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Lazarilho de Tormes, uma introdução

O primeiro pícaro também é o primeiro narrador não-confiável. Nunca antes leitor e narrador tinham estado em campos opostos. É o começo da literatura contemporânea. (Grande Conversa Espanhola.)

O romance anônimo Lazarilho de Tormes foi publicado em meados do século XVI e fez tanto sucesso que criou um novo gênero literário: a literatura picaresca, onde um narrador em primeira pessoa, sempre das classes mais baixas e em chave humorística, conta a história de sua luta para sobreviver.

Mais importante, o personagem Lazarilho é talvez um dos primeiros narradores não confiáveis da literatura: na contradição paradoxal e inédita entre o ponto de vista do narrador e do leitor, somos chamadas pela primeira vez a nos inserir criticamente no enredo, a julgar o narrador contra si mesmo, a definir por conta próprio o sentido daquilo que lemos. Já estamos na véspera do romance contemporâneo.

(O Lazarilho de Tormes será nossa leitura da sétima aula, Malandragem, do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. O curso começa na quarta agora, 4 de maio: são 14 aulas por apenas R$195. Compre aqui.)

Já houve quem descrevesse a Espanha do século XVI como um país de pícaros e místicos. Não é uma má definição. Sobre os místicos, falaremos na aula 8. Já o surgimento do romance pícaro (e do Lazarilho de Tormes, sua primeira, mais emblemática, talvez melhor obra) é um sintoma da crise de valores que marca a passagem da Idade Média para a Renascença na Espanha. Nesse momento histórico, a aventura cavalheiresca e a guerra santa contra os mouros já não eram, ou deixavam de ser, formas válidas e possíveis de acumulação de riqueza, mas o trabalho, por seu lado, certamente ainda não era, pelo menos para uma parcela significativa da elite aristocrática e eclesiástica. O que sobra então é uma sociedade de aparências, totalmente corrupta, onde as únicas formas de subir na vida são a mentira, o clientelismo, a malandragem.

Ou seja, estamos no mesmo cenário de Celestina (aula 4), mas dessa vez não restou nem mesmo o pretexto de emular o didatismo das novelas sentimentais e cavalheirescas, como o Amadís de Gaula e o Cárcere de Amor (aula 3). Na prática, ao se insurgir contra essas narrativas idealistas anteriores; ao mostrar seus protagonistas em conflito aberto contra um mundo que já não faz mais sentido; ao fazer uma crítica social aberta e enérgica; e ao exigir do leitor um engajamento ativo na leitura, tanto a Celestina quanto o Lazarilho já se colocam como possíveis inventores do romance moderno, antes mesmo do Dom Quixote, ou, talvez, como seus precursores necessário. Afinal, a  invenção do romance não foi ou não poderia ter sido, obra de um livro só.

O pícaro é sempre o narrador em primeira pessoa de sua história, um homem pobre tentando sobreviver por meio de malandragens e golpes, demonstrando as engrenagens subterrâneas da sociedade que a literatura anterior teimava em esconder. Apesar do ar realista, são narrativas tão estilizadas quanto os livros de cavalaria, mas agora estilizam a vida popular das classes mais baixas, com uma tolerância e um humanismo, com uma energia pândega e um vigor anarquista que, na Espanha, só serão possíveis até o começo da Contrarreforma.

O personagem e narrador Lazarilho nos conta toda a sua vida, desde seus inícios pobres até sua ascensão social. Entretanto, de certo modo, ele é menos protagonista, e mais denúncia do custo humano dessa ascensão: ao nos contar sua trajetória, ele parece não perceber que ela apenas confirma todas as injustiças que ele antes condenava. Se, ao longo da vida, ele sofre nas mãos de pessoas que só vivem de aparências e que nunca são quem dizem ser, seu “final feliz” é tornar-se como elas, como se nada tivesse acontecido, como se essa postura não tivesse sido criticada. Nesse sentido, a maior ataque do livro não é (como parece) contra os religiosos corruptos e hipócritas, ou contra os nobres mentirosos e covardes, mas contra o próprio Lázaro; contra sua incapacidade de perceber que faz parte integrante do mesmo sistema corrupto que denuncia; ou, quem sabe, contra o próprio leitor, que talvez seja conivente com corrupções ainda piores.

O personagem Lazarilho é um dos primeiros, senão o primeiro, narrador inconfiável da literatura. Pela primeira vez, acontece o paradoxo entre o que o narrador diz e o que o leitor entende, percebe, pressente. Nas últimas páginas, quando o narrador parece quase pronto a denunciar a sociedade corrupta onde  vive, ele finalmente consegue inserir-se nela, atinge o sucesso e conquista seu final feliz, como se nunca tivesse feito nenhuma crítica social, como se o mundo fosse justo e meritocrático. Nessa contradição paradoxal entre o ponto de vista do narrador e do leitor, o leitor é chamado, talvez pela primeira vez na literatura mundial, a se inserir criticamente na história, a julgar o narrador contra si mesmo, a definir o sentido daquilo que lê. Já é a véspera do romance contemporâneo.

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Leituras

Como ler

A 34 tem uma excelente tradução, boas notas e é bilíngue. As melhores notas são da Peter Lang, na internet. Existem vários áudiolivros, esse é meu preferido.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a sétima aula, Malandragem, do meu curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.

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