Grande Conversa Espanhola

Do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna.

Curso em resumo

Curso de literatura espanhola, com foco nas rupturas e continuidades com a literatura ocidental contemporânea. 14 aulas de 3h cada, disponíveis em um grupo restrito no Facebook. R$88 mensais por todos os cursos. Compre agora.

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Grande Conversa Espanhola

Quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível. Poucos idiomas se aproveitaram dessa oportunidade de forma tão rica, tão frutífera, tão livre quanto o espanhol. Esse curso é para apresentar vocês à essa literatura.

O Poema do meu Cid, no século XIII, é a primeira grande obra-prima espanhola, talvez a primeira verdadeira obra-prima literária em qualquer língua românica (ainda faltavam cem anos para A Divina Comédia) e um exemplo do melhor que a poesia medieval tinha a oferecer. É a canção medieval perfeita, protagonizada pelo cavaleiro paradigmático, bem-sucedido e em total sintonia com seu mundo. (aula 1)

O Dom Quixote, no século XVII, é a obra-prima indiscutível, incontornável da literatura espanhola, unanimemente considerada uma das maiores obras literárias de todos os tempos em qualquer época e de qualquer gênero, e texto fundador do romance contemporâneo. Não só por trazer um novo tipo de protagonista (falho e deslocado de um mundo onde não mais se encaixa) mas também por exigir um novo tipo de leitura, mais participativa e questionadora. (aulas 13 e 14)

Nos quatro séculos que separam o Cid do Quixote, e em especial nos dois últimos, chamados coletivamente de “Século de Ouro”, a Espanha basicamente inventa:

  • o romance contemporâneo: o Quixote e seus precursores, o Lazarilho, aula 7, e a Celestina, aula 4;
  • a poesia popular: a “nossa” literatura de cordel nasce nos romanceiros espanhóis, aula 2;
  • a poesia contemporânea: só o século XX realmente começa a apreciar os universos poéticos de João da Cruz, aula 8, e Góngora, aula 10;
  • o teatro contemporâneo: Shakespeare, com sua separação estrita de gêneros, nos parece séculos mais velho que seus contemporâneos Molina, aula 9, Lope, aula 11, e Calderón, aula 12, criadores de um teatro que já era tudo ao mesmo tempo o tempo todo.

Além disso, a literatura espanhola nos lega arquétipos duradouros que estão conosco até hoje, e muitas vezes nem sabíamos que eram espanhóis: não só o Cid e o Quixote, mas também o-herói perfeito (Amadís, aula 3), o sedutor canalha (Don Juan, aula 9) e o malandro blefador (Lazarilho, aula 7). Por fim, ao mesmo tempo em que cometiam as piores atrocidades no Novo Mundo, também foram os espanhóis os primeiros a teorizar sobre direitos humanos e liberdades inalienáveis, causando verdadeiras revoluções políticas na Europa (aula 5).

Para entender a nossa literatura contemporânea (o que é?, como surgiu?, o que a define?), é preciso começar pelo Quixote. Para realmente entender o Quixote, é preciso conhecer a tradição com a qual conversa, os ídolos que imita, os desafetos que ataca, do Cid ao Amadís, do Lazarilho à Celestina.

Vem comigo?

(Para fins desse curso, “literatura espanhola” é a literatura escrita em castelhano na Península Ibérica e, mais tarde, no Império Espanhol. Uma explicação mais detalhada aqui.)

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Leituras

O curso é livre, de leituras não-obrigatórias. Um dos objetivos do curso é que cada participante crie a sua própria experiência, única e individual, lendo as obras que preferir, de acordo com seus próprios interesses. Caso as participantes já tenham lido as obras principais, ou queiram mergulhar em mais leituras relacionadas, a ementa oferece sugestões de outras obras de apoio, tanto de ficção quanto de não-ficção, que dialogam com as leituras.

As leituras são curtas: com exceção do Dom Quixote, nas últimas duas aulas, todas as leituras têm no máximo 200 pp.

As leituras estão disponíveis em português, e também em inglês, mas foram todas originalmente escritas em espanhol.

Tentem ler no original em espanhol. Não é tão difícil. Poucas línguas são tão próximas quanto português e espanhol: 89% das palavras são mutuamente inteligíveis e 92% compartilham da mesma raiz. As diferenças são em larga medida de pronúncia e desproporcionalmente favoráveis a nós: é muito mais fácil de nós os entendermos, do que para eles nos entenderem. Mais ainda, as diferenças ficaram muito maiores com o correr dos anos e são maiores na linguagem informal. Ou seja, em termos de leitura, é muito mais fácil ler o espanhol do Dom Quixote, ou das peças do Século de Ouro, do que lermos o jornal El País de hoje, assim como é mais fácil ler o El País de hoje do que entender um filme do Almodovar cheio de gírias do submundo de Madri. (Um pouco sobre as diferenças entre português e espanhol; fonte dos números: “Spanish”, John N. Green, in The Romance Languages.)

Fluência de leitura em espanhol abre portas para uma infinidade de conteúdo nunca traduzido ao português. Somos a sexta língua mais falada do mundo, mas espanhol é a segunda. Independente da qualidade das literaturas produzidas nessas línguas, o mercado editorial lusófono é ínfimo comparado ao hispânico: para quem deseja ser uma pessoa leitora pensante, vale muito a pena adquirir o espanhol.

Todas as leituras estão disponíveis em pdfs gratuitos: como muitas leituras não estão em catálogo, forneço links para sites, como ZLibrary e Libgen, onde ebooks gratuitos podem ser encontrados e baixados. O download fica por conta e risco de cada pessoa.

Tentem ler boas edições críticas e comentadas: forneço sugestões abaixo.

Façam máximo uso das possibilidades audiovisuais e multimídia: para quem quer praticar e melhorar o espanhol, todas as leituras também estão disponíveis em audiolivros, filmes, séries, teatro, poesia declamada, etc, devidamente indicados e linkados abaixo.

Minha recomendação: leiam em espanhol, acompanhando com um audiolivro, e verificando trechos difíceis na tradução em português. Qualquer coisa, fala comigo.  

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Funcionamento

Cada aula seguirá ao longo de dois eixos:

  • Uma discussão literária sobre obras canônicas, escolhidas principalmente por sua importância e qualidade estética, mas também por serem representativas dos estilos e prioridades, ideias e ansiedades de sua época;
  • Uma explanação histórica sobre o período, com foco nas continuidades culturais e nexos causais entre as épocas abordadas, formando assim uma grande narrativa sequencial da história cultural espanhola, ibérica e também ocidental.

Depois da aula, abrimos para perguntas e comentários, e continuamos no Zoom enquanto houver participantes interessadas.

A gravação em vídeo das aulas fica disponível em um grupo fechado do Facebook até, no mínimo, 31 de dezembro de 2027. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo)

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A Grande Conversa

Ao longo dos séculos e dos milênios, sempre que uma pessoa artista ou pensadora, filósofa ou cientista, cria uma nova obra intelectual, ela está ativamente dialogando com todas as suas predecessoras, seja somando ou reagindo, se opondo ou se juntando. Esse diálogo é o que chamamos de a Grande Conversa. Estudá-la não significa concordar com os valores ultrapassados que a moldaram, mas sim adquirir as ferramentas para moldarmos a Grande Conversa do futuro de acordo com nossos próprios valores, em nossos próprios termos.

Esse já é o terceiro curso da série A Grande Conversa: os anteriores foram Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do Ocidente através da literatura (2020) e Grande Conversa Brasileira: a ideia de Brasil na literatura (2021), nos mesmos moldes e ainda à venda.

O quarto curso, Grande Conversa Fundadora: as obras que inventaram as línguas literárias modernas (2022), corre paralelo a esse e ambos podem ser comprados juntos, com desconto.

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Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras pelo Departamento de Espanhol de Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2022).

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Valor

Opções de pagamento para o curso completo, em 14 aulas:

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS, você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. (aceita cartão de crédito e boleto)
  • R$95, à vista, para pagamento único, no pix eu@alexcastro.com.br. (Envie o comprovante para o email.)
  • R$199, via PagSeguro (aceita todas as formas de pagamento, inclusive boleto, e dá para parcelar)

Devolução do dinheiro somente até 30 dias após a compra, menos taxa administrativa de R$50. Não são vendidas aulas individuais.

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Exterior

Quem não tem conta bancária ou cartão de crédito brasileiro, pode fazer um pagamento único, na cotação do dia, via cartão de presente ou na Amazon EUA (Amazon gift cardou na Amazon Espanha (Amazon cheque-regalo) para o email eu@alexcastro.com.br (Só servem essas: não tenho conta em outras Amazon.) Outra opção é Paypal.

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Bolsas

Estão disponíveis 50 bolsas parciais para pessoas negras, pessoas com deficiência, povos originários, recipientes do Bolsa-Família, pessoas alunas ou professoras do ensino público fundamental ou médio, mediante preenchimento de uma ficha. Fale comigo pelo email eu@alexcastro.com.br, assunto “Pedido de bolsa”.

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Dúvidas

Dúvidas e questões sobre pagamentos e bolsas, somente por email: eu@alexcastro.com.br

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Aulas em resumo

Links levam para a descrição da aula nessa página.

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Alguns links de livros direcionam para a Amazon Brasil. Se você clicar e comprar, ganho uma comissão, e te agradeço muito. As edições linkadas não são necessariamente as melhores, mas sim as que estão em catálogo atualmente. A maioria das obras está em domínio público e pode ser facilmente encontrada na internet. Outros links direcionam para sites como a ZLibrary e Libgen, onde ebooks gratuitos podem ser encontrados e baixados.

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1. Épica: Poema do meu Cid, séc. XI

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I Espanha medieval; II Cid histórico; III Poema do meu Cid.)

O Poema do Meu Cid é uma das grandes obras-primas da poesia épica européia. Ao contrário de textos escritos na mesma época em inglês ou português antigo, o poema pode ser lido com prazer (e apenas alguma dificuldade) por um falante do espanhol contemporâneo. (Para ajudar, existem várias versões modernizadas em espanhol, assim como traduções para dezenas de línguas).

Não é o que esperamos de um livro de cavalaria da Idade Média: não tem fantasia, dragões, feiticeiros, lendas. Exilado do reino com alguns poucos homens leais, a primeira atitude do Cid é pegar um empréstimo para pagar suas tropas. Na verdade, ele dá um cambalacho nos usurários, deixando um baú de areia como caução. Uma das características mais interessantes da poesia épica espanhola é a proximidade temporal e geográfica aos fatos narrados. Enquanto o ciclo arturiano começa a circular cantando um rei que presumivelmente vivera muitos e muitos séculos antes, o Poema do Cid canta um herói ainda vivo na memória. Enquanto outras poesias épicas medievais são mais fantasiosas e escapistas, povoadas por heróis perfeitos que lutam contra monstros e gigantes, o Cid enfrenta a ingratidão de um rei ocupado e a ganância de genros covardes. Não é uma poesia épica realista (algo que nem faria sentido!), mas existe um substrato realista, quase prosaico, que ao mesmo tempo em que o aproxima de nós, também o destaca das outras canções épicas e heróicas medievais, de Beowulf à Canção de Rolando, do ciclo arturiano ao Amadis de Gaula (aula 3).

Fruto de uma época onde literatura e oralidade ainda se confundiam, estudiosos discutem até hoje se o poema foi “escrito” ou se é uma performance oral transcrita. O único manuscrito que temos dele, pequeno e não adornado, não se parece com os manuscritos tradicionais, feitos para durar séculos e preservar conhecimentos valiosos, mas sim com um auxílio de performance: o papel é fino, cabe no bolso, está manchado e, ao final, uma nota pede mais vinho.

O que chama atenção no Poema do Cid, e em muitas outras obras medievais que leremos, até Celestina (aula 4), é como seus autores, na falta de precursores ou modelos, criaram uma literatura nova, desgarrada, violentamente original. Todas as possibilidades literárias e estilísticas estavam em aberto, até mesmo a língua que usavam era fresca, ainda não fossilizada em gramáticas (a primeira gramática do espanhol é de 1492) e, por isso, é um prazer, uma delícia, um privilégio podemos ler a produção de grandes artistas criando nessas condições.

O Poema do Cid é irregular, tanto na métrica (os versos e as estrofes têm tamanhos radicalmente diferentes) quanto no tom (mistura seriedade com humor, registros cultos com populares, sacros com profanos). Ao contrário de outros tantos poemas épicos, o foco do Poema do Cid não são vitórias militares, conquistar o amor da amada cortesã, ou mesmo recuperar uma honra perdida, mas objetivos prosaicos como casar bem as filhas. Assim, a família do Cid, suas filhas e sua esposa, estão sempre ali, presentes, criando um ar de intimidade, domesticidade e verossimilhança que só torna as cenas de ação ainda mais emocionantes. O poema nunca nos deixa esquecer por quem, concretamente, o Cid está lutando.

Ao longo dos séculos seguintes, o Cid (que realmente existiu) foi se transformando em um personagem mítico, cercado de um elenco de coadjuvantes digno das melhores mitologias: seu fiel cavalo Babieca; Jimena, que passa de nêmesis a fiel esposa; Urraca, a princesa que renuncia ao seu amor; Sancho, a quem Cid presta lealdade mas é traído e assassinado; Alfonso, que passa de suspeito do crime à monarca a quem Cid agora deve lealdade, etc. Mais ainda, começam a surgir inúmeros prequels do Poema do meu Cid (em forma de canções, poemas narrativos, peças de teatro e, especialmente, cordéis, nossas leituras da aula 2) mostrando o herói em uma fase mais jovem, rebelde e intransigente – em total oposição ao Cid maduro e leal do Poema do meu Cid.

Ao longo da história espanhola, o Cid sempre foi o grande herói nacional. Mas faz sentido sagrar herói nacional um homem que viveu antes mesmo de surgir a ideia de nação? E, aliás, qual Cid? No Século de Ouro (séculos XVI e XVII), o Cid paradigmático era o jovem impetuoso dos romances e cordéis. No século XX, a ditadura de Franco produziu até manuais de liderança militar com base no Cid maduro e obediente do Poema do meu Cid. Hoje, uma novíssima série televisiva (El Cid, de 2020, já na segunda temporada e disponível no Brasil pela Amazon Prime) recupera o Cid inseguro e rebelde da juventude.

Para a aula 1 do nosso curso, leremos O Poema do meu Cid, certamente uma das maiores obras da literatura universal, e também uma seleção de romances e cordéis posteriores, medievais e renascentistas, sobre o jovem Cid. Para acompanhar, recomendo ouvir um bom audiolivro, assistir ao filme hollywoodiano de 1961, a série espanhola de 2020 e, principalmente, o episódio da série Ministerio del Tiempo.

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Vídeos abertos

Leituras

Como ler

A versão original, em espanhol antigo, pode ser bastante difícil. Recomendo ler uma das versões modernizadas em verso (López Estrada, Salinas ou Montaner Frutos), acompanhando com o áudiolivro (da versão López Estrada) e consultando a edição da Penguin pelas notas. Não recomendo as traduções para o português por serem em prosa, mas posso fornecer os pdfs. Em inglês, minha tradução preferida é a de Blackburn, que é excelente. O episódio de Ministério del Tiempo sobre o Cid é imperdível: tenho o arquivo para compartilhar. Para uma releitura contemporânea, recomendo o romance Sidi de Perez-Reverte, também disponível em áudiolivro.

Edições recomendadas

Espanhol antigo

Espanhol modernizado

  • —> Poema del Cid [140pp, Castalia, coleção Odres Nuevos, versão Francisco Lopez Estrada. Poesia.]
  • —> Poema de Mio Cid [163pp, ver. Pedro Salinas. Poesia.] (pdf)
  • —> Cantar de Mio Cid [85pp, Mestas, ver. Alberto Montaner Frutos. Poesia.] (pdf)
  • Cantar de Mio Cid [170pp, Edaf, trad. Luis Guarner, 1970. Poesia.] (pdf, kindle)
  • Cantar del Cid [150pp, Espasa-Calpe, ver. Alfonso Reyes. Prosa.] (pdf)
  • Cantar de Mio Cid [Ver. Timoteo Riaño Rodríguez e Maria Carmen Gutiérrez Aja. Poesia] (site)
  • Cantar de Mio Cid [Ver. Miguel Garci-Gomez. Poesia.] (site)

Português

  • Poema do meu Cid [130pp, ed. Francisco Alves, trad. Maria do Socorro Almeida. Prosa] (pdf)
  • O poema do Cid [115pp, ed. Relógio D’Água, trad. Afonso Lopes Vieira. Prosa] (pdf)

Inglês

  • —> Poem of the Cid [170pp, Univ. Okhlahoma Press, trad. Paul Blackburn. Poesia.] (pdf)
  • The song of the Cid [125pp, Penguin, trad. Burton Raffel. Poesia. Bilíngue.]
  • The epic of the Cid [107pp, Hackett, trad. Michael Harney. Prosa]
  • The Lay of the Cid [Trad. R. Selden Rose e Leonard Bacon. Poesia.] (site 1, site 2)
  • Cantar de Mio Cid [Trad. Archer M. Huntington, 1903. Poesia. Bilíngue.] (site 1, site 2)

Áudio

Site

  • No Instituto Cervantes (site)
  • Na Universidade do Texas (site)

Vídeo

Apoio

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2. Cordel: Romanceiro velho e poesia medieval, sécs. XI a XV

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I Oralidade, II Romanceiro, III Manrique)

Os “romances” eram poesias narrativas curtas, que contavam historinhas, com começo, meio e fim, e “romanceiros” são as antologias de romances, sobre um mesmo tema ou sobre temas afins. (Na aula 1, lemos uma seleção do Romanceiro do Cid, quer dizer, de romances cujo Cid é o protagonista.) Não seria exagero dizer que são as manifestações mais genuínas, valiosas, poderosas, vigorosas, vivas, transcendentes, da literatura medieval ibérica — não somente espanhola.

Uma teoria para a formação desses romances é justamente a fragmentação dos grandes poemas épicos orais, como o Poema do meu Cid: os trechos mais populares, que acabavam sendo os mais repetidos, os mais recitados, os mais memorizados, também acabavam se descolando do poema épico original e se transformando em um romance individual. Aliás, uma das característica marcantes (e mais contemporâneas) dos romances é justamente seu caráter fragmentário: eles são um pedaço de uma ação, onde o contexto original quase sempre se perdeu. Quem são as personagens? O que está acontecendo? Não sabemos. Longe da ideia que temos da literatura medieval em geral, quase sempre religiosa, moralizante e didática, os romances são abertos, instigantes, modernos, exigem a participação ativa do público, seja ouvinte ou leitor. Ao mesmo tempo em que registram e exemplificam a vigorosa literatura popular oral medieval, em seu fragmentarismo estilístico e em sua abertura de sentido, os romances também abrem caminho para as incertezas do racionalismo renascentista e da literatura contemporânea. No século XX, o Romanceiro Cigano, de Garcia Llorca, e o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meirelles, provam a vitalidade e atualidade do gênero.

Os romances não eram só fragmentários, mas também dialógicos. Em uma época onde o teatro havia praticamente desaparecido, e sobrevivia apenas em autos religiosos de função didática e doutrinal, os romances mantinham viva uma tradição de diálogos dinâmicos, memorizados e cantados em público, provavelmente em duetos ou em grupos. A tradição dialógica do romanceiro velho certamente será um dos muitos rios que vão desembocar e possibilitar não apenas a obra de Gil Vicente, em Portugal (nossa leitura da aula 6 do curso Introdução à Grande Conversa), mas também o brilhante Celestina (aula 4), todo o teatro do Século de Ouro (nossas leituras das aulas 9, 11 e 12) e o Dom Quixote (que encerra as duas últimas aulas do nosso curso).

Ler o romanceiro medieval ibérico é tomar contato com uma faceta central de nossa própria cultura popular. Quando surge a imprensa, no século XV, os romances começam a ser impressos em folhas soltas de papel (sobras das primeiras gráficas) e são expostos para vender, por quase nada, pendurados em cordas ou seja, são literalmente os nossos cordéis. “Literatura de cordel” é como chamamos os romances criados e cantados no Brasil, com temas brasileiros. “Romanceiro velho” é como chamamos a literatura de cordel criada na Península Ibérica da Idade Média, com temas hispânicos e medievais.

Para quem não lê espanhol, o Romanceiro português, compilado por Almeida Garrett no século XIX, recolhe várias versões lusitanas dos mesmos romances hispânicos do Romanceiro velho, muitas das quais nos soarão familiares, pois são as cantigas que nos cantavam nossas avós.

Leremos também uma seleção de poesias medievais representativas, com destaque para As coplas pela morte de meu pai, compostas por Jorge Manrique em 1476, que, além de belíssimas, servem como epitáfio e elegia de todo um mundo de valores medievais aristocráticos que morria no final do século XV, na passagem de um sistema feudal de nobreza forte para um sistema pré-capitalista de monarquia autoritária. Manrique nos apresenta a morte em toda sua dureza, como a experimentamos até hoje, mas também vista por seu ponto de vista autenticamente medieval, ou seja, amenizada pela visão transcendente da existência humana que era a marca de sua época e de sua classe. Afinal, a vida nessa terra era apenas um campo de testes para merecermos ou não a vida eterna. É um poema repleto de silêncios que se adequam perfeitamente ao que está sendo narrado (a interrupção abrupta dos versos espelha a interrupção abrupta da vida pela morte), e que, para ser plenamente aproveitada, aliás, como qualquer poesia, precisa ser ouvida em uma boa declamação. Por fim, ainda se vê, nas coplas, o forte didatismo que é marca da poesia medieval: o poema não busca nem deseja a ambiguidade, ele quer transmitir uma mensagem e faz tudo para que seja transmitida com precisão. Em didatismo, em virtuosidade, em cosmovisão, as coplas certamente representam o auge da poesia medieval espanhola, já na véspera de quando será varrida pelos ventos renascentistas.

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Vídeos abertos

Leituras

Seleção de poesias dos livros:

Como ler

Se possível, comprem os dois livros da Penguin (são acessíveis, baratos, com boas notas, disponíveis em ebook), mas todos os romances estão na internet (esse é a melhor coleção): mais perto da aula, farei uma lista dos indispensáveis. Em português, Garrett é uma excelente coletânea do romanceiro luso e Prado traduz os romances hispânicos mais importantes. O único áudiolivro é da LibriVox e a qualidade é irregular: no YouTube é fácil encontrar gravações de cada romance individual. As coplas de Manrique  são curtinhas, estão disponíveis em site bilíngue e em dezenas de versões em áudio no YouTube.

Espanhol

  • —> Romancero [Editorial Crítica, ed. Paloma Diaz-Mas.] (pdf)
  • Romancero [ed. Menéndez Pidal.] (pdf)
  • Romancero viejo (pdf)
  • Romancero viejo (site)
  • El romancero viejo, no Instituto Cervantes (site)
  • El romancero viejo, na Wikisource (site)
  • Poesía, de Jorge Manrique [Penguin, ed. Giovanni Caravaggi.] (kindle, pdf)

Português

Inglês

Audiolivro

Apoio

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3. Cavalaria: Amadís de Gaula e Cárcere do amor, séc XV

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: parte I, parte II)

No século XV, a prosa consegue finalmente se separar da historiografia, rompendo uma associação (prosa=verdade e poesia=ficção) que já durava séculos. Antes, na Idade Média, a literatura servia basicamente uma função didática. Nos dois textos dessa aula, a função didática ainda é predominante na Celestina (aula 4), se tornará mero pretexto. A novela sentimental será, ao lado das novelas de cavalaria, o gênero dominante de ficção em prosa do século XV: o Cárcere do Amor e o Amadis de Gaula são suas duas obras-primas, os exemplares do gênero mais lidos, falados, comentados, imitados do século. Não deixa de ser sintomático que justamente no século marcado por mais conflitos entre a burguesia que tenta nascer e a aristocracia que tenta se manter seja o auge tanto da literatura sentimental quanto cavalheiresca.

O Amadis de Gaula é uma perfeição, uma purificação, o mínimo denominador comum do romance de cavalaria arturiano, agora sem a traição de Lancelot, sem o misticismo da busca pelo Graal, sem as loucuras amorosas de Tristão. Amadis é o cavaleiro perfeito, vivendo aventuras completamente artificiais em um mundo totalmente fantástico. Ele é tão pouco espanhol que não se sabe nem com certeza onde foi escrito: a versão mais antiga que temos está em espanhol, mas ela afirma ser uma refundação de histórias anteriores, que não sabemos nem onde nem quando foram escritas: talvez Portugal, talvez França.

Dom Quixote, quando se arma cavaleiro andante, está emulando seu ídolo, Amadis de Gaula, que será incessantemente citado e referenciado no romance. Normalmente lido como sátira ou paródia ao Amadis de Gaula, e aos romances de cavalaria, o Dom Quixote também pode ser lido como a culminação do gênero, como o mais perfeito, honesto, bondoso, generoso de todos os cavaleiros andantes. Seja o Dom Quixote sátira aos livros de cavalaria ou o mais perfeito livro de cavalaria, não tem como realmente ler, entender, gostar, se engajar com Dom Quixote sem ter antes passado pelo Amadis de Gaula. Esse é um dos motivos dele estar aqui, como uma de nossas leituras.

A novela sentimental, aqui representada pelo Cárcere do Amor, é como uma variação da novela de cavalaria: onde as novelas de cavalaria apresentavam aventuras fantasiosas, vividas por cavaleiros andantes perfeitos, que sofriam por suas belas damas sans merci (sem piedade), as novelas sentimentais mantêm somente essas convenções do amor romântico cortesão e abdicam das aventuras fantasiosas.

A popularidade do Amadis de Gaula explica até mesmo a nossa colonização. A America já estava imaginada antes de ser encontrada. Quando portugueses e espanhois invadem as Américas e começam a colonizá-la, os primeiros colonos e conquistadores ainda vivem, em seu imaginário, a realidade fabulosa dos cavaleiros andantes e da Reconquista contra os mouros. Em seu universo mental, a América era apenas mais uma entre tantas terras míticas citadas no Amadis de Gaula e, cada soldado, fantasiava a si mesmo como um novo Amadis. Não por acaso muitos dos topônimos americanos saíram direto da obra: Amazonas, Califórnia, Patagônia, etc. (A colonização da América será tema da aula 5.)

Existem poucas maneiras melhores de conhecer o espírito de uma época do que lendo suas obras primas mais amadas, mais lidas, mais comentadas, mais imitadas, mais parodiadas. O Amadis de Gaula envelheceu mal, mas ainda vale a pena ler ou a versão resumida em português ou trechos da versão espanhola. O ciclo arturiano nos legou a tradição de heróis falhos e adúlteros (sempre mais interessantes) mas o Amadis de Gaula ainda vive em todo herói puro, perfeito e idealizado. Quem é o Super-Homem senão o nosso atual Amadis? Já o Cárcere de Amor, com todos seus exageros, é uma obra que ainda hoje se lê com prazer, escrita em belíssimo estilo e com fortes imagens.

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Leituras

Como ler

Cárcere de amor: Recomendo ler na edição bilíngue em catálogo no Brasil, consultando as notas do pdf da Editorial Crítica. Amadís de Gaula: por ser gigantesco, não tem como ler tudo: em espanhol, recomendo ler os trechos selecionados das antologias do Instituto Cervantes ou da Penguin; em português, a edição brasileira, em catálogo, resume tudo em 170pp e está disponível em pdf.

Espanhol

Português

  • —> Cárcere de Amor, de Diego de San Pedro [150pp, Imprensa Oficial SP, trad. C. Giordano. Bilíngue.]
  • —> O Romance de Amadis, de Garci Rodriguez de Montalvo [133pp, Martins Fontes, trad. Afonso Lopes Vieira.] (pdf)

Inglês

Áudiolivro

Site

  • Portal de “livros de cavalaria” no Instituto Cervantes (site)

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4. Subversão: Celestina, séc. XV

(Vídeo da aula, só para alunas pagantes: Celestina)

Um mocinho vê uma mocinha em um jardim e se apaixona à primeira vista. Querendo se aproximar, contrata, por intermédio de seu criado, uma velha casamenteira. Com uma sinopse que poderia ser a de uma novela sentimental como Cárcere do Amor, a Celestina rapidamente se transforma uma tragédia irredimível, terrível, inesquecível. Nada é o que parece, nenhum personagem é virtuoso, a subversão dos cânones sentimentais é total: os nobres apaixonados pensam apenas em seus próprios prazeres, os pobres se esfaqueiam para ver quem enganará os nobres e os burgueses só querem saber de amealhar mais riquezas.

A Celestina é das maiores obras-primas da literatura mundial e, na espanhola, perde somente para Dom Quixote (aulas 13 e 14) e para O Poema do Cid (aula 1). Pela primeira vez na Espanha, temos uma grande obra literária que também é iconoclasta, satírica, demolidora; precursora necessária tanto do Lazarilho de Tormes (aula 7) quanto do Dom Quixote (aulas 13 e 14); paródia cruel das novelas sentimentais como o Cárcere de Amor ou idealistas como Amadis de Gaula (aula 3); denúncia do mundo irreal de expectativas irreais de virtudes irreais dessa literatura do amor cortês cavalheiresco; obra-limite e verdadeiro testemunho literário da total crise de valores que marca a passagem da Idade Média para o Renascimento.

No começo do XVI, as cidades crescem, habitadas por uma classe servil pobre e sem laços, servindo uma nobreza irresponsável e corrupta, que se aliou à uma monarquia cada vez mais absolutista e autoritária. Enquanto isso, as classes urbanas, que tentaram se fortalecer ao longo do XV, terminam o século derrotadas e sem rumo, lideradas por um nova (e débil) burguesia tão focada em aquisições materiais que acredita que realmente acredita! que acumular riquezas lhe isolará, lhe protegerá dos horrores e vicissitudes da existência. Novelas urbanas como A Celestina e o Lazarilho de Tormes (aula 7), cruéis e satíricas, são sintomas e produtos desse processo histórico: elas colocam em cheque e expõem ao ridículo não só os antigos valores medievais, sentimentais, cavalheirescos, não só a religião cristã e o amor cortês, mas também os novos valores racionais, burgueses, pré-capitalistas que vão surgindo – não é a à toa que A Celestina se encerra com o lamento de Plebério, o burguês perfeito, que faz tudo certinho, e ainda assim perde tudo. Se o Renascimento simboliza a vitória da razão, essa mesma razão revela um universo sem sentido, onde os bons sofrem e os maus são recompensados, onde a própria razão pode ser utilizada para atacar e questionar a si mesma.

A Celestina é o testemunho ótimo, perfeito, não só de uma época em crise política, religiosa, moral, mas também literária: todos os modelos literários estabelecidos estavam em crise (o Cárcere de Amor e o Amadis de Gaula, na aula 3, representam o auge da novela sentimental e de cavalaria) mas o romance como o conhecemos ainda não havia surgido. É empolgante ler A Celestina pensando que foi escrita em uma breve janela literária onde todas as possibilidades ainda estavam em aberto, onde tudo ainda era possível. É um conto ou é uma novela? Uma peça ou uma obra de teatro? Está escrita em prosa, então, não é poesia? É composta somente de diálogos, então, é teatro? Mas é longa demais para ser encenada e, apesar de ser toda dialogada, contém uma deliciosa quantidade de apartes, que nos permitem um acesso profundo à interioridade das personagens que nos remete mais ao romance que ao teatro. Todos estão contra todos, em conflito feroz, mas não temos uma voz narrativa autoral que nos dê um porto seguro, que nos indique um caminho, que nos mostre por quem torcer: quem está certo? Quem está errado? Nós, pessoas leitoras, devemos estar do lado quem? Onde nos encaixamos? Não sabemos. O romance (a peça? o livro?) nos puxa o tapete a cada página e, quando finalmente nos abandona, é em uma posição de desamparo total, quase todas as personagens mortas e em um dos mais dolorosos gritos fúnebres da literatura. E a nós, pessoas leitoras, só nos resta, a revelia e dolorosamente, formar nossos próprios juízos, nossas próprias opiniões.

O Dom Quixote é considerado como o primeiro romance moderno, entre outras coisas, por criar a figura do primeiro leitor moderno, o primeiro leitor que precisa formar sua própria opinião sem o auxílio (na verdade, a revelia) da voz narrativa. Mas, se for esse o critério, talvez o primeiro romance seja A Celestina.

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Leitura

Como ler

As edições espanholas da Penguin, Castália e Cátedra são excelentes, com muitas notas explicativas; as de Núñez e Frauca também, com a vantagem de estarem de graça na internet. O texto pode ser difícil: a versão modernizada em espanhol de Puértolas e a tradução anglófona de Bush me ajudaram. Para quem estiver tendo dificuldades, a adaptação teatral brasileira de Ayala resume o texto brutalmente, mas é ágil e fluente. O áudiolivro funciona como excelente acompanhamento à leitura e o filme é bom, com ressalvas: posso compartilhar o arquivo.

Espanhol

Espanhol modernizado

  • —> La celestina [Castalia Odres Nuevos, versão Soledad Puértolas. Integral.] (kindle)
  • La Celestina [Instituto Cervantes, ver. Félix Álvarez Sáenz. Adaptação resumida.] (site)

Português

Inglês

Áudio

  • La Celestina [Audible, narr. Lidia Ariza, Luis Del Valle, 7h58min.]

Vídeo

  • —> Filme La Celestina [Espanha, 1996, dir. Gerardo Vera] (AVI, 1,33MB)

Site

  • No Instituto Cervantes (site)

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Setembro: hiato

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5. Conquista: Lenda negra e Destruição das Índias, séc. XVI

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I Cronologia, II Las Casas, III Controversia, IV Conclusões)

A descoberta da América é certamente um dos eventos mais importantes da aventura humana. (Infelizmente, não sabemos nem mesmo quando aconteceu: provavelmente 15 mil anos atrás, mas há controvérsias.) Já a chegada das primeiras pessoas europeias poderia até ter sido importante, mas os acampamentos vikings no Canadá deixaram poucas consequências históricas. Para bem ou para mal, a conquista do Novo Mundo pelos espanhois, exatamente em sua época de maior poderio militar e de apogeu cultural, é o evento que vira o mundo de cabeça para baixo.

Como descrever hoje o choque e a maravilha que foi a descoberta de que o mundo era povoado de um sem-número de sociedades, com cores, religiões, línguas, costumes, todos diferentes entre si? Não foram só os europeus que descobriram povos que antes não conheciam, mas esses povos também “descobriram” os europeus e descobriram, através dos europeus, os outros povos que também tinham sido “descobertos”. Nesse revolucionário processo de descoberta, todos esses povos, opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados, que antes viviam existências insulares, em contato somente com seus vizinhos mais próximos, descobriram que faziam parte de uma ampla humanidade, de povos vastamente diferentes, habitando uma enormidade de terras, continentes, países, vegetações. Os espanhóis não descobrem a América, naturalmente, que já estava descoberta e habitada, mas sim esse novo conceito de humanidade.

Não só isso: a simples existência desses povos já colocava em xeque todo o conhecimento acumulado, e raramente questionado, que os europeus traziam da Bíblia e da Antiguidade clássica e fazia surgirem uma infinidade de novas questões nunca antes formuladas, tanto biológicas quanto éticas, jurídicas e filosóficas, políticas e econômicas. (Em seu novo livro The dawn of everything, a new history of humanity, que estamos estudando no curso História do Mundo Enquanto Fofoca, David Graeber argumenta justamente que vieram dos povos originários as ideias pela quais os europeus ficaram famosos nos séculos seguintes: iluminismo, liberdade, democracia.)

No começo do século XVI, antes que a Inquisição e a Contrarreforma abafassem os ventos humanistas que começavam a soprar, a Espanha foi palco de um dos debates filosóficos mais interessantes, importantes e conseqüentes da história da humanidade: afinal, essas pessoas, que andavam nuas e comiam umas às outras, que não tinham nem fé, nem lei, nem rei… eram pessoas com alma? Ou eram simples animais em forma de gente? E, se fossem pessoas, que direitos teriam? Teriam direitos inalienáveis pelo simples fato de serem pessoas humanas, independente de serem cristãs ou não? Entre 1550 e 1551, na cidade de Valladolid, na Espanha, esse debate colocou em pauta questões que até hoje nos afetam e nos mobilizam. No Brasil de 2022, quando alguém diz, a sério, que “direitos humanos só para humanos direitos”, ela está ecoando esse debate.

Nossa leitura será a obra mais popular de Frei Bartolomé de Las Casas, uma denúncia contundente e virulenta dos crimes espanhóis no Novo Mundo. A edição brasileira da L&PM contém um adendo que nos interessa ainda mais que o próprio texto: “Sumário da disputa entre o Bispo Dom Frei Bartolomé de las Casas e o Doutor Sepúlveda” (pp.116-141), um resumo do debate de Valladolid.

Essa obra de Las Casas é acusada, até hoje, de ter originado a “leyenda negra”, ou seja, a ideia de que a Espanha teria sido uma potência imperialista particularmente mais cruel do que as outras. Se, por um lado, sabemos que a Espanha de fato cometeu crimes terríveis — a obra de Las Casas é uma das primeiras a documentá-los —, as outras potências imperialistas (Portugal, França, Inglaterra, Holanda, Itália) não foram melhores, e todas tiveram intenção e oportunidade de pintar sua inimiga Espanha nas piores cores. Sim, a prática colonialista espanhola foi bem diferente da sua teoria, mas não deixa de ser digno de nota que somente na Espanha esses debates teóricos aconteceram, e aconteceram a sério, mobilizando a intelectualidade, a aristocracia, a realeza. As outras potências imperialistas europeias cometeram os mesmos crimes sem a mesma capacidade de introspecção e autoquestionamento. O que acontece quando o maior império da Terra, no auge do seu poder, ousa questionar a si mesmo?

Essa será a aula menos literária e mais histórica. Vamos conversar sobre a obra de Las Casas, sobre sua responsabilidade na criação da “leyenda negra” (e como ela continua até hoje influenciando a ideia que o mundo e que a própria Espanha tem sobre si mesma) e sobre sua participação do debate sobre os direitos dos povos originários (e como esse debate continua pautando muito da nossa discussão contemporânea sobre direitos humanos, liberdade, cidadania).

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Leitura

Como ler

Recomendo que leiam a versão em português da editora L&PM (coleção L&PM/História) pois só ela tem o texto mais importante: “Sumário da disputa entre o Bispo Dom Frei Bartolomé de Las Casas e o Doutor Sepúlveda” – são as últimas 25 páginas. Não consegui encontrar outra edição que tivesse esse trecho. Quem preferir, pode ler em espanhol ou inglês, e ler apenas esse trecho da edição brasileira – que também existe em pdf. Bendito Eduardo Bueno, que editou essa maravilhosa coleção.

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6. Renascimento: Garcilaso de la Vega, séc. XVI

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I Renascimento, II Precursores, III Garcilaso, IV Poesias)

No começo do século XVI, um aristocrata espanhol volta da guerra na Itália, começa a fazer poesias nas métricas italianas de Petrarca e muda a literatura espanhola para sempre. Garcilaso de la Vega traz uma nova sensibilidade, musicalidade, temática, à poesia lírica espanhola, abandonando tudo aquilo que marcava a poesia espanhola medieval, seja o didatismo e a ênfase religiosa, quanto a musicalidade fácil das rimas tradicionais do romanceiro, e se abrindo a novos cenários e novos temas, mais pastorais, mais bucólicos, mais idealizados. Sua poesia é considerada o marco da Renascença na Espanha.

Em 1492, os reis católicos Fernando e Isabela unificam a Espanha, ao mesmo tempo em que Colombo chega na América. A Espanha passa a ser não apenas o primeiro estado moderno da Europa mas também sua maior potência militar e imperial. Enquanto isso, os ventos históricos sopram para todos os lados: por um lado, uma das primeiras ações dos Reis Católicos é expulsar os judeus da Espanha. Por outro, um certo humanismo erasmista (inspirado nas obras de Erasmo de Roterdã), mais aberto a influências estrangeiras, mais liberal, mais reformista da Igreja, também sopra, possibilitando uma explosão criativa. Em 1517, Lutero prega suas teses da Igreja de Wittenberg e começa o longo processo histórico da Reforma. Indivíduos reformistas e críticos de muitos elementos da Igreja, como Erasmo, precisam escolher: vão se juntar a Lutero e aos novos protestantes, ou vão criticar a Igreja a partir de dentro? Erasmo escolhe a segunda opção, mantendo suas críticas à Igreja Católica, permanecendo católico, e polemizando com Lutero. Essa postura, possível somente ao longo da primeira metade do século XVI, possibilitará a primeira explosão criativa da literatura espanhola. Finalmente, o Concílio de Trento, em 1563, solidifica a posição ideológica política e teológica da Igreja Católica e dá início à Contrarreforma, a violenta e reacionária reação da igreja católica ao protestantismo. A Espanha imperial faz a escolha de se jogar com tudo na Contrarreforma e se coloca como a maior defensora do “verdadeiro” catolicismo: ao longo dos próximos cem anos, ela perderá seu poderio, seu império, sua influência na Europa em longas e infindáveis guerras religiosas.

Na poesia, esse primeiro período, englobando o século XVI de modo geral, se considera chamar “Renascentista”, mais aberto ao humanismo erasmista e ao petrarquismo italiano, mais focado no amor, seja o amor terreno ou o amor místico a Deus: seu maior representante, na poesia, é Garcilaso; na prosa, o autor do Lazarilho de Tormes (aula 7); o segundo período, englobando o século XVII de modo geral, mais defensivo e mais reacionário, mais erudito e mais pessimista, se convencionou chamar “Barroco”, e seus maiores representantes são o poeta Góngora (aula 10) e o dramaturgo Calderón de la Barca (aula 12).

Agora, esse novo homem renascentista (que Garcilaso representa) é aquele que coloca a si mesmo no centro do mundo: suas relações com Deus, com a natureza, com os outros homens, já não são mais as mesmas. Ele percebe que tem o poder de se construir ou de se destruir, mas, para isso, precisa se conhecer. Assim, uma das principais diferenças entre essa nova poesia renascentista que surge e a poesia medieval que ela suplanta é a sua interiorização, uma certa virada para o interior, um olhar do homem para dentro de si mesmo.

A medida em que o castelhano ia se firmando como a língua de expressão do povo espanhol (em oposição ao latim que começava a perder terreno como língua culta e literária) também se formava a ideia de que seria uma língua fraca, pobre, precária — em especial na comparação com os “gloriosos” feitos de armas dos espanhóis durante seu Século de Ouro. O toscano, por oposição, é que seria uma língua moderna culta, literária, erudita, contando com poetas do nível de Dante e Petrarca e sem dever nada ao latim. Então, ao longo do século XVI, na Espanha e também em Portugal (é uma das principais reclamações do narrador de Os Lusíadas), existe a consciência de que são nações em busca de poetas que lhes cantem como merecem. Na Espanha, é Garcilaso quem primeiro abandona as formas poéticas tradicionais (aula 2) e abraça a poesia italianizante petrarquista, combinando-a com a poesia pastoril latina de Virgílio. Torna-se assim o maior poeta do século, não por sua originalidade (que não será um valor literário a ser perseguido até o século XIX) mas por ser o melhor em manipular e recombinar todas essas tradições: Garcilaso não quer ser original, mas apenas fazer com a língua espanhola, ou pela língua espanhola, o que Petrarca fez com e para o toscano. A grande importância de Garcilaso é que sua conquista e adaptação dos modelos literários italianos ao espanhol possibilita uma nova linguagem poética que será usada, explorada, desenvolvida por todos os escritores das gerações seguintes: sem Garcilaso, não haveria nem Góngora (aula 10), nem Cervantes (aulas 13 e 14).

O que Petrarca inventa, na poesia mundial, e Garcilaso aperfeiçoa na poesia espanhola (e Camões, na portuguesa) é uma nova ideia de interioridade individual. Surge o conceito de pessoa como temos hoje, uma certa introspecção que antes não tinha nem vocabulário para ser articulada. Outros temas de Garcilaso são a busca pelo amor ideal, uma visão melancólica e estoica da vida e, por fim, uma certa união do homem com a natureza que, antes, não fazia nem sentido — o homem medieval via pouco valor na natureza, o mundo era apenas o palco onde mereceríamos ou não a salvação eterna. Talvez seja a grande diferença: a poesia medieval, em larga medida didática, tinha como objetivo ensinar ao leitor como ser um melhor cristão, ou seja, como salvar a própria alma; já a nova poesia renascentista quer fazer do homem um melhor homem no mundo hoje. (O mundo, e nele, a natureza, agora importa.) Garcilaso, como Petrarca, não fala de seus amores reais, mas sim de uma certa angústia pela distância entre o amor ideal pelo qual ansiava e a triste e decepcionante realidade. Ainda assim, era essa a realidade do mundo e era importante aceita-la estoicamente. Grande parte da poesia renascentista é definida por essa duas vertentes que Garcilaso representa: a platônica (busca pelo ideal) e a estoica (indiferença perante o próprio sofrimento).

Garcilaso está nas histórias literárias espanholas por ter trazido de Petrarca não apenas o verso italiano, mas a própria ideia da consciência individual. Mas não é por isso que nós ainda o lemos, e sim porque, em uma época de poesia extremamente codificada e estilizada, onde o grande objetivo era imitar e emular os mestres, ele consegue, em um espanhol belíssimo, harmônico e musical, suave e ondular, comunicar e transmitir para nós toda a forte emoção humana, real e profunda, que essas formas fossilizadas tinham objetivo de transmitir e há tanto tempo já não conseguiam. Petrarca, Garcilaso e Camões têm isso em comum: quando conseguem transcender a esterilidade das formas que escolheram usar, quando conseguem deixar entrever por entre as frestas do estilo fossilizado, as profundezas de suas subjetividades e individualidades, de suas dores e amores, é quando percebemos porque ainda são considerados alguns dos melhores poetas de todos os tempos.

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Poesias selecionadas de

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Passarei um pdf com uma seleção de poesias que leremos. Recomendo baixar a antologia bilíngue da Embaixada Espanhola, navegar pelos sites e, se quiserem, comprarem ou baixarem as antologias individuais das artistas que mais gostarem.

Outras antologias

Espanhol

Bilíngues português/espanhol

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Sites

  • Poesias, de Garcilaso de la Vega (site bilíngue)
  • Eglogas y Elegías, de Garcilaso de la Vega (site)

Áudio

  • Écloga I, de Garcilaso de la Vega [Narr. José Luis Ibáñez, 2011. 29min38]

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7. Malandragem: o Lazarilho de Tormes, séc. XVI

(Vídeo da aula, só para alunas pagantes: Lazarilho)

Já houve quem descrevesse a Espanha do século XVI como um país de pícaros e místicos. Não é uma má definição. Sobre os místicos, falaremos na aula 8. Já o surgimento do romance pícaro (e do Lazarilho de Tormes, sua primeira, mais emblemática, talvez melhor obra) é um sintoma da crise de valores que marca a passagem da Idade Média para a Renascença na Espanha. Nesse momento histórico, a aventura cavalheiresca e a guerra santa contra os mouros já não eram, ou deixavam de ser, formas válidas e possíveis de acumulação de riqueza, mas o trabalho, por seu lado, certamente ainda não era, pelo menos para uma parcela significativa da elite aristocrática e eclesiástica. O que sobra então é uma sociedade de aparências, totalmente corrupta, onde as únicas formas de subir na vida são a mentira, o clientelismo, a malandragem.

Ou seja, estamos no mesmo cenário de Celestina (aula 4), mas dessa vez não restou nem mesmo o pretexto de emular o didatismo das novelas sentimentais e cavalheirescas, como o Amadís de Gaula e o Cárcere de Amor (aula 3). Na prática, ao se insurgir contra essas narrativas idealistas anteriores; ao mostrar seus protagonistas em conflito aberto contra um mundo que já não faz mais sentido; ao fazer uma crítica social aberta e enérgica; e ao exigir do leitor um engajamento ativo na leitura, tanto a Celestina quanto o Lazarilho já se colocam como possíveis inventores do romance moderno, antes mesmo do Dom Quixote, ou, talvez, como seus precursores necessário. Afinal, a  invenção do romance não foi ou não poderia ter sido, obra de um livro só.

O pícaro é sempre o narrador em primeira pessoa de sua história, um homem pobre tentando sobreviver por meio de malandragens e golpes, demonstrando as engrenagens subterrâneas da sociedade que a literatura anterior teimava em esconder. Apesar do ar realista, são narrativas tão estilizadas quanto os livros de cavalaria, mas agora estilizam a vida popular das classes mais baixas, com uma tolerância e um humanismo, com uma energia pândega e um vigor anarquista que, na Espanha, só serão possíveis até o começo da Contrarreforma.

O personagem e narrador Lazarilho nos conta toda a sua vida, desde seus inícios pobres até sua ascensão social. Entretanto, de certo modo, ele é menos protagonista, e mais denúncia do custo humano dessa ascensão: ao nos contar sua trajetória, ele parece não perceber que ela apenas confirma todas as injustiças que ele antes condenava. Se, ao longo da vida, ele sofre nas mãos de pessoas que só vivem de aparências e que nunca são quem dizem ser, seu “final feliz” é tornar-se como elas, como se nada tivesse acontecido, como se essa postura não tivesse sido criticada. Nesse sentido, a maior ataque do livro não é (como parece) contra os religiosos corruptos e hipócritas, ou contra os nobres mentirosos e covardes, mas contra o próprio Lázaro; contra sua incapacidade de perceber que faz parte integrante do mesmo sistema corrupto que denuncia; ou, quem sabe, contra o próprio leitor, que talvez seja conivente com corrupções ainda piores.

O personagem Lazarilho é um dos primeiros, senão o primeiro, narrador inconfiável da literatura. Pela primeira vez, acontece o paradoxo entre o que o narrador diz e o que o leitor entende, percebe, pressente. Nas últimas páginas, quando o narrador parece quase pronto a denunciar a sociedade corrupta onde  vive, ele finalmente consegue inserir-se nela, atinge o sucesso e conquista seu final feliz, como se nunca tivesse feito nenhuma crítica social, como se o mundo fosse justo e meritocrático. Nessa contradição paradoxal entre o ponto de vista do narrador e do leitor, o leitor é chamado, talvez pela primeira vez na literatura mundial, a se inserir criticamente na história, a julgar o narrador contra si mesmo, a definir o sentido daquilo que lê. Já é a véspera do romance contemporâneo.

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Leituras

Como ler

A 34 tem uma excelente tradução, boas notas e é bilíngue. As melhores notas são da Peter Lang, na internet. Existem vários áudiolivros, esse é meu preferido.

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8. Mística: João da Cruz e Teresa de Jesus, séc. XVI

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I Misticismo II Cântico III João da Cruz)

A mística do século XVI, essa teologia feita poesia, como disse Unamuno, foi talvez a única filosofia autenticamente espanhola: sua lição mais importante foi ter demonstrado que era possível, que não era sacrilégio, escrever sobre os assuntos mais importantes, mais devotos, mais cristãos, utilizando a mais bela literatura, a mais cuidada poesia.

Lendo as poesias de Garcilaso (aula 6), acompanhamos a criação de um novo tipo de indivíduo, de uma nova subjetividade interior, possibilitada pelos novos ventos do racionalismo humanista. Entretanto, o grande paradoxo do Renascimento é que justamente no momento histórico em que surge esse novo indivíduo que anseia por ser livre e por viver plenamente sua liberdade individual, também surgem novas, gigantesca, opressoras instituições que coíbem e restringem essas liberdades. Na Espanha, a união de uma Monarquia cada vez mais forte e absolutista, vencedora das batalhas contra a burguesia e a nobreza no século anterior, e uma Igreja Católica colocada na defensiva contra um protestantismo em ascensão, dá origem à tão famosa e mal-falada Inquisição Espanhola.

Se Garcilaso representa o melhor da poesia renascentista espanhola desse breve interlúdio de mais liberdade entre o final da Idade Média e a consolidação da Contrarreforma, então o florescimento da poesia mística pode ser considerado uma reação desde dentro contra o endurecimento da Igreja Católica. Ameaçados de esmagamento pela própria instituição a qual pertencem e dedicaram a vida, alguns religiosos apostam tudo em uma experiência direta com Deus e com o transcendente, criando poesias de uma força lírica inédita, nunca antes tentada, nunca depois igualada. Aliás, era uma poesia tão, mas tão inédita, tão única, tão independente de qualquer sistema ou referência, que esses místicos espanhóis se viram obrigados a escrever longos tratados em prosa explicando suas poesias palavra por palavras — tanto porque não havia paralelos nem literários, nem teológicos para o que estavam escrevendo, mas também, mais importante, mais prático, mais imediato, para demonstrar à Inquisição que essas poesias eram perfeitamente ortodoxas e contrarreformistas. Nós, hoje, felizmente, podemos somente ler as oito estrofes de “Noite Escura”, de João da Cruz, apreciar sua força poética e sua multiplicidade de sentidos, sem nos deixarmos prender pelo livro de duzentas páginas que João da Cruz escreveu para explicar somente os primeiros dois versos. (O livro Noite Escura é belíssimo: para mim, Alex, foi fundamental em meu processo religioso de ordenação zen-budista, mas, literariamente falando, não acrescenta nada à compreensão da poesia “Noite Escura”. Pelo contrário, só atrapalha.)

Escreveu Thorstein Veblen, em Teoria da Classe Ociosa (1899), que são raras as pessoas que podem suportar por longo tempo a desaprovação de seus pares: os religiosos e místicos seriam uma exceção apenas aparente, pois suportam a desaprovação de seus pares terrenos pois contam (ou imaginam contar) com a aprovação de seu amigo imaginário divino. Veblen, naturalmente, não respeita nenhuma religião (aliás, não respeita nada; por isso, é tão brilhante), mas seu comentário se aplica com perfeição à poesia de João da Cruz e Teresa de Jesus: o grande poder da literatura de ambos vem do fato de não estarem escrevendo para seus pares, para seus colegas, para seus contemporâneos, nem mesmo para a posteridade, e sim, para Deus. É justamente isso que permite que João da Cruz escreva uma poesia tão absolutamente original, sem se apegar a nenhum modismo literário, a nenhuma escola, sem nenhuma preocupação em ser nem mesmo compreensível. (Daí, naturalmente, os longos livros que escreve para fazer a exegese de suas curtas poesias.) Se, na Idade Média, a literatura e a poesia são por definição didáticas — não faria sentido escrever uma obra e deixar em dúvida se o leitor entenderia ou não a mensagem, ou pior, permitir que o leitor, por não entender a mensagem, arrisque sua alma imortal — João da Cruz inverte radicalmente essa escala de valores: sua poesia é menos didática justamente por ser mais religiosa, por estar falando direto a Deus, sobre Deus, para Deus.

No caso de Teresa de Jesus, a situação era parecida, mas, em função de seu gênero, diferente. Por toda sua vida, pesou sobre ela a suspeita (potencialmente fatal) de pretensão, soberba, arrogância: seus pares a acusavam de querer ser santa, de se achar sábia. Quem pensava que era para escrever assim? Então, para Teresa, uma verdadeira potência intelectual e espiritual, era uma questão de vida ou morte dissimular sua própria ousadia, se fingir de fraca, escrever de maneira tímida e insegura. As limitações práticas acabaram agindo em seu favor e deram ainda mais força à sua literatura: impedida de usar o estilo literário corrente, culto e erudito, barroco e palavroso, de seus pares masculinos, Teresa precisou criar um novo estilo para transmitir suas experiências místicas e, assim, de maneira simples e direta, sem artifícios retóricos, produziu algumas das mais belas páginas da literatura mística mundial.

A experiência mística, por definição, é aquela que não é encontrável por meio do intelecto, nem expressável por meio de palavras. João da Cruz, tentando expressar poeticamente essas experiências místicas inexpressáveis, faz um amálgama de todas as formas poéticas anteriores, da lírica tradicional popular ibérica à nova poesia italianizante petrarquista, da poesia erótica bíblica do Cântico dos Cânticos à poesia pastoril bucólica de Virgílio, em uma nova poesia inclassificável, as vezes incompreensível, mas de uma intensidade raramente vista. Mais tarde, ao tentar escrever, em prosa, uma explicação para seus poemas incompreensíveis, João acaba inaugurando também uma nova maneira de ler e de escrever, de entender e de explicar poesia: ao mesmo tempo em que busca deixar claro que suas poesias seguem a ortodoxia católica da Contrarreforma, João também tenta ao máximo deixar suas leitores livres para decodificarem seus versos como quiserem e puderem.

Nessa época tão rica, quando o espanhol literário ainda está se assentando e se criando, quando todas as possibilidades estão abertas, nem mesmo essas novíssimas convenções João da Cruz tolera seguir. Sua poesia não é facilmente decodificável porque, ao canibalizar vorazmente todas as formas poéticas passadas e no afã de transmitir sua experiência mística inexpressável, ela só faz sentido no contexto de sua fé: Deus é o leitor ideal, único, supremo, que permite a João da Cruz transgredir todos os códigos literários vigentes e a escrever poemas tão belos, tão únicos, tão originais.

A poesia mística é a apoteose dessa nova liberdade poética do Renascimento, introduzida por Garcilaso (aula 6), aperfeiçoada por Quevedo e Lope da Vega (aula 11) e levada aos seus extremos barrocos por Góngora (aula 10). A poesia agora tem uma linguagem própria, autônoma, ambígua: não é mais didática, não tem mais um significado dado, prévio, fechado. Ela é uma realidade em si mesma, e só pode existir em parceira com a pessoa leitora. A Espanha do Século de Ouro não inventa somente o romance contemporâneo, mas também a própria poesia moderna.

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Passarei um pdf com uma seleção de poesias que leremos. Recomendo baixar a antologia bilíngue da Embaixada Espanhola, navegar pelos sites e, se quiserem, comprarem ou baixarem as antologias individuais das artistas que mais gostarem.

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Sites

  • Cântico espiritual, de Juan de la Cruz. (site)
  • Poesias, de Juan de la Cruz (site bilíngue)
  • Obra poética, de Fray Luis de León (site)
  • Poesias, de Fray Luis de León (site bilíngue)
  • Las moradas o Castillo interior, de Teresa de Jesus (site)
  • Poesias, de Teresa de Jesus (site bilíngue)
  • Portal para “San Juan de la Cruz” no Instituto Cervantes (site)

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9. Esculacho: Don Juan, séc. XVII

(Vídeo da aula, só para alunas pagantes: Don Juan)

A Espanha legou vários arquétipos importantes à cultura mundial, do cavaleiro real El Cid (aula 1) ao cavaleiro ideal Amadis (aula 3), do cavaleiro louco Quixote (aulas 13 e 14) ao malandro pícaro Lazarilho (aula 7), mas um dos mais esquecidos e mal lembrados é o Don Juan. Esquecido porque raramente lembramos que é uma criação espanhola, mal lembrado porque as versões posteriores acabaram ofuscando o Don Juan original. Temos o sedutor canalha de Moliére, o jovem ingênuo de Byron, o velho cansado de Handke, o iludido psicótico no filme Don Juan de Marco, para citar somente alguns, mas todos têm pouco a ver com o original.

Don Juan surge pela primeira vez na peça O burlador de Sevilha, do começo do século XVII, atribuída a Tirso de Molina – há dúvidas sobre a autoria. O título da peça é importante, pois Don Juan não é “sedutor” strito senso, mas um “burlador”, ou seja, um “esculachador”. (Fica a dúvida: por que todas as encarnações posteriores do Don Juan escolheram esquecer ou minimizar seu lado “esculachador” e ressaltar o “sedutor”?)

A sedução sexual é sua ferramenta para esculachar mulheres, mas ele esculacha igualmente todos os homens que pode, pelos mais diversos métodos, da simples humilhação ao assassinato. Ao fazer isso, ele esculacha não só suas vítimas, mas a sociedade como um todo, corrupta e desigual, exposta em sua incapacidade de punir um nobre rico e bem-relacionado, por mais criminoso e blasfemo que seja seu comportamento. No final, Don Juan encontra seu merecido castigo por meios sobrenaturais.

O personagem representa um novo tipo de narcisismo tóxico só possível nessa modernidade que vai surgindo: se 0 humanismo renascentista colocou o homem no centro do universo, Don Juan é o homem que alegremente aceita e abusa dessa posição. Não um mito sexual, mas um mito de poder, uma paródia grotesca e uma denúncia política das novas possibilidades de potência humana abertas pelo Renascimento: “É raro um poder tão forte, tão grande, tão demoníaco.” (Renato Janine Ribeiro, “A política de Don Juan”.)

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Leituras

Como ler

A edição da Penguin tem boas notas e está disponível na internet. Em português, a Perspectiva tem uma excelente tradução.

Espanhol

Português

Inglês

Site

  • Portal para “Tirso de Molina” no Instituto Cervantes (site)

Áudio

Vídeo

Teatro

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10. Barroco: Góngora, séc. XVII

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I Barroco, II Polifemo até estrofe 14, III Polifemo 15-28, IV Polifemo 28-58, V Polifemo 59-final)

O Barroco, quase sempre definido por oposição, é o período cultural, artístico, literário, arquitetônico que se segue ao Renascimento, quando passam a soprar com menos força os novos ventos humanistas que haviam tentado substituir os valores medievais (que naturalmente permanecem) pelos valores da antiguidade (que nunca haviam realmente ido embora). Em 1563, termina o Concílio de Trento, marco da Contrarreforma, ou seja, da reação católica cada vez mais autoritária e conservadora, ortodoxa e violenta, contra o protestantismo; em 1588, a Invencível Armada afunda no Canal da Mancha, tentando desembarcar na Inglaterra, e o Império Espanhol entra em uma fase de decadência da qual nunca sairá. Se a Espanha está na defensiva tanto em termos políticos e militares, quanto religiosos, nunca sua cultura foi tão pujante. O barroco é o auge do Século de Ouro: são os anos de Tirso (aula 9) e Quevedo, Lope (aula 11) e Calderón (aula 12) e, claro, Góngora e Sóror Juana.

Durante séculos, o Barroco foi considerado uma perversão grotesca dos valores renascentistas e Góngora, acusado de seus maiores excessos literários. Enquanto a poesia humanista era clássica e limpa, ponderada e harmônica, os poetas barrocos chafurdariam no exagero e no desequilíbrio, na extravagância e no paradoxo. Inventou-se até um nome ofensivo para o estilo: “culteranismo”, que evocava, por um lado, um excesso de erudição levado ao ridículo, assim como soava próximo a “luteranismo”, o inimigo por definição de tudo que era espanhol. Alguns dos temas principais do barroco são a fugacidade da vida e o desengano da vaidade, a busca pelo excesso e a queda violenta. Se os renascentistas exaltam a natureza e a luz do sol, o otimismo e o racionalismo, e, fundamentalmente, o amor; os barrocos exaltam o artifício e a obscuridade, o desengano e o pessimismo, e, fundamentalmente, a morte. Ou seja, é a literatura de um povo que ousou tentar conquistar o mundo, conseguiu por um breve instante e, então, se afogou de queixo erguido, com seu orgulho e com sua arrogância intactos. Afinal, a vida é apenas um sonho (aula 12), não?

Por fim, em uma época decadente e violenta, a poesia pela primeira vez se volta não para dentro do homem, como Petrarca e Garcilaso haviam feito, mas para si mesma: a poesia barroca tem como única referência a si mesma. Góngora libera a poesia do seu ônus sentimental e mimético: não mais obrigada a representar emoções verdadeiras ou cenários reais, contar histórias ou transmitir ensinamentos, a poesia pode existir quase abstrata e emancipada, por puro gozo estético de si mesma. É uma verdadeira revolução que só começou a ser totalmente apreciada e valorizada recentemente. Em sua época, rendeu a Góngora o título de “príncipe da luz”, por suas poesias “fáceis”, e “príncipe das trevas”, pelas “difíceis”. De qualquer modo, em pleno Século de Ouro, se não foi o poeta mais querido certamente foi o mais influente.

Foi somente no século XX, após a Primeira Guerra, que as vanguardas poéticas começam a ver em Góngora seu precursor, um espírito a frente do seu tempo e um grande poeta que poetizou a própria língua, com uma linguagem hiperbólica e densa, utilizando a palavra não para imitar ou reproduzir a realidade, mas para criar uma realidade poética cuja única referência é a si mesma. Enquanto artistas geniais como Lope de Vega e Quevedo estavam perfeitamente inseridos no sistema vigente (bajulavam os poderosos, apoiavam o projeto imperial, atendiam às demandas do público), Góngora sempre foi rebelde e teve a coragem não só de afrontar os poderes constituídos, como o próprio bom-gosto vigente. Poeta difícil de ser entendido e aproveitado por conta própria, Góngora é um dos melhores autores para se ler em cursos como esse, em grupo e com a ajuda de um professor, com contexto histórico e com explicações estilísticas.

Nossa aula será um close reading, linha a linha, explicando tudo, da obra-prima de Góngora, e considerado o mais perfeito poema barroco, Fábula de Polifemo e Galatea.

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Vídeo aberto

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Leituras

Como ler

Nessa edição da editora Hedra, o poeta Péricles Eugênio da Silva Ramos seleciona, traduz e anota o melhor da obra de Góngora, incluindo uma versão integral, e muito bem explicada, da Fábula de Polifemo e Galatea. Que eu saiba, é o único título de Góngora em catálogo no Brasil hoje. Minha tradução preferida é essa, de José Bento, portuguesa, mas difícil de encontrar e bem mais cara. (Aliás, eu adoro todas as traduções de poesia espanhola do José Bento.) Essa antologia bilíngue da Embaixada Espanhola contém o poema completo também: ela está esgotada, mas já caiu na internet e posso passar o PDF às alunas. A versão original é facilmente encontrável na internet, como nessa página do Instituto Cervantes.

Outras antologias

Espanhol

Bilíngues português/espanhol

Bilíngues inglês/espanhol

Sites

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11. Capa-e-espada: Lope de Vega, séc. XVII

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I Lope, II Fuenteovejuna)

O teatro do Século de Ouro espanhol certamente é uma das maiores contribuições da Espanha à cultura mundial: Lope de Vega foi seu autor mais bem sucedido, mais prolífico, mais genial. Esse teatro, não mais se restringindo à separação estrita de gêneros do teatro clássico (que ainda limitava até mesmo o contemporâneo Shakespeare) já se permitia ser tudo ao mesmo tempo: nem apenas tragédia, levando a sério os dramas aristocráticos, nem apenas comédias, fazendo pouco da vida cotidiana das pessoas comuns, mas enredos misturados onde conviviam todas as classes sociais, todos os tipos de registro, todos os gêneros dramáticos, da Bíblia ao folclore, da História à mitologia. Nunca tinha havido, nos palcos europeus, um teatro tão livre em seus temas e linguagens, apontando para múltiplas possibilidades que ainda estamos explorando até hoje.

Lope escreveu inacreditáveis 1500 peças, das quais sobrevivem 500, e que já bastariam para traçar um perfil completo e multifacetado da Espanha do Século de Ouro. Era um improvisador genial, um poeta com excelente ouvido para a musicalidade popular da língua e, como apontou Auerbach, um autor cujas prioridades (religião, honra, patriotismo, amor) estavam extremamente alinhadas às de seu público. (Introdução aos Estudos Literários) O aparente paradoxo de Lope é ao mesmo tempo em que exalta o camponês (quase sempre desprezado pelo teatro dito sério) também promove valores profundamente conservadores. Para ele, a verdadeira essência da Espanha, aquilo que mais valorizava e buscava cantar e conservar, estaria nessa união do povo com o monarca, na defesa do projeto imperial contrarreformista, e contra quaisquer desvios dessa ortodoxia, seja o liberalismo da burguesia nascente, ou o protestantismo que se espalhava pela Europa.

Nossa leitura é talvez sua peça mais famosa, Fuenteovejuna, um exemplo perfeito dessa operação ideológica: o protagonista-coletivo é toda uma aldeia camponesa que se une para, em nome do povo e do rei, lutar contra a opressão de um aristocrata criminoso. Assim como a Orestéia, de Ésquilo, dramatiza a passagem da lei da vingança para a justiça impessoal, Fuenteovejuna faz o mesmo: é um réquiem do feudalismo, de um sistema político onde o poder estava investido nos nobres, e uma celebração da monarquia absoluta, onde o Rei é o representante maior do povo.

Para quem lê espanhol, recomendo também a peça El perro del hortelano, uma das mais famosas peças de capa-e-espada. Esse gênero, um dos mais característicos do teatro do Século de Ouro, é marcado por tramas rocambolescas e repletas de peripécias amorosas, duelos, fugas, trocas de identidade, etc. Nessa peça, passada em Nápóles, então parte do império espanhol, a Condessa Diana, apaixonada por seu secretário plebeu e impossibilitada de viver esse sentimento (afinal, ela é nobre e ele é do povo, não seria apropriado), se dedica a sabotar a vida amorosa de seu amado. Como o proverbial “cachorro do hortelão”, que guarda a horta contra invasores mas não come vegetais, Diana impede que outras mulheres usufruam do amor que ela escolheu não usufruir. Ambos os personagens, tanto a condessa quanto o secretário, são canalhas e interesseiros, gananciosos e mesquinhos — e não conseguimos deixar de torcer por eles. O texto nunca foi traduzido ao português, mas, como é uma peça de teatro, ouvir o áudiolivro ou assistir o filme pode ser uma experiência até melhor do que a simples leitura.

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Leituras

Como ler

A editora Perspectiva tem um excelente volume, difícil de segurar, mas muito bem traduzido, com as principais peças do Século de Ouro, inclusive Fuente Ovejuna. Para quem quiser ler espanhol, , Recomendo acompanhar ouvindo os áudiolivros.

Português

Espanhol

Inglês

Site

  • Portal para “Lope de Vega” no Instituto Cervantes (site)

Áudio

  • Fuenteovejuna [Audible, narr. Lidia Ariza, Luis Del Valle, 1h47.]
  • El Perro del Hortelano [Audible, narr. Niloofer Khan, Rubén Del Castillo, Pilar Aguilarte, Mai Martín, José Carlos Cuevas, 2h06.]

Vídeo

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12. Teatro: Calderón de la Barca, séc. XVII

(Vídeo da aula, só para alunas pagantes: Calderón e A Vida é um Sonho)

Se Lope de Vega foi o mais popular dramaturgo do Século de Ouro, Calderón de La Barca é hoje considerado o mais perfeito, mais filosófico. Lope produzia uma quantidade estupenda de peças, todas escritas apressadamente, a maioria de pouca qualidade, algumas geniais: Calderón era um arquiteto, cada uma de suas peças é sempre cuidadosamente construída. A Vida é Sonho é, desde sua época, amplamente considerada como sua obra-prima e, consequentemente, como a obra-prima do teatro espanhol do Século de Ouro.

Um rei, ao receber uma profecia que seu filho recém-nascido se tornará um tirano, prende-o em uma torre, sem contato humano, por toda vida. Enfim, decide testá-lo: o príncipe acorda de repente no palácio e é tratado como rei. Ao se comportar como um tirano, o príncipe é drogado de novo e devolvido a sua cela. E fica sem saber: foi um sonho? Em breve, o povo, ao saber que existe um príncipe legítimo na masmorra, destronam o rei e colocam o príncipe em seu lugar. Mas ele continua sem saber: será que ainda é sonho? Afinal, o que é sonho? O que é realidade? O rei, para fugir de um destino profetizado, acaba fazendo com que esse destino aconteça, mas esse destino só acontece por decisão livre de seu filho. O destino, então, estava escrito? Ou não? Existe livre-arbítrio? Se a tentativa do pai de ir contra seu destino faz com que ele aconteça, o filho também precisa encarar o fato de que o preço da ordem é a desordem, que a liberdade só pode ser reestabelecida com a rebeldia. Ou não? (E essa é só a trama principal.)

Parte fundamental da Grande Conversa Espanhola do Século de Ouro, A Vida é Sonho representa a mais completa e articulada resposta barroca à arrogância autossuficiente renascentista: esse homem pretensamente livre que faz de tudo para demonstrar a potência da sua liberdade… só demonstra como está prisioneiro de suas pulsões; esse homem que se coloca no centro do mundo, como se tudo lhe fosse possível… descobre, para sua dor e surpresa, que tudo é efêmero, e que a vida, afinal, é um sonho.

Assim como Fuenteovejuna pode ser lida como uma dramatização da passagem do feudalismo para a monarquia absolutista, A vida é sonho também mostra a passagem entre duas etapas importantes da História: da violência à prudência. O que a peça dramatiza é justamente a luta entre, por um lado, as paixões desordenadas e, por outro, a possibilidade de usarmos nosso livre-arbítrio e nossa razão para escolher a prudência, a decência, a razoabilidade. O cerno do barroco espanhol, e essa é a maior de todas as peças barrocas, é justamente esse jogo de contrastes, prudência e violência, paixões e razão, destino e livre-arbítrio. A essência da obra é esse paradoxo barroco essencial, quase existencialista e reminiscente do Eclesiastes: a vida não é a vida, logo, a vida é um sonho, mas, mesmos nos sonhos, é preciso agir como se o sonho fosse a vida, logo, a vida é a vida. Ou não. Talvez a vida, por ser sonho, seja apenas um sopro, uma vaidade, o que não quer dizer que nossas ações não importam; importam, só que não aqui, mas sim para nossa vida verdadeira, que é a vida eterna.

Nunca tediosa por excesso de explicações, é uma peça política, existencial, filosófica, religiosa, barroca, paradoxal, belíssima, que não tem medo de abarcar os maiores e mais polêmicos temas da época e da humanidade: livre-arbítrio, predestinação, liberdade, bom governo, a educação dos príncipes, as obrigações dos governantes, o domínio sobre si, os direitos das mulheres. O grande mérito de Calderón é criar obras que, ao mesmo tempo em que são densamente filosóficas, dramatizando os grandes dilemas da humanidade, também são atraentes e movimentadas: seguiam todas as convenções das comédias capa-e-espada e atraíam o grande público. Não é pouca coisa.

Quando se fala em Século de Ouro espanhol, não existe um consenso sobre sua duração. Quase sempre se considera que ele termina com a morte de Calderón, em 1680, seu último grande autor. (Outro marco também utilizado é a morte de Sóror Juana em 1695, aula 10.) De qualquer modo, quando Calderón escreve, já estamos na derrocada do Império espanhol, cada vez mais tacanho e contrarreformista, cada vez menos poderoso, acuado por todos os lados. (Em 1640, Portugal e a Catalunha, ambas partes do Império, se rebelam contra a autoridade do Rei. Incapaz de enfrentar ambas rebeliões ao mesmo tempo, o Rei investe todas suas forças em manter a Catalunha, aliás, espanhola até hoje e onde inclusive Calderón entra em combate pela última vez. Portugal, menos sufocado, consegue reestabelecer sua independência. Tivesse outra sido a decisão do Rei, outra muito diferente teria sido nossa história.) Calderón, perfeitamente inserido no ambiente imperial, partidário do Império e da Contrarreforma, ainda assim escreve um teatro onde a rebeldia humana e a busca por transcendência, de modo geral, entram em conflito com os valores estáticos da ordem estabelecida. Se Lope era perfeitamente integrado em seu mundo e em sua ideologia, e se Calderón, de certo modo, nos parece ainda mais conservador e mais religioso, seu teatro pressente as fissuras nesse edifício aparentemente tão sólido e já aponta em direção à modernidade.

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Leitura

Como ler

A editora Perspectiva tem um excelente volume, difícil de segurar, mas muito bem traduzido, com as principais peças do Século de Ouro. Ambas estão nele. Para quem quiser ler espanhol, , Recomendo acompanhar ouvindo os áudiolivros.

Português

Espanhol

Inglês

Site

  • Portal para “Calderón de la Barca” no Instituto Cervantes (site)

Áudio

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Aula-bônus: Cervantes

Como um bônus especial para as alunas do curso Grande Conversa Espanhola, aqui vai a aula sobre a língua espanhola e Cervantes do curso Grande Conversa Fundadora, sobre o grande clássico fundador das principais línguas literárias europeias.

Aula em quatro partes: I Espanha, II Cervantes, III Quixote I, IV Quixote II

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13. Romance: Quixote, 1ª parte, séc. XVII

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: I História, II Cervantes, III Quixote)

O Dom Quixote, de Cervantes, ao amarrar todos os fios que fomos desenrolando ao longo desse curso, não só marca o apogeu absoluto de quatrocentos anos de literatura, como também cria um novo tipo de romance, de protagonista, de leitor, ou seja, um novo tipo de literatura, que ainda é a nossa, até hoje.

Escrito pretensamente para satirizar os artificiosos livros de cavalaria, o Dom Quixote é a história de um Amadis de Gaula louco servido por um Lazarilho aproveitador. Ambos passeiam não só pela Espanha, mas também por uma verdadeira antologia da literatura espanhola: a épica medieval (aula 1) as novelas sentimentais e de cavalaria (aula 3), a narrativa pícara (aula 7), a poesia popular de romanceiro (aula 2), poesia lírica petrarquista (aula 6), poesia erudita barroca (aula 10), as comédias teatrais (aulas 9, 11, 12), todos estão representados e citados, elogiados ou satirizados, no Quixote. Como disse um estudioso: “O Quixote é um mundo poético completo: ele encerra episodicamente, dentro de si, subordinado ao grupo imortal que lhe serve de centro, todos os tipos de literatura em prosa produzidos anteriormente, de tal modo que se poderia adivinhar e recriar toda a ficção anterior, de tal modo que Cervantes a incorporou com perfeição à sua obra”. (Menéndez Pelayo)

Como todo grande texto literário, as diferentes leituras do Quixote ao longo dos séculos também são uma história cultural da literatura espanhola. Em um primeiro momento, o livro foi recebido como comédia, como uma sátira aos livros de cavalaria, e o personagem Dom Quixote, como um homem louco e algo ridículo. No século XIX, porém, os românticos começam a ver no protagonista uma figura pateticamente trágica, uma ilustração do poder da literatura para destruir a vida dos homens. Nada poderia ser mais antigo, porém, do que essa separação estrita entre tragédia e comédia. Muito pelo contrário, o que caracteriza a radical modernidade do Quixote é ser ambos simultaneamente: o protagonista, a princípio cômico, por ser tratar de um louco imaginando ser um herói ideal vivendo aventuras perfeitas em um mundo estilizado, vai se tornando mais e mais trágico a medida em que entra em choque contra a dura realidade, ao mesmo tempo em que a narrativa continua mantendo o tom cômico. Assim, talvez o mais trágico (ou cômico?) do Quixote seja justamente o quão cômica é a sua tragédia, ou o quão trágica é a sua comédia. Não só para ele, aliás, mas também para nós, leitores, que precisamos encarar o fato (trágico? cômico?) de que vivemos em um mundo tão corrompido que já não é mais possível um homem bom simplesmente sair pelo mundo fazendo o bem. São essas contradições, paradoxos, ambigüidades que dão força, energia e permanência ao texto.

Dom Quixote inventa o romance contemporâneo porque, entre outras coisas, inventa o leitor contemporâneo. Até então, o leitor de poesias religiosas ou didáticas, de novelas sentimentais ou de cavalaria, se limitava a aprender a lição que o texto queria ensinar, a sentir o que o texto queria que sentisse. Já o Quixote exige que seu leitor se engaje, que tome partido, que faça escolhas, que seja um historiador dos fatos narrados, um editor dos textos apresentados. Na prática, essa instabilidade narrativa e esse relativismo moral do Quixote são parodias não só das verdades absolutas da cultura medieval cavalheiresca, mas também das verdades proverbiais da cultura popular. Ninguém escapa ao olhar do Quixote.

O coração pulsante do Quixote, o centro vivo que faz com que se comunique com pessoas leitoras de todo o mundo, mesmo as que nunca leram nenhuma outra obra da literatura espanhola, é a interação entre o Quixote e Sancho Pança. O cavaleiro é nobre e bom, mas não tanto assim, pois é louco e sua intromissão acaba causando mais mal do que bem. O pícaro é malandro e interesseiro e só quer se dar bem, mas não tanto assim, pois sua fraqueza é justamente que parece sinceramente acreditar na nobreza de seu falso cavaleiro. Além disso, o pícaro, que deveria ser o malandro esperto, acaba sendo quem mais acredita na autoilusão do louco. Quem é o louco então? Esse diálogo entre um nobre cavaleiro (mas louco!) e um reles pícaro (mas ludibriado!) é um microcosmo, um resumo, um símbolo de como a Espanha via a si mesma: nobre mas louca, malandra mas derrotada.

Uma das primeiras coisas que o Quixote coloca em questão é o status do narrador em terceira pessoa. Antes, nos livros de cavalaria, tínhamos um narrador onisciente que tudo sabia e tudo via. No Quixote, entretanto, o narrador acaba funcionando apenas como um intermediário, como um mestre de cerimônias, que apresenta e faz a mediação entre os vários narradores dos diferentes textos dentro de textos dentro de textos que compõem o romance, diluindo assim o próprio conceito de autoridade narrativa. Afinal, quem é o autor? Quem é o narrador? Qual deles é o principal? Em quem confiar? A pessoa leitora, largada sozinha nessa terra-de-ninguém, sem ter como atribuir a nenhum único narrador a autoridade plena sobre o romance como um todo, acaba se vendo na (incômoda? invejável? inédita?) posição de árbitro da veracidade dos fatos. Pior, muitas vezes, quase sempre, não há como decidir, não existe verdade absoluta possível, então, só nos resta mesmo aceitar essa instabilidade narrativa e esse relativismo moral. Esse leitor, ao dar esse suspiro resignado, já é o leitor contemporâneo, já é um de nós. Toda grande obra de arte cria o seu próprio público. O maior mérito do Dom Quixote na história da literatura é efetivamente criar o tipo de leitor necessário para ler um livro como Dom Quixote.

E não só isso: o personagem Dom Quixote é ele mesmo um leitor e o que dá início à obra é seu objetivo é tornar o mundo mais parecido com os livros de cavalaria. Nós, arrastados juntos, somos leitores de uma leitura. Mas o que o romance exige de nós, essa posição incômoda a qual ele nos força, é a atitude exatamente oposta a do personagem: ao invés de confiar na verdade dos fatos, na verdade das tradições recebidas, só nos resta a dúvida, a incerteza, o ceticismo. Quando a natureza paradoxal do Quixote nos força à dúvida, à incerteza, ao ceticismo, quando nos transforma no leitor contemporâneo, então, já está criado também o romance contemporâneo.

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Leitura

Como ler

Recomendo fazer uma forcinha e tentar ler no original, em uma edição bem anotada (a da Penguin espanhola está bem acessível; a editada por Francisco Rico é considerada a melhor e tem para kindle), com o acompanhamento de um áudiolivro: têm dois gratuitos excelentes, do Instituto Cervantes e dos Estudios Roma. Sobre as traduções do Quixote, considerem esse trecho do primeiro parágrafo: “Tenia en casa… un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocin como tomaba la podadera”. A tradução de Molina (34, Aguilar) é mais literal: “um moço de campo e esporas que tanto selava o rocim como empunhava a podadeira”. A de Ssó (Cia das Letras), mais idiomática: “um rapaz pau para toda obra, que tanto encilhava o pangaré como empunhava o podão”. Nenhuma é melhor, ou mais certa: são filosofias diferentes de tradução. Cabe a cada pessoa leitora escolher. A tradução literal às vezes soa estranha, porém dá mais liberdade à pessoa leitora de interpretar e decodificar o texto; a tradução idiomática toma mais decisões em nome da leitora, porém, é mais gostosa e mais fluida de ler. A edição da 34 tem a enorme vantagem de ser bilíngue. Recomendo fazer uma forcinha e tentar ler no original, em uma edição bem anotada. Em caso de dúvidas, aqui tem uma comparação entre várias traduções, uma matéria da Folha que faz o mesmo e uma entrevista com o tradutor da Cia das Letras.

Bilíngues português/espanhol

  • Coleção Dom Quixote, 2 vols [34, trad. Sergio Molina. Bilíngue.]

Português

Espanhol

Áudio

Site

  • Portal para “Cervantes” no Instituto idem (site)

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14. Meta-romance: Quixote, 2ª parte, séc. XVII

(Vídeos da aula, só para alunas pagantes: parte I, parte II)

Se a primeira parte do Dom Quixote é antologia e culminação de toda a literatura espanhola até esse momento, ou seja, uma olhada para trás, a segunda parte é o verdadeiro exemplar da arte romanesca que nasce ali, e que aponta para o futuro, para a nossa literatura de hoje.

Depois de publicada a primeira parte, em 1605, sua popularidade faz com que comecem a surgir Quixotes apócrifos. Finalmente, um deles faz tanto sucesso que o próprio Cervantes decide escrever uma continuação, agora verdadeira. Na segunda parte, publicada em 1615, o protagonista anda por uma Espanha onde suas aventuras são lidas, conhecidas, comentadas; faz desvios em seu caminho para não passar por lugares onde um dos apócrifos disse que passaria; encontra até mesmo com personagens dessas versões… e se apresenta como o verdadeiro Dom Quixote. Se, já na primeira parte, somos leitores de uma leitura (da leitura de Dom Quixote de seus livros de cavalaria e da própria vida), a própria segunda parte será uma leitura da primeira. A segunda parte não é a simples continuação da primeira: ela é o seu espelho. Na verdade, ambas as partes, uma refletindo a outra, se convertem em uma sala de espelhos, onde todos os reflexos refletem a si mesmos. Agora, o próprio Dom Quixote não só leu toda a literatura espanhola anterior ao Quixote – os livros de cavalarias, as novelas sentimentais, as narrativas pícaras – mas também leu a primeira parte do Quixote, e sabe que ele, ele mesmo, também é visto e lido como um personagem literário. A literatura deu vida à literatura.

O que faz do Quixote o primeiro romance contemporâneo é justamente essa amplidão de sentidos e essas múltiplas possibilidades, esse jogo de espelhos tanto entre personagens e narradores, quanto entre o autor e o leitor, esse processo de autoconstrução do protagonista que começa sua trajetória tentando emular seus heróis literários e termina descobrindo que ele mesmo se transformou em personagem novelesco. (E, mais ainda, em uma deliciosa ironia histórica que autor, personagem e primeiros leitores não poderiam prever, acaba se tornando um dos personagens ficcionais mais famosos de toda a humanidade, infinitamente mais conhecido que todos os ídolos que emula, que todos os desafetos que satiriza.) Nunca houve nada na literatura que se aproximasse disso.

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Obras de referência

Utilizadas para elaboração da ementa e das aulas do curso.

Literatura em espanhol ou literatura produzida na Espanha?

Cada área do saber tem suas idiossincrasias e convenções. Falando em linhas muito gerais:

Em História, área onde cursei graduação, tendemos a organizar nosso assunto por critérios cronológicos e/ou regionais. As disciplinas, as publicações, as ofertas de emprego, são para História Moderna, História da África, História do Brasil Império, etc. Nesse sentido, se a pessoa vê um manual genérico de História da Espanha, fica mais ou menos presumido que é uma história das coisas que aconteceram na região onde hoje está o país Espanha, ou nas regiões que já estiveram sob seu controle. A comunidade chicana falante de Espanhol dos Estados Unidos, por exemplo, provavelmente não será estudada.

Já em Literatura, área onde cursei mestrado e doutorado, tendemos a organizar nosso assunto por critérios predominantemente linguísticos. As disciplinas, as publicações, as ofertas de emprego, são para Letras-inglês, literatura francesa, Literatura do Brasil Colônia, etc. Nesse sentido, se a pessoa vê um manual genérico de Literatura Espanhola, fica mais ou menos presumido que é sobre a literatura da língua hoje conhecida como “espanhol”, também chamada de “castelhano”, independente de onde tenha sido produzida: por exemplo, uma das autoras que vamos ler nunca nem pisou na Europa. A literatura produzida na região onde hoje está o país Espanha, mas em outras línguas, em geral é estudada em separado: literatura catalã, literatura basca, etc.

A razão é simples: só se pode realmente estudar uma literatura a fundo, a sério, academicamente, captando todas as nuanças, lendo no original. Ou seja, a área de estudo depende, antes de mais nada, da fluência linguística de quem estuda: uma pesquisadora capaz de detectar sutis jogos verbais de um texto em catalão… não necessariamente conseguiria ler com tanta fluência um texto em basco. Por isso, ela está capacitada para escrever, e muito bem, sobre literatura catalã, mas não sobre literatura basca ou outras literaturas produzidas na Espanha.

Eu, quando fiz mestrado e doutorado em Letras-Espanhol, tive colegas que desenvolviam as pesquisas mais diversas e multidisciplinares, como discursos de masculinidade em uma eleição presidencial de El Salvador; travestismo no teatro espanhol do Século de Ouro; ideologia neoliberal do cinema cubano produzido na diáspora em Miami; técnicas avançadas do ensino da diferença de ser/estar para falantes de inglês que não têm essa distinção, etc etc. O único elemento em comum era a língua espanhola. (Se eu quisesse escrever, digamos, uma tese sobre Martinho de Leão, padre espanhol que escrevia em latim no século XIII, teriam me recomendado procurar o Departamento de Letras Clássicas.)

Naturalmente, as falhas desse sistema são inúmeras: a maior delas é o ponto cego em relação às literaturas produzidas seja em línguas minoritárias, seja por comunidades subalternas. Um dos temas da terceira aula do curso Grande Conversa Brasileira foi justamente esse: o que fazer com a literatura produzida no Brasil em alemão por imigrantes de primeira, segunda, terceira gerações? Essas obras são literatura brasileira? Ou são literatura alemã? Nenhuma? Ambas? A verdade é que, hoje, na prática, são invisíveis: a literatura alemã não as enxerga, e a brasileira também não. É como se não existissem. Esse é um nó que passaremos as próximas décadas tentando desatar.

Na Espanha, onde o poder central várias vezes tentou ativamente sufocar as línguas não-castelhanas, esse é um problema político e real, pulsante e contemporâneo. Promover as literaturas desses idiomas têm sido uma prioridade, e também um foco de tensão, dos últimos anos. (Aliás, recomendo a toda pessoa brasileira interessada em literatura ler pelo menos um livro em galego, nem que apenas para ver como funciona essa língua que é ainda mais próxima a nós que o castelhano. Recomendo os Cantares Galegos, de Rosália de Castro, considerada uma das grandes responsáveis pelo rexurdimento galego do XIX. Se o espanhol é nossa língua-irmã, o galego é nossa língua-irmã-gêmea)

As limitações práticas, entretanto, continuam reais e concretas. Quem consegue escrever uma tese brilhante sobre o uso do romanceiro medieval na poesia de Garcia Llorca, escrita em castelhano, não necessariamente possui o instrumental linguístico para estudar as nuances do latim de Martinho de Leão ou do galego de Rosália de Castro. Por isso, a literatura, enquanto o campo do saber, tende a ser dividida, antes de mais nada, por línguas.

Daí, ser convencionado que um curso de “literatura espanhola” vai tratar da “literatura escrita em língua espanhola”, provavelmente só na Espanha (senão, “literatura hispânica” faria mais sentido) e não necessariamente da “literatura escrita nas várias línguas da Espanha”.

Nesse curso, estudaremos a literatura escrita em língua castelhana, não necessariamente na Espanha, entre a Idade Média e o final do século XVII.

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Dúvidas

Dúvidas e questões sobre pagamentos e bolsas, somente por email: eu@alexcastro.com.br

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Linguagem não-sexista

Em meus textos, para chamar atenção para o sexismo de nossa língua, inverto a norma e uso o feminino como gênero neutro. Não porque troquei um sexismo por outro, mas porque o gênero da palavra “pessoa” é feminino.

Trocar:

“Meus alunos não calam a boca.”

Por:

“Minhas alunas não calam a boca.”

Só mantém o sexismo da língua. Pior: sugere que são apenas as minhas alunas mulheres que não calam a boca.

Por isso, hoje, digo:

“Minhas pessoas alunas não calam a boca.”

Essa tem sido, pra mim, a maneira não-sexista de escrever.

Mais detalhes aqui: Mini manual pessoal para uso não-sexista da língua.