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Quem escreveu o Gênese?

O Gênese foi escrito por pândegos e editado por derrotados. (Um guia de leitura para a primeira aula do curso “Introdução à Grande Conversa”.)

O livro do Gênese, o primeiro livro da Bíblia, foi escrito por pândegos e editado por derrotados. Por isso, é tão bom.

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Os cinco primeiros livros da Bíblia são conhecidos como Pentateuco. Durante muito tempo, acreditava-se que Moisés era autor dos cinco — apesar de morrer no último livro, antes do final. Hoje, tirando alguns grupos mais fundamentalistas, ninguém mais acredita nisso.

A hipótese mais aceita, quase consensual, nos círculos acadêmicos e até religiosos, é a chamada Hipótese Documental: ela diz que os textos que compõem o Pentateuco foram escritos entre os séculos X e VI aEC, por vários autores, conhecidos como J (Javista), E (Eloísta), P (Sacerdotal, do alemão “Priester”) e D (Deuteronomista), que teriam sido costurados sob a redação final de um redator, R, por volta do século VI aEC, durante ou logo após o Exílio Babilônico. (O Exílio Babilônico é quando os babilônios tomam Israel, destroem o Templo de Jerusalém e exilam a elite israelita para a Babilônia por cerca de 80 anos.)

Essa teoria, sugerida pela primeira vez por Hobbes e, na sequência, por Espinosa e estudada a sério desde começo do século XIX, é naturalmente uma ficção especulativa. O que se sabe é que o Pentateuco junta, no mínimo, quatro textos bem diferentes e conseguimos saber, com alguma segurança, quais trechos foram escritos por quais mãos. Por exemplo, J é chamado de Javista porque sempre se refere a Deus como Javé; já E é Eloísta porque se refere a Deus como Elohim, etc. Hoje em dia, a maior desavença é entre o acadêmico que diz que o versículo tal é claramente eloísta e, outro, que diz ser obviamente javista, e etc.

O Gênese que chegou até nós é basicamente produto de J e E, com as costuras de R. Quando uma mesma história parece ser repetida duas vezes (a criação do homem, o dilúvio, etc) é porque estamos lendo a versão de ambos os autores. Na maioria dos casos, entretanto, R escolhe uma: o sacrifício de Isaac, por exemplo, é quase unanimemente considerado ter sido escrito por E, embora alguns acadêmicos defendam ser da autoria de J. (E é assim que os acadêmicos ganham a vida.)

Nada do que acabei de escrever é secreto ou controverso, explosivo ou subversivo. Não é uma teoria descoberta por Robert Longdon que os homens de negro tentaram silenciar. Pelo contrário, a hipótese documental está exposta nas melhores Bíblias de Estudo, inclusive nas duas que eu recomendo: Bíblia do Peregrino e de Jerusalém.

Harold Bloom, em O Livro de J, destaca só os trechos atribuídos ao autor javista, os analisa em separado, especula que J é uma mulher e a coloca no panteão de melhores escritores de todos os tempos, abaixo apenas de Shakespeare. Não acho que ele está muito errado: é surpreendente um texto tão pícaro, tão irônico, tão safado ter sido transformado em livro sagrado de três religiões.

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Aliás, para livro sagrado de grande religião, o Gênese é surpreendentemente subversivo. Por um lado, sim, a maior virtude é a obediência e o maior pecado possível a rebeldia. Mas, por outro, a ordem natural das coisas, a ordem social estabelecida, é constantemente subvertida: os filhos mais novos sempre ultrapassam os primogênitos. Os heróis do Gênese não são aqueles que estavam pré-determinados pela ordem constituída, mas sim os que tomam seu destino em suas próprias mãos,  nem que precisem que roubar, enganar, mentir.

Tucídides, o pai da História, escreveu, no exílio, a história da Guerra do Peloponeso, que destruiu sua querida Atenas. Darcy Ribeiro dizia ter fracassado em tudo o que tentara, desde alfabetizar crianças até salvar índios, mas que seu fracasso era sua vitória: detestaria estar no lugar de quem tinha lhe vencido. Já Eric Hobsbawm afirmava ter dedicado toda sua vida a um projeto que considerava fracassado, mas que nada aguçava tanto a mente do historiador quanto a derrota: afinal, quem consegue ser reflexivo enquanto está ganhando? Quem consegue aprender com suas vitórias?

Talvez então não seja coincidência que o Pentateuco, essa espinha dorsal da Bíblia Hebraica, de Gênese a Reis, tenha sido provavelmente ganho forma durante, ou logo após o Exílio Babilônico, por uma elite que perdera tudo, menos sua ideia de si mesma. Escrito por uma pequena minoria monoteísta dentro de uma maioria de israelitas que ainda cultuava os antigos deuses, o Pentateuco era provavelmente sua tentativa de dizer “viu? eu não disse?”, ou, em outras palavras, que a catástrofe política tinha acontecido justamente porque o grosso da população não seguira o monoteísmo javista que essa minoria defendia. Escrever esses textos não apenas lhes permitiu cultivar o respeito próprio em meio à catástrofe (Jeremias mostra bem isso), mas também manter esperança no futuro melhor prometido por seu Deus. (Fox, 65-66)

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Sim, por um lado, os primeiros editores e compiladores da Bíblia, por volta do Exílio Babilônico, eram pessoas em meio à mais profunda derrota.

Mas, por outro lado, os autores dos textos em si que esses derrotados compilaram, escrevendo séculos e séculos antes, não estavam escrevendo a Bíblia, e, talvez, nem mesmo textos dito sagrados. Não sabiam, nem tinham como saber, que esses textos, um dia, seriam reunidos com outros textos, que seriam mais tarde coletados em um livro, que seria ainda mais tarde adicionado a outro livro, e que esse conjunto receberia o nome de Bíblia, e seria considerado sagrado.

Um pândego como o autor javista jamais escreveria textos sagrados: ele estava escrevendo textos maravilhosos, irônicos, engraçados, sobre os temas que lhe eram importantes, sua fé, seu povo, sua terra, sua história. Os personagens do Gênese até demonstram sentir medo e admiração, temor e tremor, por Deus, mas os autores, nem um pouco: é nos trechos javistas, por exemplo, que encontramos o Deus mais antropomórfico de toda a Bíblia, passeando pelo jardim, levando Abraão para ver estrelas, comendo com seus anjos.

Quando os textos que compõem o Gênese foram escritos, ainda não havia nem judeus (que surgiriam apenas 500 anos depois), nem cristãos (mil anos depois) ou muito menos muçulmanos (1.600 anos depois). Finalmente, somente por volta do ano 100 da Era Comum, o cânon da Bíblia Hebraico é fechado e não muda mais.

(Referências: Bíblia, verdade e ficção, de Robin Lane Fox & O Livro de J, de Harold Bloom.)

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Quem escreveu o Gênese é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 23 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/quem-escreveu-o-genese // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: NewsletterInstagramFacebookTwitterGoodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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