías 51, 9-10.
Por exemplo, em Gen 1, 20-23, Deus cria os grandes monstros marinhos (“cetáceos” na Bíblia do Peregrino, “grandes serpentes do mar”, na Bíblia de Jerusalém, “great sea monsters” na HarperCollins e Oxford) mas, na reprimenda que dá a Jó, Deus menciona ter conquistado esses monstros (Jó 38-40). Qual é a “verdade” então? Deus os criou ou os conquistou? A diferença é grande. (Fox, 22; Bloom 28-30)
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A primeira de todas as coisas sagradas não é uma pessoa ou um objeto: é um dia, é o sábado, o dia santo semanal, onde não se pode trabalhar nem realizar qualquer atividade produtiva. Na época, esse foi um conceito revolucionário. Que se saiba, nenhum outro povo tinha o conceito de um dia semanal de descanso obrigatório. Sobre o Shabat, recomendo esse belíssimo texto do meu rabino preferido Abraham Joshua Heschel:
“A primeira coisa em toda a criação que foi santificada é o sábado – não uma pessoa ou um lugar, mas um dia. Tudo o mais na criação é declarado bom, mas este dia, o sétimo dia, é declarado santo. O Sabbath, então, torna-se um “palácio no tempo”, ao qual somos convidados. O convite é para nos afastarmos da “tirania das coisas do espaço” para “compartilhar do que é eterno no tempo; para deixarmos de lado os resultados da criação e considerarmos o mistério da criação.”
Mas não é preciso acreditar em Deus para manter o Shabat. Podemos escolher tirar um Shabat semanal de nossas distrações, de nossos celulares, das redes sociais, de qualquer coisa que nos suga. E não precisamos dedicar o Shabat a Deus, mas podemos escolher dedicá-lo a nós mesmas, a nossas famílias ou a nossas leituras, ao esporte ou à arte, até mesmo ao nosso sono. Ao que quer que seja importante para nós. Aliás, o que é importante para nós?
(Referências: O Livro de J, de Harold Bloom, O Schabat: seu significado para o homem moderno, de Abraham Joshua Heschel, e Bíblia, Verdade e Ficção, de Robin Lane Fox.)
Eva e Adão
Nossa leitura da sétima aula, Paraíso Perdido, de John Milton, é um reboot, uma refilmagem, um fanfic da história de Adão e Eva. Vale a pena marcar esse texto para consultar depois, enquanto estivermos lendo.
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A Árvore da Vida é um elemento comum em várias mitologias do Oriente Médio, mas a novidade do Gênese é a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Na prática, quando Deus fala que comer do fruto dessa árvore traz a pena de morte, ele não está ameaçando, mas apenas afirmando como funciona a realidade. Adquirir o conhecimento sobre o bem e o mal também significa adquirir conhecimento sobre a vida e sobre a morte; deixar de ser uma pessoa ingênua para ser alguém que conhece o drama da existência e a finitude da vida. (Bloom 178)
O cristianismo posterior chama a expulsão de Adão e Eva do Paraíso de “A Queda” ou “Pecado Original”, etc, mas tanto a palavra “queda” quanto “pecado” nunca aparecem no texto. Se não quisermos utilizar termos tão bombásticos, poderíamos dizer apenas que ambos “caíram na real” sobre as verdadeiras condições da existência humana. Ou seja, adquiriram consciência, amadureceram, deixaram de ser crianças. Não seria uma “queda”, mas simplesmente a superação necessária da infância, pela qual todas nós passamos, como espécie, como sociedade, como indivíduo. (Collins 92)
Assim como o Gênese nunca diz que a serpente é Satã (essa tradição surge muito depois), ela também não é mostrada como malévola ou mentirosa. O que ela oferece é justamente o conhecimento da distinção entre o bem e o mal, um conhecimento que faz amadurecer, um conhecimento que expande a consciência, um conhecimento que Deus forneceu aos anjos mas sonegou aos homens. O conhecimento do bem e do mal, na verdade, é tudo. É um autoconhecimento quase angélico de tão poderoso: é conhecer os limites da própria liberdade, da própria existência. Sim, conhecer a si mesmo é se saber nu, mas não necessariamente sentir vergonha por isso. Abrir os próprios olhos significa enxergar, tudo, ao mesmo tempo, inclusive nós mesmos, inclusive como os outros nos enxergam. (Todos esses voltarão como temas principais de Paraíso Perdido.) (Bloom, 182-3)
Qual foi a grande transgressão de Adão e Eva que justifica a enormidade de seu castigo? Só desobediência? Talvez tenha sido tentar se aproximar da essência de Deus, transigir a fronteira entre o humano e o divino. Ao comer da Árvore do Conhecimento, tinham ganho consciência. Se comessem também da Árvore da Vida, ganhariam vida eterna. São expulsos do Paraíso, portanto, para não se tornarem deuses. (Fox, 24)
Se conhecer a si mesmo não é, e não poderia ser um crime, qual foi o grande pecado? Desobedecer. Deus exige obediência total. Se pensarmos em Satã, o que ele faz para merecer se tornar o símbolo do mal? Fundamentalmente, nada. Ele só se recusa a obedecer. (O episódio de Abraão e Isaac reforça essa leitura.) (Bloom 184)
Adão e Eva são expulsos do Paraíso por comer da Árvore do Conhecimento e a primeira coisa que fazem ao sair (Gen, 4, 1) é justamente… se conhecer! (Na época, “conhecer” era um eufemismo para “fazer sexo”. Algumas traduções trocam o verbo “conhecer” por se “unir”, o que quebra um pouco a ironia do original.) Por causa desse sexo súbito e imediato, Agostinho de Hipona teoriza que o fruto da árvore era afrodisíaco. E, de fato, para muitas pessoas, o conhecimento é um afrodisíaco. Com certeza, foi para Adão e Eva. E acaba funcionando como um comentário ao próprio texto. Teoricamente, no Paraíso, Adão e Eva nunca tinham transado: o conhecimento sexual, o conhecimento do sexo, é assim um de tantos conhecimentos que adquirem ao comer da Árvore do Conhecimento. (Fox, 25)
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Quando Deus fala inicialmente com Adão, ele usa um termo genérico para “ser humano” e só começa a chamá-lo de “homem” depois da criação de Eva. Por isso, pode-se especular que Adão, na verdade, a princípio, era andrógino ou hermafrodita, homem e mulher simultaneamente. Então, anteriormente, quando Deus lhe deu a Terra, portanto, ela não teria sido dado ao “homem” (que ainda não era) mas à humanidade, que representa. Da mesma maneira, Eva, ao ser criada, não é de modo algum inferior a ele, mas está em condições iguais. (A inferioridade feminina em relação ao homem só seria decretada por Deus depois de Eva comer o fruto.) Nesse sentido, a subjugação da mulher ao homem é uma aberração: o homem também se corrompe ao aceitar dominar alguém que é seu igual. (Landmann, 29, 32)
Algumas leituras mais tradicionais veem Eva como desobediente, cabeça oca, responsável pelos males da humanidade, etc. Por outro lado, é possível considerá-la o Prometeu israelita. Assim como Prometeu desafia os deuses gregos para trazer o fogo à humanidade (nos transformando assim de bestas em pessoas), Eva também realiza o primeiro pensamento, a primeira ação independente, adquire um conhecimento existencial fundamental (que também é o que nos distingue das feras) e paga o preço por isso, perdendo a imortalidade e ganhando as dores do parto. Eva é quem toma todas as iniciativas, quem tem todos os desejos estéticos, intelectuais, físicos: ela vai, faz, toma, acontece. Adão é apenas “o seu marido que estava com ela”, que come passivamente a fruta que ela lhe dá:
“A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus.” (Gen 3, 6)
Todas nós, em algum momento de nosso amadurecimento, fizemos como Eva: escolhemos comer da Árvore do Conhecimento, aprendemos as verdades duras da vida, e, assim, abandonamos o estágio imaturo e ingênuo da infância para nos tornarmos pessoas adultas pensantes. Eva é a primeira livre-pensadora. Nessa leitura, a ordem de Deus para que Eva se submeta à Adão faz com que ambos pareçam dois homens assustados pelo potencial libertário e subversivo da mulher que pensa e que age. (Collins 92-94)
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom; Bíblia, Verdade e Ficção, de Robin Lane Fox; The Bible after Babel, Historical criticism in a postmodern age, de John J. Collins; Sexo e Judaísmo, de Jayme Landmann.)
Caim
Caim é famoso por ser o primeiro assassino, mas talvez devesse ser mais famoso por ter sido o primeiro nascimento. Assim que saem do Paraíso, Adam e Eva fazem sexo e, em breve, nasce Caim, o primeiro ser vivo não criado diretamente por Deus. Na Bíblia de Jerusalém, Eva afirma: “Adquiri um homem com a ajuda de Iahweh”, mas outra possível interpretação leva a frase para um outro lado: “Criei um homem, assim como Deus”, uma afirmativa empoderadora da primeira mãe. (Bloom 187)
Caim torna-se agricultor (ou seja, toma para si a maldição que o pai recebe, de tirar alimento do solo com o suor do rosto) e Abel, pastor. Quando fazem oferendas a Deus, Caim faz uma oferenda, digamos, pacifista, que não causa a morte de nenhum ser, frutos da terra — vale lembrar que, nessa época, teoricamente, ainda valia a proibição a comer carne, que só será revogada depois do dilúvio — enquanto Abel oferece um animal morto. Mais ainda, Caim é o primogênito. Apesar disso, Deus rejeita a oferenda de Caim, por motivos que nunca são ditos e não ficam aparentes. (Caim não é mostrado como mau: apenas como ressentido.) Deus pergunta a Caim onde está Abel (não é onisciente?) e Abel responde também como se não soubesse que Deus é onisciente. (Uma teoria possível é que para o autor javista, que narra esse trecho, seu Deus antropomorfizado simplemente não seja onisciente.) Depois, o próprio solo que Caim trabalhava torna-se testemunha contra ele, e o força ao nomadismo — ou seja, ele é condenado a viver sem estar ligado ao solo, por ter sido denunciado pelo próprio solo. Por fim, ele torna-se basicamente o criador da cultura, pois funda a primeira cidade, e seus descendentes inventam o pastoreio, a música, a metalurgia. E fica uma dúvida: o texto quer sugerir que essas coisas são todas implicitamente más, por terem sido criadas pelo primeiro homicida, ou, pelo contrário, que até de um ato homicida podem surgir boas conseqüências? (Bloom 188)
No final do Gênese, essa é uma de suas últimas mensagens, talvez a mais importante, quando José assegura a seus irmãos que os perdoa pois
“… foi para preservar vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós. Há dois anos, com efeito, que a fome se instalou na terra e ainda haverá cinco anos sem semeadura e sem colheita. Deus me enviou adiante de vós para assegurar a permanência de vossa raça na terra e salvar vossas vidas para uma grande libertação. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas Deus, e ele me estabeleceu como pai para o Faraó, como senhor de toda a sua casa, como governador de todas as regiões do Egito.” (Gen 45, 5-8)
No conselho de Deus a Caim, a primeira menção à pecado, que é como um demônio interno, à espreita, mas que pode ser dominado:
“Por que estás irritado e por que teu rosto está abatido? Se estivesses bem disposto, não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” (Gen, 4, 6-7)
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O pecado de Satã é, antes de tudo, a desobediência. Milton, em Paraíso Perdido, fez dele o rebelde ficcional mais famoso da literatura. Mas o rebelde verdadeiro mais famoso da literatura, com certeza, é Lord Byron, que foi, em vida, o homem mais famoso da Europa. Sua obra e, mais importante, sua vida, deram origem ao arquétipo do “herói byroniano”, um homem de ação, cínico, inteligente, forte, engraçado, violento, atormentado. Os leitores imediatamente presumiram que esse “heroi byroniano” que aparece em poemas como “O Corsário”, “Lara” “Giaour”, etc, era o próprio poeta. De certo modo, era. Mas também era o homem que ele queria ser, se não fosse tão coxo, tão gordinho, tão preguiçoso, e também o homem que ele desejava amar, mas nunca encontrou – se satisfazia com jovens efebos por toda a Europa. Não há dúvida que, antes de tudo, a obra-prima de Byron é sua vida (recomendo qualquer volume de cartas selecionadas) e, em segundo lugar, o maravilhoso, monumental poema épico-pícaro-satírico Don Juan. Mas, com certeza, de suas obras curtas, a minha preferida é Caim, um mistério, um drama em três atos, dramatizando o assassinato de Abel por Caim, o primeiro crime da humanidade.
De certa maneira, o que Byron faz é mais uma continuação de Paraíso Perdido do que do Gênese: a Bíblia nunca nos conta o que causa o crime de Caim, mas Byron sim. Ele traz de volta o maravilhoso Satã de Milton, e o coloca agora para tentar Caim (e todas nós) à rebeldia, à insubmissão, à liberdade. Abaixo, seus insuperáveis, poderosos últimos dois discursos do segundo ato:
Lucifer
And now I will convey thee to thy world,
Where thou shalt multiply the race of Adam,
Eat, drink, toil, tremble, laugh, weep, sleep, and die.
Cain
And to what end have I beheld these things
Which thou hast shewn me?
Lucifer
Didst thou not require
Knowledge? And have I not, in what I shew’d,
Taught thee to know thyself?
Cain
Alas! I seem
Nothing.
Lucifer
And this should be the human sum
Of knowledge, to know mortal nature’s nothingness:
Bequeath that science to thy children, and
‘Twill spare them many tortures.
Cain
Haughty spirit!
Thou speak’st it proudly; but thyself, though proud,
Hast a superior.
Lucifer
No! by heaven, which He
Holds, and the abyss, and the immensity
Of worlds and life, which I hold with Him — No!
I have a victor — true; but no superior.
Homage He has from all — but none from me:
I battle it against Him, as I battled
In highest heaven. Through all eternity,
And the unfathomable gulfs of Hades,
And the interminable realms of space,
And the infinity of endless ages,
All, all, will I dispute! And world by world,
And star by star, and universe by universe,
Shall tremble in the balance, till the great
Conflict shall cease, if ever it shall cease,
Which it ne’er shall, till He or I be quench’d!
And what can quench our immortality,
Or mutual and irrevocable hate?
He as a conqueror will call the conquer’d
Evil; but what will be the good He gives?
Were I the victor, His works would be deem’d
The only evil ones. And you, ye new
And scarce-born mortals, what have been His gifts
To you already, in your little world?
Cain
But few! and some of those but bitter.
Lucifer
Back
With me, then, to thine earth, and try the rest
Of his celestial boons to you and yours.
Evil and good are things in their own essence,
And not made good or evil by the giver;
But if He gives you good — so call Him; if
Evil springs from Him, do not name it mine,
Till ye know better its true fount; and judge
Not by words, though of spirits, but the fruits
Of your existence, such as it must be.
One good gift has the fatal apple given —
Your reason: — let it not be over-sway’d
By tyrannous threats to force you into faith
‘Gainst all external sense and inward feeling:
Think and endure — and form an inner world
In your own bosom — where the outward fails;
So shall you nearer be the spiritual
Nature, and war triumphant with your own.
Caim, um mistério está em catálogo no Brasil em uma belíssima edição da Clepsidra.
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom & Caim, um mistério, de Lord Byron.)
Os filhos de Deus
Como um testemunho do caráter compósito do Gênese, um dos trechos mais misteriosos diz respeito aos “filhos de Deus”.
“Quando os homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram.Iahweh disse: “Meu espírito não se responsabilizará indefinidamente pelo homem, pois ele é carne; não viverá mais que cento e vinte anos.”Ora, naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.” (Gen, 6, 1-4)
Quem são? Quando Deus se refere a si mesmo no plural, é deles, com eles, sobre eles que está falando? São deuses, semideuses, anjos, heróis? De qualquer modo, assim como Adão e Eva, e os homens da Torre de Babel, aqui temos uma tentativa de transgredir a fronteira humano-divina. Mas, dessa vez, dessa única vez, a iniciativa parte dos seres divinos, desses seres nunca antes mencionados, nunca depois mencionados. Não faltam exemplos, em todas as mitologias, de homens divinos apaixonados e se aproveitando de mulheres humanas. Será fruto dessas tradições? Os filhos da união dos filhos de Deus com as humanas se chamam Nefilim, literalmente, “os caídos”, e serão mencionados, in passim, somente mais uma vez. Eram os gigantes?
Só podemos imaginar se esse trecho não era parte de uma história maior, que foi apagada pelo Redator. Se sim, qual história? E o que havia nesse trecho específico que o fez ser poupado? Parece que sua única função atual é como mais um exemplo do caos que justifica a necessidade do dilúvio.
A vergonha de Noé
Noé, depois do dilúvio, inventa o vinho, toma o primeiro pileque e tem o primeiro walk of shame:
“Bebendo vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e advertiu, fora, a seus dois irmãos. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no sobre os seus próprios ombros e, andando de costas, cobriram a nudez de seu pai; seus rostos estavam voltados para trás e eles não viram a nudez de seu pai. Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem. E disse: “Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos!” E disse também: “Bendito seja Iahweh, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo! Que Deus dilate Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que Canaã seja seu escravo!”” (Gen 9, 21-27)
O episódio tem dois detalhes interessantes: de acordo com as melhores fontes, na época, não havia vergonha específica nem em se beber e nem em cair de bêbado. Entretanto, mesmo se houvesse, parece que a grande transgressão de Cam foi simplesmente enxergar a nudez do pai — os bons filhos viraram o rosto. Mais ainda, existe uma sugestão de algum tabu sexual, nunca dito mas escandalosamente sugerido: “o que lhe fizera seu filho mais jovem”.
As ramificações políticas e sociais desse minúsculo trecho são gigantescas: até o século XIX, os europeus consideravam que as pessoas da África, de pele escura, eram todas descendentes de Cam e que, por isso, graças a essa maldição de Noé, tinham sido condenadas à escravidão eterna nas mãos do povo escolhido — que era sempre, naturalmente, quem estava aplicando esse trecho a um outro.
Torre de Babel
Originalmente, a Torre de Babel foi lida como símbolo da soberba humana e da vontade de ser como Deus, cujo castigo teria sido a criação das diferentes línguas. Entretanto, podemos ver esse castigo como um presente, possibilitando a libertação do potencial criativo humano e o surgimento da espantosa riqueza das diferentes culturas e civilizações. Graças a esse “castigo”, as pessoas (e as sociedades) agora são livres para buscar e criar suas próprias culturas. (Collins 2)
(Referência: The Bible after Babel, Historical criticism in a postmodern age, de John J. Collins.)
Abraão e Sara
O que Deus pede a Abraão é uma tripla quebra: com seu local de nascimento, com a família de seu pai, com sua pátria. Fundamentalmente, em todos os outros chamados de Deus, para patriarcas e para profetas, é isso sempre que será exigido: uma quebra radical. (Bloom 196)
Quando Abraão e Sara chegam no Egito, e ele diz que ela é sua irmã, o Faraó claramente a toma por concubina e o texto deixa fortemente implícito que Abraão adquire várias vantagens materiais por causa disso.
“De fato, quando Abrão chegou ao Egito, os egípcios viram que a mulher era muito bela. Viram-na os oficiais de Faraó e gabaram-na junto dele; e a mulher foi levada para o palácio de Faraó. Este, por causa dela, tratou bem a Abrão: ele veio a ter ovelhas, bois, jumentos, escravos, servas, jumentas e camelos.” (Gen 12, 14-16)
Logo na sequência, quando toma uma bronca do Faraó, Abraão não responde. A maioria dos comentários religiosos posteriores concorda que isso é um pecado, mas a voz narrativa do livro nunca faz isso. Três religiões tão moralistas cujo texto fundacional é tão pouco moralista. (Bloom 200)
Sara, a primeira matriarca judia, é agressiva, obstinada, autoritária, protetora de suas prerrogativas. Não se resignando à sua esterilidade, faz com que a escrava tenha seu filho e, depois, considerando-a petulante, a expulsa. Quando Deus lhe promete um filho, Sara solta um riso de escárnio… que se torna riso de alegria quando nasce Isaac. O riso de Sara enfatiza sua existência independente, seu orgulho. (Landmann, 48)
Mais tarde, o casamento de Isaac com Rebeca é o primeiro casamento monogâmico da Bíblia, mas Rebeca, assim como Sara, é estéril. (Landmann, 60) Num mundo onde Deus ordena que as pessoas cresçam e se multipliquem, as matriarcas, as mulheres mais fortes e decididas, são justamente aquelas que não conseguem cumprir esse mandamento.
É interessante que os autores do Gênese, recriando o passado a partir do futuro, e já sabendo que os israelitas foram escravos no Egito, até serem libertados por Moisés e trazidos de volta, escolhem fazer da escrava de Sara uma egípcia, quase uma reversão do tema do Êxodo. Abraão a entrega sem maiores problemas à sanha de sua esposa enraivecida, que a expulsa, e ela volta apenas por interecessão pessoal de Deus. Depois, é expulsa de novo (talvez duas versões da mesma história) e, dessa vez, está perdida no deserto, desenganada, evitando olhar o filho para não vê-lo morrer, quando é salvo novamente por Deus. Fica a mácula pessoal no caráter de Abraão e Sara (a escrava teria morrido, se dependesse deles) e a mensagem maior: talvez nós, israelitas, tenhamos merecido tudo o que sofremos nas mãos dos egípcios, pelo que inflingimos à pobre Agar.
Antes de morrer, quando deixa presentes para todos os seus filhos, Abraão presenteia também os filhos que, segundo a narrativa, deram origens aos povos árabes, demonstrando que os amava, que também eram seus filhos. Não à toa ele também é considerado patriarca dos muçulmanos. (Gen 25, 6)
Um dos temas da história de Abraão é a simultaneidade dos opostos, fecundidade com esterilidade, posse com perda: Deus promete uma “Terra Prometida” a Abraão, mas, quando chega lá, ela é árida e está ocupada; a linda mulher que o Faraó coloca de boa fé para dentro de casa era casada e faz com que sofra uma praga; o belo vale escolhido por Lot está habitado por pessoas degradadas; sua terra fértil é onde será capturado; a decisão de Sara de dar Agar a Abraão só causa dor; a obediência de Agar faz com que seja expulsa para o deserto e quase morra; o prazer que as pessoas de Sodoma buscavam faz com que fiquem cegas e morram; a cidade que Lot escolhe faz com que perca tudo; a caverna onde se refugia é onde será atacado por suas filhas. Cada decisão razoável, cada escolha atrativa, cada oportunidade aproveitada parece apenas trazer mais dor, esterilidade, perversão, morte.
Da mesma forma, todas as promessas que Deus faz a Abraão acabam sendo minadas, corrompidas, desditas, desfeitas quase que imediatamente: Deus lhe promete terra e descendentes logo depois de descobrirmos que Sara é estéril e logo antes da grande fome; a promessa é repetida e expandida logo depois que a destruição de Sodoma e Gomorra é sugerida e antes da batalha dos cinco reis; Deus lhe promete um filho depois de ele rejeitar a oferta do Rei de Sodoma e antes de Sara expulsar Agar; Deus faz a Aliança com Abraão depois de salvar Agar e logo antes da destruição de Sodoma e Gomorra. Existe uma distância cada vez maior entre essas promessas futuras especificas e os acontecimentos presentes catastróficos. Abraão vai descobrindo justamente qual é a distância entre os desígnios de Deus e a capacidade humana de realizá-los, entre as possibilidades e as limitações dos homens, e tudo isso vai preparando a ele e a nós para o momento em que Deus exigirá o sacrifício de seu único filho. (Kenneth R. R. Gros Louis, in Preminger, 261)
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom; Sexo e Judaísmo, de Jayme Landmann; The Hebrew Bible in Literary Criticism, ed. Alex Preminger)
Sodoma e Gomorra
O pecado dos sodomitas não é a homossexualidade (senão, não faria sentido oferecer as filhas virgens como substitutas) mas a violência sexual e a falta de hospitalidade. Lot, ao oferecer as filhas, também toma uma atitude imoral e indigna de um pai. Mais tarde, a narrativa faz questão de mostrá-lo sendo estuprado por ambas as filhas e gerando povos vizinhos e rivais de Israel.
A região de Sodoma e Gomorra era repleta de formações rochosas de sal cujas figuras algumas vezes lembravam pessoas: o texto do Gênese transforma, retroativamente, uma dessas formações, que era parte do ambiente físico normal dela e das pessoas que a liam, na estátua da Esposa de Lot. (Falo mais sobre isso no texto Gênese, livro das origens.)
A poeta polonesa Wisława Szymborska, Nobel de Literatura 1996, talvez meu poeta favorito, escreveu esse belíssimo poeta sobre a esposa de Lot, na tradução de Regina Przybycien:
Dizem que olhei para trás curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus –simplesmente tudo o que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento me bateu,
despenteou o meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.
(Referências: Poemas, de Wisława Szymborska.)
O sacrifício de Isaac
Abraão claramente estava disposto a sacrificar tudo e todos em prol de sua segurança pessoal: sacrifica Sara à luxúria de dois reis estrangeiros; sacrifica Hagar, mãe de seu filho, expulsando-a duas vezes; sacrifica seu filho, Ismael, que morreria de sede ao lado de Hagar, se não fosse a intervenção de Deus. Nesse aspecto, sua disposição de sacrificar também Isaac é mais do mesmo. Na verdade, assim como Isaac, todos os outros sacrifícios só não se realizam porque Deus também intervém no último segundo. Em recompensa às atitudes hediondas e covardes de Abraão, Deus o abençoa. (Landmann, 46-47)
Uma interpretação comum desse episódio é que ele simbolizaria a proibição de sacrifícios humanos, mas me parece ser exatamente o contrário: nenhum dos personagens da história manifesta surpresa, horror, incredulidade diante da ordem de Deus. A questão parece ser apenas obedecer ou não, mas a ordem em si não parece fora do ordinário. Se sacrifícios humanos fossem proibidos, ou algo fora do horizonte de possibilidades, Abraão provavelmente nem acreditaria na ordem que tinha recebido. Claramente, esse era um mundo onde era ao menos factível sacrificar meninos a pedido de deuses sedentos de sangue.
A história tem em seu centro um grande vazio: a narrativa propositalmente evita temas como o desespero da mãe, sacrifícios humanos, o solo que exige sangue, a necessidade de vingança, usurpação de prerrogativas divinas, etc, e, em seu lugar, coloca apenas um enorme silêncio. A substituição do sacrifício pelo cordeiro que surge de repente é um anticlímax que não permite que Abraão se torne um herói trágico. (Ulrich Simon in Preminger, 259)
Do ponto de vista de literário, como notou Auerbach, a história do sacrifício de Isaac serve pra exemplificar o estilo do Gênese. É uma narrativa poderosa, resumidíssima, onde cada palavra, cada elemento é importante. Nada pode ser tirado, nenhuma palavra, nenhum gesto. Por exemplo, eles são acompanhados por criados, mas sua importância está apenas em serem deixados para trás no momento mais crucial, dividindo a história em duas e criando a ilusão de desenvolvimento. Acontece a mesma coisa com a faca e a madeira, que Isaac carrega, que serve apenas como justificativa para que exista um diálogo entre pai e filho. (Jacob Licht, in Preminger 269)
Quando Isaac pergunta pelo cordeiro e Abraão responde que Deus providenciará, fica a dúvida: está mentindo?, de fato espera que Deus providencie um substituto para Isaac?, está transferindo totalmente a responsabilidade de suas ações para Deus? (Edna Amir Coffin, in Preminger, 270)
Um dos livros mais importantes do filósofo dinamarquês Soren Kirkegaard (considerado um dos fundadores do existencialismo) é inteiro sobre essa cena: Temor e tremor (1843), sobre o absurdo da fé. Para Kirkegaard, chamar Abraão de “pai da fé” é fácil, difícil é de fato viajar por três dias ao lado do filho que você terá que sacrificar, pensando e repensando tudo, questionando Deus, a si mesmo, sua fé. O que a ordem de Deus faz por Abraão é colocar sua fé acima da moralidade: o dever absoluto de obediência a Deus ultrapassa, suspende, transcende a moralidade. Por isso, a condição do crente, da pessoa que tem fé, não é nunca a placidez das certezas, um bem-estar e uma felicidade, mas sim de incerteza e medo, de temor e tremor, de contradição constante entre as exigências da fé no Deus absoluto e a moral da sociedade laica. A angústia da incerteza torna-se assim a única certeza possível: a fé seria justamente essa certeza angustiada, em conflito consigo mesma, com a moralidade laica, com Deus. Esse paradoxo é a própria condição humana, é o escândalo da fé. Sem esse escândalo constituinte, transformado em religião institucional praticada somente aos fins de semana, o cristianismo teria perdido o sentido. Para o cristianismo institucionalizado de hoje, entretanto, não interessaria mais a fé, só a moral. Restringindo-se ao estágio ético, esse cristianismo sem asas não atingiria nunca o estágio infinito do escândalo e do paradoxo. Por fim, Kirkegaard defende que a fé é o próprio paradoxo: nos entregamos a ela para fugir da angústia humana mas ela é a própria angustia humana. A fé não conforta a consciência, não traz garantia alguma, somente lança o homem em incertezas infinitas. Mas é nessa situação de incerteza e angustia que o homem pode entrar, enquanto individuo, em relação com o absoluto, com o transcendental, e dar o tão importante salto de fé. (Kirkegaard fala pouco de Jó, mas vamos ver que muito do que ele diz aqui igualmente se aplica.)
(Referências: Temor e tremor, de Soren Kirkegaard; Sexo e Judaísmo, de Jayme Landmann; The Hebrew Bible in Literary Criticism, ed. Alex Preminger)
Rebeca e Isaac
Rebeca já entra em nossa história em grande estilo, por força de seu caráter, bondade e força, em uma belíssima cena: o servo de Abraão pede água a várias moças no poço, mas somente Rebeca dá água também para os camelos. (Gen 23, 10-25)
(Nessa época, o poço de uma cidade ou região era praticamente o único lugar onde moças solteiras podiam interagir livremente com outros homens. Na Bíblia, são freqüentes encontros nos poços. Até pouquíssimo tempo atrás, os encontros eram nas fontes das cidades. O Rio de Janeiro, por exemplo, corte imperial, só começa a receber água encanada em 1865: até lá, os maiores pontos de encontro da cidade eram as fontes do Largo da Carioca, da atual Praça XV e da Glória.)
Quando se apresenta, entretanto, não dá o seu nome, mas sim os de seus parentes homens, testemunhando assim sobre a força e a importância da patriarcalidade dessa sociedade:
“Eu sou filha de Batuel, o filho que Melca gerou a Nacor”.
Ao contrário das outras grandes matriarcas do Gênese, é a única que não tem rivais. Ela é a única mulher de Isaac e ela o ofusca completamente. (Bloom 212)
Mais tarde, tendo que ir morar no país dos filisteus por causa de uma seca, Isaac faz como o pai e se faz de irmão da esposa:
“Ele estava lá há muito tempo quando Abimelec, rei dos filisteus, olhando uma vez pela janela, viu que Isaac acariciava Rebeca, sua mulher. Abimelec chamou Isaac e disse: “É evidente que é tua mulher! Como pudeste dizer: ‘É minha irmã’?” Isaac lhe respondeu: “Pensei comigo: corro o risco de morrer por causa dela.” Retomou Abimelec: “Que nos fizeste? Por pouco alguém do povo dormia com tua mulher e tu nos atrairias uma falta!” Então Abimelec deu esta ordem a todo o povo: “Quem tocar neste homem e na sua mulher, morrerá.” (Gen 26, 8-11)
Do nosso ponto de visto, o escandaloso da história é partir do pressuposto que Rebeca (logo Rebeca!) fosse muda e passiva, incapaz de falar e de se defender. O rei teria sido igualmente sincera se dissesse:
“Imagina! Um de nós poderia ter estuprado sua esposa num supetão, sem lhe dar chance nem de falar e nem de defender, o que teria sido 100% ok e aceitável se ela fosse sua irmã, mas poxa, sendo ela sua esposa, poderia queimar o nosso filme!”
Aliás, como o rei não consumou nunca sua relação com Rebeca, Isaac não recebe as vantagens materiais que Abraão recebeu do Faraó do Egito.
Vemos Rebeca pela última vez ajudando o filho Jacó a roubar a primogenitura de seu outro filho Esaú. O plano funciona mas, como resultado, Jacó precisa fugir para não ser morto por Esaú. A inteligência de Rebeca salva ambos — pois Esaú seria morto se matasse Jacó. Mas é uma vitória agridoce, pois perde seu filho favorito: que saibamos, Rebeca nunca mais se encontra com Jacó. Em Gen 35, 8, sabemos da morte da ama que foi com ela para Canaã, mas a morte de Rebeca nunca é mencionada.
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom.)
Jacó e Raquel
Jacó é mostrado como um cambalacheiro malandrão, mas tão charmoso que é sempre perdoado pela voz narrativa. Além disso, em oposição à masculinidade rústica de Esaú, ele é suave, convincente, feminino — e sempre aliado a e protegido por sua mãe, Rebeca. Depois de sua fuga, Jacó tem seu primeiro encontro com Deus e tem confirmado seu status de patriarca. O detalhe de dormir com a cabeça em uma pedra é revelador: a pedra, na verdade, um altar, significa que estamos em um espaço sagrado e que o sonho será divino e revelador. Em seu momento mais vulnerável, saindo de sua terra e se jogando no desconhecido, Jacó ganha um protetor divino.
A astúcia de Jacó é a astúcia do sobrevivente: ela garante sua vida longa e a continuação de sua linhagem, mas nunca o protege do sofrimento. Para Jacó, tudo é difícil e demorado: ele precisa lutar por cada triunfo e arriscar a própria vida para ganhar a Benção. Como Abraão, como José, como Moisés, é um herói com traços de antiheroi, um herói canalha, um herói mentiroso, um pícaro. (Bloom 209)
Esaú é apresentado como um outro tipo de homem, que pertence a um outro tipo de vida, mais simples, mais vivo, mais intenso, mais jovial. Ele é enganado, tem um impulso de se vingar, mas, depois, não segue adiante. (Jacó, por seu lado, quando é enganado por Labão, se vinga, lhe engana, se apropria de seus rebanhos, leva sua filha.) Quase parece que Esaú tem vida demais, está confortável demais, para precisar da tal Benção pela qual Jacó tanto se bate. (Bloom 213)
O amor de Jacó por Rebeca, que faz com que o pícaro malandro ignore todos os amplos sinais de que está sendo enganado por outro malandro, é revelado em um versículo poderoso, dos mais românticos da Bíblia:
“Jacó serviu então, por Raquel, durante sete anos, que lhe pareceram alguns dias, de tal modo ele a amava.” (Gen 29, 20)
Jacó engana, mas também é enganado como poucos: paga o preço por cada um de seus golpes. Por exemplo, usa uma roupa de pele de cordeiro para enganar o pai e roubar a benção que seria de Esaú… e, alguns anos depois, seus filhos usarão a túnica adornada de José para enganar Jacó e convencê-lo da morte de seu filho preferido. Quem com roupa engana, com roupa será enganado. (Bloom 215)
Os ídolos domésticos eram os ícones que simbolizavam a própria família. Ao roubá-los de seu pai, e, mais ainda, ao se fingir de menstruada para evitar perdê-los, Raquel está se mostrando uma igual ao seu marido, tão mentirosa e cambalacheira quanto ele. Por fim, o abraço de Labão antecipa o abraço de Esaú: Jacó é tão charmoso que até suas vítimas lhe perdoam.
Assim como Sara, Raquel também é estéril, e também começa a sentir ciúmes da mulher que dá herdeiros ao seu marido. A diferença entre Abraão e Jacó é que esse último não estimula esses sentimentos:
“Raquel, vendo que não dava filhos a Jacó, tornou-se invejosa de sua irmã e disse a Jacó: “Faze-me ter filhos também, ou eu morro.” Jacó se irou contra Raquel e disse: “Acaso estou eu no lugar de Deus que te recusou a maternidade?”” (Gen 30, 1-2)
Depois de velho, o último truque de Jacó será cruzar as mãos aos abençoar os netos, mais uma vez subvertendo os costumes de primogenitura. (Gen 48, 17-20)
Séculos mais tarde, Camões escreve um belo soneto em homenagem a esse amor (Landmann, 62):
Sete anos de pastor, Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom; Sexo e Judaísmo, de Jayme Landmann; Sonetos, de Luis de Camões.)
A luta de Jacó
A luta de Jacó acontece em um momento crucial de sua trajetória de pícaro mentiroso. Ele está voltando pra casa, com todos seus pertences, sua esposa, sua família, entre dois perigos: atrás de si, o sogro furioso e enganado, que inclusive teve seus ídolos roubados, e, a sua frente, seu irmão Esaú, de quem roubou a primogenitura décadas atrás e que, da última vez que soube, queria matá-lo. Depois de abandonar a casa do sogro, Jacó agora precisa enfrentar seu passado de cambalacheiro fraudador, precisa encarar o irmão que enganou, precisa encarar a si mesmo, precisa destruir seu próprio ego, precisa transcender a si mesmo. Nesse momento, depois de enviar sua família adiante, ele volta para guardar a retaguarda. Às margens do rio Jaboque, pela primeira vez, nós o vemos rezar. Também pela primeira vez em sua história, esse homem que passou a vida obtendo suas vitorias pela lábia e pelo logro, está só. Ele e ele mesmo. Não há ninguém para ser enganado, convencido, fraudado. A noite cai, simbolizando o nosso lado escuro e silencioso que, às vezes, precisa ser encarado, combatido, superado. O ser mágico, quando surge, não fala, não escuta, não dialoga: parte direto pra cima. Jacó não tem chance de usar nenhuma de suas armas, nenhuma de suas artimanhas: só lhe resta lutar, lutar por sua vida, lutar por si mesmo, lutar contra si mesmo. Entre o fogo e a frigideira, a maior batalha de Jacó é a mais inesperada, a mais íntima, a mais silenciosa.
Para Jacó, seu momento de maior perigo, encurralado entre duas possíveis vinganças nas mãos de dois homens que enganou, também é o momento onde, inesperadamente, se vê forçado a uma luta transcendental onde acaba conquistando, à força, a Benção que antes roubara na malandragem, a Benção que lutara a vida inteira seja para obter ou para manter ou para merecer. Finalmente, ele a merece. Essa Benção é extraída do próprio Deus, ou do próprio Anjo da Morte, ou, quem sabe, de si mesmo, do seu Duplo Sombrio que Jacó precisa encarar e vencer em seu momento de maior perigo. O ser contra o qual Jacó luta se recusa a oferecer seu nome, seja porque foi derrotado, seja porque talvez seu nome também é Jacó. O que importa não é o nome do ser encantado que pediu pra sair, mas sim o novo nome que assume, Israel, que será o nome do país até hoje. (Bloom 215-9)
(Referências:O Livro de J, de Harold Bloom)
Tamar
Tamar é outras das mulheres fortes e empoderadas do Gênese. Assim como Jacó, é uma enganadora; assim como Rebeca e Raquel, é uma matriarca que ajuda a manter a linhagem de Israel; assim como a esposa de Potifar, é uma estrangeira, mas, nesse caso, apresentada de maneira positiva. Para Tamar, ironicamente, tirar as roupas de viúva e vestir as de prostituta é um empoderamento: deixa de ser vítima e passa a ser agente, negocia sexo com os homens e exige seus direitos não mais dos cunhados, mas agora do sogro. O selo, o cordão e o cajado eram literalmente os símbolos da família: quando Tamar os obtém de Judá, ela está de fato e concretamente se tornando a chefe da família, repetindo os feitos malandros de Jacó e Raquel, e usando sua condição de chefe para forçar Judá, sem que ele saiba, a cumprir o seu dever.
José
Quando José, para fugir da esposa de Potifar, diz que o marido lhe deu tudo, menos essa única coisa (ou seja, a esposa), é quase que uma crítica velada a Adão e Eva, que também poderiam fazer tudo, menos comer de uma única árvore, e comem. José resiste.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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O Livro do Gênese: notas de leitura é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 25 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/genese-notas-de-leitura // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato