O Livro de Samuel e a Orestéia, ambos intensamente políticos e intensamente religiosos, contam a mesma história de maneiras bem diferentes.
Quando o Livro de Samuel começa, os israelitas não têm governo central e vivem divididos em tribos sob a liderança de “juízes” que “julgam em Israel”. Ao final, já estão no segundo e maior rei, Davi, de sua monarquia unificada, às vésperas de um terceiro também celebrado, Salomão.
Quando a Orestéia começa, estamos na Grécia Arcaica, um mundo de honra e vingança, sem governos fortes e sem instituições políticas, onde Agamenon está voltando vitorioso da Guerra de Tróia, prestes a ser assassinado por sua esposa. Ao final, já estamos às vésperas dos tempos clássicos e históricos, em uma Atenas que acabou de proibir vinganças pessoais e instituiu o tribunal do júri, dando assim o primeiro passo para se tornar uma civilização democrática.
Em ambas as obras, vemos o mesmo processo político — a institucionalização da vida política e o abandono das estruturas tribais e clânicas — acompanhado por processos religiosos opostos.
Na Orestéia, o tom é positivo e autocelebratório: Ésquilo, ateniense, está festejando a conquista civilizacional de sua polis, criando um elo entre essa instituição política local — o tribunal do júri — e o passado lendário e mítico de toda a Grécia e inserindo-a fortemente na vida religiosa da cidade, ao mostrá-la sendo criada por sua deusa padroeira, Atena. Política e religião caminham juntas.
No Livro de Samuel, o tom é negativo e autoflagelatório: o autor está lamentando a fraqueza de seu povo, que rejeitou ser governado diretamente por Deus e exigiu um rei mundano, só para ser igual a todos os outros reinos vizinhos, e pagará caro por essa postura irreligiosa. Política e religião caminham em direções opostas.
Essa diferença diz muito sobre a vida política e religiosa de atenienses e israelitas, mas também sobre os momentos históricos em que essas obras foram escritas.
Ésquilo escreve em plena Idade de Ouro da Grécia Antiga, depois da gloriosa vitória contra os persas (em cuja batalha decisiva ele luta) e antes da desastrosa Guerra do Peloponeso, pouco depois de sua morte, que termina com Atenas destruída. Em suma, ele (escrevendo antes da grande tragédia nacional) sabe que deu tudo certo e quer mostrar porquê: a piedade e sabedoria dos atenienses.
O autor do Livro de Samuel escreve provavelmente durante ou logo após o Exílio Babilônico: ele não ignora que a sucessão de Salomão partiu o reino em dois, nem desconhece os séculos de guerras e revoluções que levaram ambos os reinos a serem conquistados, esvaziados, destruídos. Em suma, ele (escrevendo depois da grande tragédia nacional) sabe que deu tudo errado e quer mostrar porquê: a impiedade e estultice dos israelitas.
A Orestéia e o Livro de Samuel, duas obras magistrais, escritas mais ou menos na mesma época e retratando processos históricos semelhantes, não poderiam ser mais radicalmente diferentes.
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Samuel e Orestéia, políticos e religiosos é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 1º de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/samuel-e-oresteia // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato