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Gênese, o livro das origens

O objetivo do Gênese é explicar o mundo como ele é, não como deveria ser. (Um guia de leitura para a primeira aula do curso “Introdução à Grande Conversa”.)

Uma chave de leitura frutífera para o Gênese é considerá-lo um livro etiológico, ou seja, cujo objetivo é explicar o mundo como ele é “hoje” — no hoje de quando foi escrito, naturalmente.

Por exemplo, a serpente que tentou Eva é condenada a andar de barriga arrastando pelo chão — o que faz com que nos perguntemos: “como ela era antes?” Tinha patas? Andava ereta? (O Gênese de Crumb faz uma interpretação interessante.) Jamais saberemos, mas certamente o objetivo desse trecho é explicar como a serpente ficou da maneira como é “hoje”.

A região de Sodoma e Gomorra, às margens do hiperssalino Mar Morto, era repleta de formações rochosas de sal cujas silhuetas às vezes lembravam pessoas: a narrativa do Gênese transforma, retroativamente, uma dessas formações na estátua da Esposa de Lot, explicando assim o surgimento do próprio ambiente físico onde autoras e leitoras viviam.

Quando Gênese diz que Esaú era selvagem e intempestivo e que deu origem ao povo edomita, podemos ler a história na ordem inversa: na época em que o texto foi escrito, havia esse povo tido por selvagem e intempestivo e, para explicar a origem desse povo, o texto cria para ele um antepassado selvagem e intempestivo. Da mesma maneira, quando as duas filhas de Lot estupram o pai bêbado e uma gera os moabitas e a outra, os amonitas, a função primordial da história é não só explicar a origem desses povos mas também, naturalmente, caçoar deles. Para nós, é difícil captar esse sentido porque esses povos já não nos significam nada, mas significavam muito, tanto para quem escreveu como para quem recebeu o texto.

(Imaginem se uma das lendas de nosso folclore fosse que o Curupira embebedou e estuprou a Iara e que os filhos gerados, digamos, deram origem aos paranaenses. Algumas pessoas achariam engraçado, outras ofensivo, mas todas entenderíamos que a lenda é muito mais sobre os paranaenses do que sobre o Curupira e a Iara.)

Então, quando o Gênese nos mostra, logo após o Dilúvio, Deus mandando as pessoas comerem a carne dos animais, essa história é uma invenção a posteriori para justificar um hábito comum na época em que a autora do texto escrevia. Ou seja, não “Diz no Gênese que Deus mandou as pessoas comerem carne, então vou passar a comer carne de agora em diante” mas “Já como carne desde sempre e o Gênese diz que foi logo após o Dilúvio que Deus nos mandou comer carne.”

Como um último exemplo, algumas pessoas do nosso curso estavam discutindo sobre a ética do Dilúvio: é ético um Criador teoricamente bom afogar todas as suas criaturas?

Mas o dilúvio não é algo que a autora do Gênese simplesmente inventa: todas as tradições e culturas do Oriente Médio e da Mesopotâmia tinham a tradição de um dilúvio universal. Para essas pessoas, era um fato. Portanto, se estou escrevendo uma história das origens do mundo, não posso simplesmente não incluir o Dilúvio, senão todo mundo estranharia: “E esse seu Deus aí e o dilúvio? O que ele estava fazendo durante o Dilúvio?”

Naturalmente, o personagem-Deus, como mostrado no Gênese, não sofreria o Dilúvio: se houve Dilúvio, foi por obra e vontade dele. Então, o desafio da autora é: dado que houve Dilúvio e dado que foi obra de Deus… por quê?

Virando a questão ao avesso dessa maneira, algumas coisas que não faziam sentido passam a fazer. Por exemplo, o misterioso trecho sobre os filhos de Deus transando com as mulheres humanas (Gen, 6, 1-4) tem como função complementar o quadro de um mundo pré-diluviano completamente corrompido, onde a noção da fronteira entre o humano e o divino já tinha sido completamente perdida. Ou seja, hora de reiniciar o sistema.

Na prática, toda essa etiologia do Gênese funciona como uma grande defesa ou justificativa de Deus, diante da acusação de permitir tanta dor e tanto sofrimento. Por que o mal existe? Por que o parto é doloroso e perigoso? Por que as serpentes se arrastam pelo chão e mordem nosso calcanhar? Por que envelhecemos e morremos? Por que precisamos trabalhar tão duro para extrair os frutos da terra? Terá sido culpa de um Deus inepto que criou um universo ineficiente? Não, responde o livro de Gênese: Deus é perfeito e fez tudo sempre certo. A culpa é nossa, da nossa desobediência, da nossa impiedade.

Os israelitas não eram um povo que virou uma religião mas, como o Gênese começa a contar, uma religião que se tornou um povo.

(Referências: Guia literário da Bíblia, de Robert Alter e Frank Kermode e O Livro de J, de Harold Bloom.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Gênese, o livro das origens é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 24 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/genese-o-livro-das-origens // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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