No Livro de Samuel, Davi e Jônatas têm uma das amizades mais famosas, celebradas e controversas da Bíblia. Mais de um comentador interpreta que, na verdade, eram amantes homossexuais.
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Toda interpretação diz muito sobre quem interpreta.
Em outras épocas e culturas, onde a homossexualidade era punida até mesmo com a morte, certamente várias duplas de “grandes amigos” e “melhores amigas” eram, na verdade, homossexuais.
Por outro lado, quando vejo pessoas de hoje com absoluta certeza de que “melhores amigos” de antigamente eram secretamente gays, penso que talvez estejam projetando para o passado a nossa atual masculinidade tóxica.
Por exemplo, muita gente considera que, em O Senhor dos Anéis, Frodo e Sam eram secretamente amantes. Pode ser? Pode. Mas o autor, Tolkien, estudou em escola e universidade só para meninos, depois foi para o exército e lutou na Guerra, na volta se tornou professor de uma universidade só para homens e, em seus momentos de lazer, descansava em um club londrino também só para homens. Seu mundo, desde sempre, era masculino, um mundo onde havia homens homossexuais, naturalmente, mas onde também havia fortes amizades masculinas estritamente heterossexuais, e todo o mais que pudesse acontecer entre esses dois extremos.
Quando vejo pessoas contemporâneas tendo certeza absoluta que Frodo e Sam, ou Davi e Jônatas, eram homossexuais, eu me pergunto se não introjetaram demais a masculidade tóxica e frágil dos nossos dias, onde homens heterossexuais não podem chorar, ou declarar seus sentimentos uns para os outros, ou demonstrar qualquer tipo de fragilidade ou proximidade emocional, sem que isso seja considerado “boiolagem”.
Será que não estamos nós, aqui, hoje, pessoas fofas de esquerda, definindo masculinidade de maneira ainda menor e mais restritiva do que esses homens teoricamente brutos do passado?
Davi e Jônatas eram homens de outras épocas, com outros códigos de masculinidade, outra premissas e outras vergonhas. Pode ser que eram amigos, como explicitamente dito no texto? Provável.
Pode ser que eram secretamente amantes? Sim. Super podemos especular sobre isso: existem textos, artigos, livros explorando esse tema.
Nesse caso, entretanto, ficam várias dúvidas:
Por que um texto explicitamente escrito para levantar a bola de Davi como um dos maiores reis israelitas de todos os tempos sugeriria isso? Mesmo se houvesse pistas a esse respeito, o texto não iria preferir silenciá-las? Ou, então, dado que o texto não hesitou em mostrar o crime de Davi contra Urias, não teria também mostrado esse outro pecado? (Existem várias evidências extratexto de como o autor de Samuel força a barra para pichar Saul e exaltar Davi.)
Para quem se interessa pela polêmica, esse texto da Wikipedia (em inglês) indica caminhos.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Davi, Jônatas, amigos, amantes é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 29 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/davi-jonatas-amigos-amantes // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato