Grande Conversa Fundadora

As obras que inventaram as línguas literárias modernas

Curso em resumo

Uma história da literatura ocidental, da Idade Média ao romantismo, através dos grandes clássicos fundadores das línguas modernas: Dante, Rabelais, Camões, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Púchkin. 7 aulas de 3h cada, disponíveis em um grupo restrito no Facebook. R$88 mensais por todos os cursos, compre agora.

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Grande Conversa Fundadora

Na Europa da Idade Média, quando o latim já estava engessado pela idade e pela obsolescência, e as línguas modernas ainda não estavam engessadas pelas gramáticas e pelas convenções, houve um mágico intervalo de tempo onde todas as possibilidades estavam em aberto, tudo ainda era possível, qualquer experimento literário parecia factível.

O primeiro grande artista a fazer uso dessa alucinante liberdade foi o florentino Dante Alighieri (1265-1321), que decide escrever sua ambiciosa comédia não no latim, como seria natural, pois era a língua da cultura e da erudição, mas no dialeto toscano — hoje, graças a Dante, conhecido como “italiano”. (Como teria sido a Divina Comédia em latim? É impossível separar a obra da decisão de escrevê-la no vernáculo.) Com esse gesto revolucionário, Dante não apenas expandia seu horizonte de leitores e ouvintes para além da elite, mas também dava o exemplo para escritores e poetas de toda a Europa: sim, era possível transformar essas novas línguas vernáculas, recém-surgidas e até então consideradas vulgares e toscas, em instrumentos refinados da mais alta poesia.

Nos quinhentos anos seguintes, algumas das principais línguas europeias modernas percorrem o caminho aberto por Dante, se tornam ferramentas literárias de primeira grandeza e, depois de um longo e complexo, tortuoso e interessante, processo histórico, acabam consagrando um homem como seu “pai” ou “fundador”. Cada aula de nosso curso será sobre um desses homens (sim, infelizmente, são todos homens), e, ao mesmo tempo, também será uma breve história da literatura nacional que o canonizou.

Mas, afinal, por que esses e não outros? Por que o espanhol é conhecido como “a língua de Cervantes”? Por que a Alemanha tem o Goethe-Institut; a Espanha, o Instituto Cervantes; e Portugal, o Camões? Por que o crítico Harold Bloom considerava que Shakespeare “inventou o humano”? Por que em uma Rússia onde estavam em atividade escritores do calibre de Gogol e Tchecov, Tolstoi e Dostoeivski, todos eram unânimes em considerar Púchkin “o pai da literatura russa”?

Nascido no século seguinte a Dante, François Rabelais (1483-1553), é o único dentre os nossos autores não unanimemente considerado o “pai” da literatura do seu país. O outro forte candidato a “pai da literatura francesa” seria o dramaturgo Molière, mas ele escreve em um século XVIII quando o francês literário já está consolidado. Rabelais, pelo contrário, ao mesmo tempo padre medieval e médico renascentista, viveu plenamente todas as possibilidades e contradições dessa grande virada no pensamento ocidental e escreveu um livro que ajuda a mostrar todo o potencial literário (e escatológico) da língua francesa e do próprio Renascimento. Um livro tão engraçado e tão tolerante, tão filosófico e tão carnavalesco, só poderia existir nesse instante de ruptura e nunca mais. O cânone tem razões que a própria razão desconhece: Rabelais provavelmente só não é o “pai” convencionado de sua literatura por um excesso de peidos, arrotos e necessidades fisiológicas de modo geral. (Quando Gargantua, o herói da história!, resolve mijar do alto da torre da Catedral de Notre-Dame, ele afoga em sua urina “duzentas e sessenta mil, quatrocentas e dezoito pessoas, sem contar mulheres e crianças”.)

Luís de Camões (c.1524-1580), marginal e mulherengo, brigão e vagabundo, também dificilmente candidato a símbolo pátrio, talvez somente tenha sido canonizado porque seu país acabava de perder a independência e precisava urgentemente de poetas que lhes cantassem as glórias. De fato, Camões foi testemunha e participante da ascensão e queda de Portugal, e ainda viveu para cantá-lo em um grande poema que, embora pareça exaltar a pátria (certamente era visto assim pela ditadura de Salazar), também subverte seus pilares cristãos, imperialistas, conservadores. Afinal, quando o Velho do Restelo critica as expansões marítimas, o calejado veterano caolho Camões está contra ou a favor? Leremos Os Lusíadas e uma seleção de poesias que mostram um outro lado, mais contestador e menos careta, do velho Camões.

William Shakespeare (c.1564-1616) é nosso autor que menos precisa de apresentações. Os elogios unânimes que recebe como “maior escritor de todos os tempos” provavelmente refletem mais a dominância do inglês no mundo contemporâneo do que sua própria inegável qualidade literária: o influente crítico Harold Bloom, por exemplo, escreveu todo um gigantesco tratado para defender que Shakespeare tinha basicamente inventado o conceito de “humano” como o conhecemos hoje. Mas, se Dante, Cervantes e Goethe foram sagrados “gênios nacionais” ainda em vida, a canonização de Shakespeare só se completou no século XIX. O que seus contemporâneos não viam nele que hoje tanto vemos? Como um dramaturgo bem-sucedido do XVII vira o “maior escritor de todos os tempos” do XXI? Pensar Shakespeare é pensar a própria consolidação da literatura inglesa e, depois, sua predominância no cânone ocidental.

Em comparação aos outros autores do curso, até mesmo dos recentes, Miguel de Cervantes (c.1547-1616) é o mais próximo a nós em tudo: em sensibilidade e em tolerância, em humor e em tom. Dom Quixote é considerado o primeiro romance porque ele inventa não só o primeiro protagonista contemporâneo — um homem falho, deslocado de seu mundo — mas também o leitor contemporâneo — que, diante de tamanha polifonia textual, percebe que não pode confiar em nenhum dos muitos narradores. Na primeira parte, Dom Quixote e Sancho Pança passeiam pela Espanha; na segunda parte, não continuação mas espelho, eles se encontram com os leitores da primeira, ampliando sentidos e multiplicando possibilidades. O maior mérito do Dom Quixote na história da literatura é justamente criar o tipo de leitor necessário para ler um livro como Dom Quixote. Hoje, só sabemos como ler Dom Casmurro ou Ulysses porque Cervantes ontem nos ensinou a ler o seu Quixote.

Wolfgang von Goethe (1749–1832) fez sucesso estrondoso ainda jovem, viveu mais de oitenta anos e, durante boa parte deles, foi o intelectual mais famoso e influente de toda a Europa. Último homem realmente renascentista, teve sucesso como poeta e como político, como geólogo e como filósofo — o Fausto reflete e reproduz essa vastidão de interesses. Seu primeiro romance, publicado aos 25, fez tanto sucesso que provocou uma epidemia de suicídios pelo continente, em imitação ao seu protagonista. Em literatura, foi o precursor e impulsionador do Romantismo, o movimento cultural que domina o século XIX, e, mais ainda, inventou o conceito utópico de “literatura mundial“, uma vasta sinfonia polifônica internacional unindo tudo que todas as literaturas nacionais tivessem de melhor: sem a Weltliteratur como articulada por Goethe, cursos como esse não seriam nem concebíveis. Por fim, seu Fausto, escrito ao longo de toda sua vida, é universalmente considerado uma das maiores obras-primas de todos os tempos. O poema busca abraçar o mundo, a experiência humana e todo o conhecimento literário e filosófico, teológico e científico da humanidade até então. Ou seja, é tão amplo e descomunal e ambicioso e genial quanto o homem que se dedicou a escrevê-lo.

Por fim, já em pleno século XIX, imerso no romantismo protagonizado por Goethe, um jovem poeta de uma nação periférica e sem nenhuma tradição literária transforma-se no “pai” de uma literatura cuja riqueza até hoje nos parece inacreditável. (De todos nossos autores, foi o que escreveu sua obra-prima com menos idade.) Alexandre Púchkin (1799–1837) já era famoso como poeta antes mesmo de sair da escola, chegando a ser exilado pelo Tzar por um poema crítico a ele. Vigiado, censurado e perseguido pelas autoridades, adorado pelo público, pelos críticos e pelos colegas, escreveu o “romance em versos” Eugênio Oneguin, nossa leitura, e, pouco depois, fiel a sua vida rebelde e libertina, morreu jovem, em um duelo. Em um contexto histórico onde os russos bem educados se comunicavam entre si somente em francês (como Tolstoi demonstra em Guerra e Paz) é Púchkin o maior responsável por transformar o idioma russo, até então considerado pela elite como “linguajar de servos”, em uma língua literária de primeira grandeza. Não é à toa que seus sucessores geniais, homens que não concordavam em nada, como Gorki e Gogol, Turgeniev e Dostoievski, Tolstoi e Tchecov, concordavam em considerá-lo seu grande mestre. Em 1937, no centenário de sua morte, o mais inesperado de seus grandes fãs, Stálin, fará de tudo para sagrá-lo poeta nacional da União Soviética. De fato, sobre Púchkin estavam todos certos: Eugênio Oneguin é um poema maravilhoso e divertido, engraçado e profundo: o primeiro, e mais perfeito, retrato do playboy superficial que será um personagem recorrente da literatura russa e que ainda pode facilmente ser encontrado no eixo Leblon-Morumbi.

O que todos esses sete autores fazem não é simplesmente escrever literatura em suas línguas, como faria uma autora brasileira de hoje escrevendo em português, mas sim pegar suas jovens línguas, ainda em fluxo, recém-saídas da oralidade, e transformá-las, em um ato de vontade e de talento, em línguas capazes de articular a mais alta literatura. As sete obras que leremos não são talvez as mais centrais, ou as mais importantes, ou até mesmo as melhores, de suas respectivas tradições literárias, mas são as obras que fundam, estabelecem, cristalizam essas tradições.

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A Grande Conversa é leve e engraçada

Nossas leituras — longe de serem chatas ou pesadas, imponentes ou intimidadoras — são quase todas humorísticas. Três delas, Dom Quixote, Eugênio Oneguin e Gargantua e Pantagruel, são fundamentalmente cômicas, leves, engraçadas, hilariantes. Dois autores, Camões e Shakespeare, são capazes de nos fazer rir nas mais diversas situações: se as obras que leremos não são engraçadas em si, ambos estão sempre ironizando, inventando trocadilhos, flertando com o humor. Então, das sete obras do nosso curso, apenas duas são decididamente não-engraçadas, o Fausto, de Goethe, e (ironicamente) a Comédia, de Dante.

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Leituras

O curso é livre, de leituras não-obrigatórias. Um dos objetivos do curso é que cada participante crie a sua própria experiência, única e individual, lendo as obras que preferir, de acordo com seus próprios interesses. Caso as participantes já tenham lido as obras principais, ou queiram mergulhar em mais leituras relacionadas, a ementa oferece sugestões de outras obras de apoio, tanto de ficção quanto de não-ficção, que dialogam com as leituras.

As leituras estão disponíveis em português, em boas traduções: para quem preferir, posso indicar boas traduções também em inglês e espanhol.

Tentem ler boas edições críticas e comentadas: forneço sugestões abaixo.

Façam máximo uso das possibilidades audiovisuais e multimídia: todas as leituras também estão disponíveis em audiolivros, filmes, séries, teatro, poesia declamada, etc, devidamente indicados e linkados abaixo.

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Funcionamento

Cada aula segue ao longo de dois eixos:

  • Uma discussão literária sobre a obra canônica em questão, escolhida por sua importância histórica e por sua qualidade estética, e também por ser representativa do estilo e das prioridades, das ideias e das ansiedades de sua cultura, de sua época, de seu autor;
  • Uma explanação histórica sobre o período em que a obra foi escrita com foco nas continuidades culturais e nexos causais entre as épocas abordadas, formando assim uma grande narrativa sequencial da literatura ocidental.

A gravação em vídeo das aulas fica disponível em um grupo fechado do Facebook até, no mínimo, 31 de dezembro de 2027. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo)

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A Grande Conversa

Ao longo dos séculos e dos milênios, sempre que uma pessoa artista ou pensadora, filósofa ou cientista, cria uma nova obra intelectual, ela está ativamente dialogando com todas as suas predecessoras, seja somando ou reagindo, se opondo ou se juntando. Esse diálogo é o que chamamos de a Grande Conversa. Estudá-la não significa concordar com os valores ultrapassados que a moldaram, mas sim adquirir as ferramentas para moldarmos a Grande Conversa do futuro de acordo com nossos próprios valores, em nossos próprios termos.

Esse já é o quarto curso da série A Grande Conversa: os anteriores foram Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do Ocidente através da literatura (2020), Grande Conversa Brasileira: a ideia de Brasil na literatura (2021) e Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna (2022).

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Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2022).

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  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Dúvidas e questões sobre pagamentos e bolsas, somente por email: eu@alexcastro.com.br

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Aulas em resumo

Links levam para a descrição da aula nessa página.

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Os links de livros direcionam para a Amazon Brasil. Se você clicar e comprar, ganho uma comissão, e te agradeço muito. As edições linkadas não são necessariamente as melhores, mas sim as que estão em catálogo atualmente. Todas as obras estão em domínio público e podem ser facilmente encontrada na internet.

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1. Dante Alighieri e a literatura italiana, séc.XIV

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I medieval, II italiano, III inferno, IV holocausto)

A importância de Dante

“Mesmo que Shakespeare nada houvesse escrito, a língua inglesa teria prosperado, mas o dialeto toscano de Dante veio a ser a língua italiana devido ao poeta. Dante é o poeta nacional, assim como o é Shakespeare, onde quer que se fale inglês, e Goethe, em regiões onde predomina o alemão. Nenhum outro escritor é tão formidável quanto Dante. Shakespeare, milagre de intangibilidade, é todo mundo e ninguém. Dante é Dante. Excetuando-se Shakespeare, o poeta mais notável do mundo ocidental concluiu a maior obra literária do Ocidente por volta do final da segunda década do século XIV.”

Harold Bloom, Gênio. Os 100 autores mais criativos da história da literatura.

“É o maior e o mais vigoroso poeta da Idade Média europeia e um dos maiores criadores de todos os tempos. Por sua filosofia e por suas ideias políticas, é um homem da Idade Média, da qual resume toda a civilização; por sua concepção individualista do homem e por suas ideias acerca da língua vulgar, ele constitui o limiar da Renascença. No que respeita à língua literária de seu país, pode-se dizer que foi ele que a criou.

Erich Auerbach, Introdução aos estudos literários.

“A linguagem de Dante parece um milagre quase inacreditável. Esse homem, através da sua linguagem, redescobriu o mundo. A Comédia é, entre outras coisas, um poema didático enciclopédico, uma obra de arte imitativa da realidade, na qual aparecem todos os campos concebíveis da realidade, a história do desenvolvimento e da salvação de um único homem, Dante, e, como tal, uma história figural da salvação da humanidade em geral. Chega-se a uma experiência imediata da vida, uma experiência que sobrepuja todas as outras.”

Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.

Vídeos abertos

 
 
 
 
 
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Nossa leitura

O Inferno, que representa o primeiro terço da Divina Comédia, é largamente considerado sua melhor parte e será nossa leitura da primeira aula. Sugiro ler em voz alta, ou ouvindo esse áudiolivro da tradução de Ítalo Eugenio Mauro, da Editora 34.

Edições recomendadas

Tradução de Emanuel França de Brito, Mauricio Santana Dias e Pedro Falleiros Heise
Tradução de Ítalo Eugenio Mauro.

Outras traduções recomendadas

Tradução de Allen Mandelbaum
Tradução de Luis Martinez de Merlo
Tradução de José Maria Micó

Crítica

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2. François Rabelais e a literatura francesa, séc.XVI

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I humanismo, II francês, III rabelais, IV thelema)

A importância de Rabelais

“Parece não haver na literatura francesa uma figura que por si só esteja no centro do cânone nacional: nenhum Shakespeare, nenhum Dante, Goethe, Cervantes, Pushkin. Em vez disso, há uma assembleia de titãs, todos eles potenciais candidatos: Rabelais, Montaigne, Moliere, Racine, Rousseau, Hugo, Baudelaire, Flaubert, Proust.”

Harold Bloom, O cânone ocidental.

“Rabelais ocupa um dos primeiros lugares entre os autores europeus. Os especialistas europeus costumam colocar Rabelais — pela força de suas idéias e de sua arte, e por sua importância histórica — imediatamente depois de Shakespeare, por vezes mesmo ao seu lado. Os românticos franceses classificaram-no entre os mais eminentes gênios da humanidade de todos os tempos e de todos as povos. Rabelais recolheu sabedoria na corrente popular dos antigos dialetos, dos refrões, dos provérbios, das farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos. E através desses delírios aparecem com toda a grandeza o gênio do século e sua força profética. Onde ele não chega a descobrir, ele entrevê, promete, dirige, Na floresta dos sonhos, vêem-se sob cada folha os frutos que colherá o futuro. Não pretendemos decidir se é justo colocar Rabelais ao lado de Shakespeare, acima ou abaixo de Cervantes, etc, Não resta dúvida de que o lugar histórico que ele ocupa entre os criadores da nova literatura européia está indiscutivelmente ao lado de Dante, Boccaccio, Shakespeare e Cervantes. Rabelais influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da língua literária francesas, mas. também na literatura mundial (provavelmente no mesmo grau que Cervantes). Foi o mais democrático dos modernos mestres da literatura. Sua principal qualidade é de estar ligado mais profunda e estreitamente que os outros às fontes populares que determinaram sua concepção artística.”

Mikhail Bakhtin, A cultura popular na idade média e no renascimento: O contexto de françois rabelais.

“É o campeão de uma nova moral, humana e racional, e, ao mesmo tempo, é de um impudor sem igual, acumulando farsas grosseiras e jogos de palavras com uma imaginação inesgotável, provocando em seus leitores um riso doido, enorme e irresistível. É inconcebivelmente criador, fecundo, otimista, e, ao mesmo tempo, de uma inteligência maliciosa, dissimulada, por vezes maligna e cruel. Pela variedade de seus elementos e pela força de sua imaginação, é o livro mais rico e mais vigoroso da literatura francesa.”

Erich Auerbach, Introdução aos estudos literários.

“O empenho de Rabelais se volta para o jogo com as coisas e com a multiplicidade de visões possíveis, de maneira que, através do turbilhão dos fenômenos, possa atrair o leitor acostumado a determinadas maneiras de ver as coisas, e assim induzi-lo a se aventurar pelo grande mar do mundo, no qual se pode nadar livremente e correr os riscos que se queira. Não mais há nenhum medo metafísico da morte. Como parte da natureza, o homem se alegra da sua vida palpitante, das funções do seu corpo e das forças do seu espírito, e como as outras criações da natureza, é vítima da dissolução natural. À vida palpitante do homem e da natureza pertence o amor de Rabelais. Para ele não há medida estética; tudo casa com tudo. O real cotidiano está encravado na fantasia mais inverossímil; a farsa mais grosseira está cheia de erudição, e as elucidações filosófico-morais brotam de palavras e de histórias obscenas.”

Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.

Vídeos abertos

Nossa leitura

A obra que chamamos de Gargantua e Pantagruel na verdade são cinco livros diferentes, publicados ao longo de 28 anos, dos quais o quinto é normalmente considerado apócrifo. Para um curso como o nosso, acho interessante ler pelo menos dois. Como não existe qualquer tipo de enredo sequencial, podem ser quaisquer dois. A Editora 34 traz os cinco livros em dois volumes, em uma tradução fluente e engraçada, que se esforça para reproduzir todos os trocadilhos. Já a Ateliê Editorial traz os quatro primeiros em quatro volumes separados, em edições acadêmicas caprichadas, com muitas notas explicativas, mas com uma tradução mais amarrada.

Edições recomendadas

Livros I e II, tradução de Guilherme Gontijo Flores
Livros III, IV e V, tradução de Guilherme Gontijo Flores
Livro I, tradução de Élide Valarini Oliver
Livro II, tradução de Élide Valarini Oliver
Livro III, tradução de Élide Valarini Oliver
Livro IV, tradução de Élide Valarini Oliver

Outras traduções

Tradução de M. A. Screech
Tradução de Gabriel Hormaechea

Crítica

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3. Luis de Camões e a literatura portuguesa, séc.XVI

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I portugal, II português, III camões, IV lírica; V lusíadas; aula bônus)

A importância de Camões

“A língua deste poema [Os Lusíadas] é tão perfeita, tão simples, que é a nossa língua portuguesa de hoje. Como Dante fixou na Divina Comédia o toscano, fazendo de um dos dialetos da Itália a língua italiana, Camões impôs a sua língua a Portugal e Brasil, e, pode-se dizer, falamos e escrevemos Camões, pois que o português rememorou nesses quatro séculos sem sensíveis mudanças”.

Afrânio Peixoto, “A língua de Camões”

Poucos poetas mereceriam menos o destino póstumo de monumento nacional do que Camões. Fixá-lo numa imagem de grandeza estereotipada é neutralizar a grandeza real de quem preferiu ao conforto das ideias recebidas a precária demanda de experiências ainda sem nome. Ao dignificar a experiência como base do conhecimento, Camões é um poeta moderno. Como os outros grandes perenes da literatura renascentista (Cervantes na prosa, Shakespeare no teatro, poucos mais), quando fala do seu tempo e para o seu tempo, está também a falar do nosso tempo e para o nosso tempo. Há sempre na obra de Camões alguma coisa que escapa a qualquer discurso crítico que pretenda afirmar mais do que interrogar as multifacetadas complexidades da sua obra. A crítica tradicional sempre se escandalizou com os comportamentos sociais do cidadão, sistematicamente dissociando-os da sua escrita poética. É como se Camões tivesse podido funcionar em comportamentos estanques: à direita o sublime poeta, à esquerda o malandro mal comportado. Daí resulta ou um Camões truncado ou um Camões contraditório, não o Camões para quem a contradição é a norma, não o Camões que harmoniza as aparentes contradições, não o multifacetado poeta que ao mesmo tempo é capaz de ironizar o sublime e de dignificar o trivial. A espantosa modernidade da sua obra reside precisamente no fato de Camões não poder ser entendido em compartimentos estanques. O mundo de valores em transição que foi o seu é ainda o nosso. A nossa contraditória diversidade já era a dele. Ele é porventura o mais velho mas, por isso, também o mais sábio dos nossos contemporâneos. Quando Camões fala do seu tempo e para o seu tempo, está também a falar do nosso tempo e para o nosso tempo.

Foi o primeiro poeta europeu com prolongada experiência direta de culturas tão diferentes da sua quanto eram então as da África, da Índia, da Indochina. Sua poesia insere-se na tradição ocidental de Dante, mas sua profunda originalidade manifesta-se nos sutis deslocamentos semânticos que impôs a essa tradição, modulando a linguagem do passado de modo a poder significar uma nova visão do mundo para a qual ainda não havia linguagem feita. Deu expressão a um novo entendimento que contrapõe ao absoluto da ordem divina o relativismo da ordem – ou desordem – humana. A peregrinação registrada na sua obra aponta para qualquer coisa de tão indefinível, mas revolucionariamente tão moderna, quanto é o direito à felicidade na terra. Foi um poeta mais da dúvida do que da convicção, da ruptura mais do que da continuidade, da experiência mais do que da fé, de uma sexualidade indissociável da espiritualidade do amor. Sua poesia inaugurou a percepção do mundo moderno, o mundo da diversidade, o nosso mundo de incertezas.

Helder Macedo, Camões e a viagem iniciática

“No século XVI, quando outras línguas, sobretudo o castelhano e o latim, afrontavam nosso idioma, os textos poéticos de Camões constituíram a afirmação definitiva da idoneidade e da autonomia da língua portuguesa, da sua capacidade para fixar uma tradição literária. A obra de Camões foi um importante ponto de referência, durante os sessenta anos da monarquia dual, como símbolo da nação lusíada e contribuiu para transformar a identidade linguística polarizada por essa obra, em fator de sobrevivência da comunidade e, em última instância, em fator de sobrevivência do próprio idioma. Camões escreveu alguns textos em castelhano e deixou-nos assim indicação de que poderia ter escrito nessa língua toda a sua restante obra, como outros portugueses, contemporâneos seus, fizeram. Mas, por sua vontade, a história fez-se de outro modo. Camões escolheu o português e instituiu-o como língua escrita disponível para os mais ousados monumentos literários.”

Telmo Verdelho, Linguística camoniana

“O uso da língua portuguesa era muito menos regrado e normatizado do que é hoje. Tanto os manuscritos quanto os livros impressos exibem uma ampla variedade de ortografias e formas de dizer. A primeira gramática portuguesa foi publicada em 1536. Camões experimentou e realizou grandes conquistas, dando origem à personalidade da poesia portuguesa renascentista. Escrever em português nos novos metros vindos da Itália, integrar a poesia moderna europeia, era visto como uma atitude nacionalista, como um processo de “ilustrar” a língua portuguesa, elevá-la a um alto patamar cultural, antes ocupado pelo latim. Defendia-se que as línguas vulgares (o francês, o italiano, o espanhol, o português, idiomas neolatinos) deveriam se enobrecer e atingir um novo patamar cultural, antes ocupado pelo latim, por meio da atuação de seus escritores e poetas na renovação e na ampliação das capacidades expressivas da língua. A poesia fazia parte também de um projeto político que articulava o nacionalismo, a identidade nacional e a língua, em um momento de formação do Estado moderno.”

Sheila Hue, 20 sonetos de Camões.

Camões vale por uma literatura inteira.”

Friedrich Schlegel

Vídeos abertos

Nossas leituras

Camões foi canonizado “pai da língua portuguesa” por Os Lusíadas, mas é em seus poemas líricos (sonetos, odes, redondilhas, etc) que ele se mostra mais subversivo. Vamos ler uma seleção de Os Lusíadas, para entendermos porque foi canonizado, e de seus poemas líricos, para entendermos porque quase não foi. Para quem fez o meu curso Introdução à Grande Conversa, onde lemos Os Lusíadas, sugiro se concentrar na lírica que considero bastante superior e muito mais interessante.

Edições recomendadas

Áudiolivro

Essa versão narrada por Antonio Fonseca é realmente sensacional e, sim, vale vinte euros.

Minha playlist pessoal com as melhores poesias de Camões que achei declamadas no YouTube:

Crítica

Alguns dos meus textos sobre Camões:

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4. William Shakespeare e a literatura inglesa, séc.XVII

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I inglês, II bíblia, III shakespeare, IV peças; V performances)

A importância de Shakespeare

“A universalidade é a característica autêntica de unicamente uma mão-cheia de escritores ocidentais: Shakespeare, Dante, Cervantes, talvez Tolstoi. Goethe e Milton estão ofuscados devido a uma mudança cultural. O universalismo aristocrático de Dante anunciou a era dos grandes escritores ocidentais, de Petrarca a Holderlin. Porém, só Cervantes e Shakespeare conseguiram totalmente a universalidade, essa propriedade fundamental do valor poético. Ao mesmo tempo ninguém e toda a gente, nada e tudo, Shakespeare é o Cânone Ocidental.

Shakespeare e Dante estão no centro do Cânone porque são superiores a todos os outros escritores ocidentais em acuidade cognitiva, energia linguística e poder de invenção. Nenhum outro escritor teve alguma vez algo parecido com os recursos da linguagem possuídos por Shakespeare: sentimos que foram tocados os próprios limites da linguagem, e de uma vez por todas. Tal como Dante ultrapassa todos os outros escritores, de antes e de depois dele, através da ênfase posta numa derradeira imutabilidade que existe em todos nós, numa posição fixa que devemos ocupar para todo o sempre, também Shakespeare ultrapassa todos os outros escritores através do testemunho de uma psicologia da mutabilidade. Isto é só parte do esplendor de Shakespeare, pois ele não só ultrapassa todos os rivais, mas também dá origem à descrição da mudança individual dos seres na base da escuta de si mesmos. Shakespeare está para a literatura mundial assim como Hamlet está para o domínio imaginário da personagem literária: um espírito que se estende por toda a parte, um espírito ao qual nada nem ninguém consegue impor limites. Shakespeare tem a amplidão da própria natureza, e através dessa amplidão ele sente a indiferença da natureza.”

Harold Bloom, O cânone ocidental.

“Foi sua valorização a partir da segunda metade do século XVIII, na Alemanha na época de Goethe, que fez de Shakespeare o modelo por excelência do talento artístico original. O dramaturgo, que era questionado e censurado segundo os critérios das teorias poéticas consagradas no Classicismo francês, tornou-se a referência mais importante de uma poesia que foge às regras da arte definidas pela tradição e abandona a imitação dos antigos”.

Pedro Süssekind, Shakespeare e o gênio original.

“Nos últimos dois séculos, Shakespeare tem tido o status de uma Bíblia secular. A pesquisa textual sobre suas peças recorda a exegese bíblica no tocante à quantidade e intensidade, enquanto a crítica literária dedicada a Shakespeare rivaliza com a interpretação teológica das Sagradas Escrituras.”

Harold Bloom, Shakespeare, a invenção do humano.

Videos abertos

Nossas leituras

As peças de Shakespeare são relativamente curtas: ler quatro em um mês é um objetivo factível. Recomendo Hamlet e Julio Cesar, como tragédias; Romeu e Julieta, que considero comédia; e A tempestade, que no mundo anglófono recebe a classificação de “romance”. Para quem já tiver lido alguma, também recomendo Otelo, Macbeth, Mercador de Veneza, Troilo e Crisseida, e Rei Lear.

Edições recomendadas

Para quem for ler em português, recomendo as edições da Penguin/Companhia das Letras, que são excelentes, boas traduções, boas introduções, botas notas: Hamlet (na tradução de Lawrence Flores Pereira); Julio Cesar, Romeu e Julieta e A tempestade (na tradução de José Francisco Botelho).

Para quem lê em inglês, recomendo ler também a minha peça preferida (minha e do René Girard), sobre a qual vou falar, e que não tem uma tradução boa em português: Troilus and Cressida É adaptação teatral de uma poesia de Chaucer sobre um episódio da Guerra de Troia inventado na Idade Média. Então, é Shakespeare conversando com Homero, através de Chaucer, chancelado por todo um novo folclore medieval. O que poderia ser mais emblemático da Grande Conversa?

Por fim, o box abaixo, apesar de claramente discordar da minha classificação, contém as peças principais, em uma tradução para o palco, que frequentemente prefere ser fluida a ser literal: como resultado, é gostosa de ler, mas às vezes pula diálogos inteiros e muda muita coisa. O maior problema é a falta de notas explicativas. Para quem lê inglês, recomendo consultar os volumes correspondentes da Arden Shakespeare ou da Folger Shakespeare Library.

Tradução de Barbara Heliodora

Áudio

Recomendo todas as dramatizações da Arkangel Shakespeare.

Cinema

Como Shakespeare é feito para ser visto, não lido, é importante lermos os textos, para entendermos porque ele é tão canônico, mas também é fundamental vermos alguns bons filmes, pois só eles realmente comunicam Shakespeare. Os três primeiros estão entre as minhas adaptações preferidas de Shakespeare, são todos excelentes (os links são para os trailers no YouTube):

Romeo + Juliet (1996), de Baz Luhmann (meu filme preferido)

Julius Caesar (1953), de Joseph L. Mankiewicz

Hamlet (1996) de Kenneth Branagh

Esse quarto é competente, é o melhor que temos, valeria só pela inversão de gêneros, só não é uma obra-prima como os três acima:

The tempest (2010), de Julie Taymor

https://youtube.com/watch?v=KOOdxnv4Ik8

Crítica

Alguns dos meus textos sobre Shakespeare:

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Setembro: hiato

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5. Miguel de Cervantes e a literatura espanhola, séc.XVII

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I espanha, II cervantes, III quixote I, IV quixote II)

A importância de Cervantes

“O Quixote é um mundo poético completo: ele encerra episodicamente, dentro de si, subordinado ao grupo imortal que lhe serve de centro, todos os tipos de literatura em prosa produzidos anteriormente, de tal modo que se poderia adivinhar e recriar toda a ficção anterior, de tal modo que Cervantes a incorporou com perfeição à sua obra”.

Menéndez Pelayo, “Cultura literaria de Miguel de Cervantes y elaboración del Quijote

“Contemporâneo de Shakespeare (morreram no mesmo dia), tinha em comum com ele a universalidade do seu gênio, e é o único par possível de Dante e de Shakespeare no Cânone Ocidental. Somente Cervantes e Shakespeare ocupam a mais alta eminência num determinado pormenor: nunca podemos passar à frente deles, pois eles já estão sempre à nossa frente. Provavelmente só Hamlet provoca tantas interpretações diferentes quantas as de Dom Quixote. Cervantes inventou inúmeras maneiras de desfazer a sua própria narrativa, de modo a obrigar o leitor a contar a história no lugar do prudente autor e de nos transformar em leitores invulgarmente ativos. Os dois heróis de Cervantes são simplesmente as personagens literárias mais amplas de todo o Cânone Ocidental. A fusão que eles operam do ridículo, da sabedoria e da indiferença quanto à ideologia só consegue ser igualada pelos mais memoráveis homens e mulheres de Shakespeare. Cervantes naturalizou-nos, tal como Shakespeare o fez, de tal maneira que já não conseguimos descortinar o que é que torna Dom Quixote tão permanentemente original, uma obra tão penetrantemente estranha.”

Harold Bloom, O cânone ocidental.

“O que é esse “algo” que ordena tudo e lhe confere uma certa luz “cervantesca”? Não é filosofia, não é tendência e nem preocupação com a insegurança da existência humana ou com a violência do destino, como no caso de Shakespeare. É uma atitude – uma atitude diante do mundo e, portanto, também diante dos objetos de sua arte – da qual participam, em ampla escala, a valentia e a indiferença. Ao lado da alegria com o jogo múltiplo e sensível, há nele algo meridionalmente áspero e orgulhoso que o impede de levar o jogo muito a sério. Ele o vê, ele o constrói e se diverte às suas custas; também deve divertir o leitor, de uma forma cultivada, mas não toma partido (salvo contra os livros mal escritos); fica neutro. Não é suficiente dizer que não emite juízos e não tira conclusões; o processo nem é iniciado, as perguntas nem são feitas. Ninguém e nada (exceto os maus livros e as más peças) é condenado nesse livro. O tema do fidalgo doido, que quer fazer renascer a cavalaria andante, deu a Cervantes a possibilidade de mostrar o mundo como um jogo, e isso com uma neutralidade multifacetada, repleta de perspectivas, que não julga nem indaga, e que é uma forma corajosa de sabedoria. Quando o tema – a saída do fidalgo doido que quer tornar realidade o ideal do caballero andante – começou a inflamar a força imaginativa de Cervantes, ele também teve uma visão de como a realidade contemporânea, confrontada com tal loucura, deveria ser representada: e ele gostou desse quadro, tanto pela sua multiplicidade quanto pela hilaridade neutra que a loucura espalha sobre tudo o que encontra. O fato de se tratar de uma loucura heroica e idealista que deixa espaço para a sabedoria e a humanidade certamente não lhe agradou menos. Uma alegria tão universal e diversificada e, ao mesmo tempo, tão livre de crítica e de problemas na representação da realidade cotidiana constitui uma empresa que nunca voltou a ser tentada na Europa; não posso imaginar onde e quando isso poderia ter acontecido.”

Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.

Vídeos abertos

Nossa leitura

Recomendo, naturalmente, ler o Dom Quixote inteiro. Entretanto, é a obra mais longa de um curso de obras longas. Se só conseguirem ler uma parte, leiam a segunda, que contém tudo de bom da primeira e mais um pouco. Se possível, tentem ler em espanhol. Sobre as traduções do Quixote, considerem esse trecho do primeiro parágrafo: “Tenia en casa… un mozo de campo y plaza, que así ensillaba el rocin como tomaba la podadera”. A tradução de Molina (34, Aguilar) é mais literal: “um moço de campo e esporas que tanto selava o rocim como empunhava a podadeira”. A de Ssó (Cia das Letras), mais idiomática: “um rapaz pau para toda obra, que tanto encilhava o pangaré como empunhava o podão”. Nenhuma é melhor, ou mais certa: são filosofias diferentes de tradução. Cabe a cada pessoa leitora escolher. A tradução literal às vezes soa estranha, porém dá mais liberdade à pessoa leitora de interpretar e decodificar o texto; a tradução idiomática toma mais decisões em nome da leitora, porém, é mais gostosa e mais fluida de ler. A edição da 34 tem a enorme vantagem de ser bilíngue. Recomendo fazer uma forcinha e tentar ler no original, em uma edição bem anotada. Em caso de dúvidas, aqui tem uma comparação entre várias traduções, uma matéria da Folha que faz o mesmo e uma entrevista com o tradutor da Cia das Letras.

Edição recomendada

Tradução de Sérgio Molina

Crítica

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6. Wolfgang Goethe e a literatura alemã, séc.XIX

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I alemanha, II romantismo, III goethe, IV fausto)

A importância de Goethe

“De todos os grandes escritores ocidentais, Goethe é o mais afastado da nossa sensibilidade. Poeta e escritor da sabedoria, Goethe é, na sua língua, o equivalente de Dante, e pode transcender traduções inadequadas, mas não aquelas mudanças da vida e da literatura que tornaram as suas ideias centrais tão remotas que parecem arcaicas. Goethe já não é nosso antepassado. A sua sabedoria ainda subsiste, mas parece provir de um outro sistema solar que não o nosso. A literatura europeia constituiu uma tradição contínua desde Homero até Goethe: situando-se no verdadeiro começo da literatura imaginativa da Alemanha, Goethe é, no entanto, de uma perspectiva ocidental, mais um fim que um começo. É o aperfeiçoador e o representante final da cultura literária que vai de Homero a Virgílio, e deste até Dante, tendo alcançado posterior sublimidade em Shakespeare e Cervantes. Só um escritor com a força demoníaca de Goethe poderia ter resumido tanto sem cair na perfeição da morte. Iconoclasta total, ele herda tudo quanto há de mais ousado e idiossincrático na cultura estética ocidental, e é em si mesmo uma cultura inteira, a cultura do humanismo literário da longa tradição que vai de Dante à segunda parte de Fausto. Em Goethe, Homero, as tragédias gregas, a Bíblia são atravessados por Dante e Shakespeare, e o que resulta deste cruzamento é uma cultura que, na época e na nação de Goethe, pertenceu a Goethe e só a ele. Desde então, o amálgama nunca mais floresceu em nenhum outro grande poeta.

Fausto é o mais grotesco e inassimilável dos maiores poemas ocidentais. Shakespeare e Dante, Goethe e Cervantes destroem todas as distinções entre gêneros literários. Goethe, muito à maneira das ironias de Hamlet, assume o risco de explicitamente ridicularizar os gêneros. Tal como acontece com as peças de Shakespeare, com A Divina Comédia de Dante e com o Dom Quixote de Cervantes, o Fausto é uma outra escritura secular, um vasto livro de ambição absoluta. Nenhuma outra obra com a eminência de Fausto tão agressivamente se recusa a dar ao seu leitor uma qualquer perspectiva clara. A Parte II constitui a obra mais singular e mais canônica da literatura ocidental: ler Fausto com atenção é um banquete dos sentidos, embora seguramente demasiado repleto de comidas pouco saudáveis. Enquanto pesadelo sexual ou fantasia erótica, não tem rival. Em Fausto vale quase tudo, sobretudo na Parte II.”

Harold Bloom, O cânone ocidental.

“O grande fenômeno dos últimos anos de Goethe foi o modo pelo qual o círculo imensurável de seus contínuos estudos de filosofia da natureza, de mitologia, literatura, arte, filologia, também de sua antiga ocupação com mineração, finanças, atividade teatral, maçonaria e diplomacia – como todo esse círculo se adensa concentricamente em torno de uma última obra de porte, a Segunda Parte do Fausto. Os contornos da Alemanha goethiana que transparece através da Idade Média romântica da Primeira Parte desaparecem na Segunda Parte, e toda a colossal cadeia de pensamentos para a qual leva essa última parte está ligada em última instância à presentificação do barroco alemão. Quanta apologia política, quanta experiência da antiga atividade palaciana de Goethe está presente nessa segunda parte! Se o poeta teve por fim de concluir sua atividade ministerial com profunda resignação, ele esboça no fim de sua vida uma Alemanha ideal, na qual intensifica em escala grandiosa todas as possibilidades de atuação estatal, mas ao mesmo tempo leva ao grotesco todas as insuficiências dessa atuação. Mercantilismo, Antiguidade e experimento místico com a natureza: aperfeiçoamento do Estado por meio das finanças, da arte por meio da Antiguidade e da natureza por meio do experimento – assim se constitui a assinatura da época que Goethe evoca.”

Walter Benjamin, Ensaios reunidos, escritos sobre Goethe.

Púchkin chama Fausto de Ilíada da vida moderna. Pois na vida contemporânea não é possível, como era na antiguidade, derivar todos os determinantes do pensamento e da criação poética diretamente do ser humano individual. Agora, a profundidade intelectual e a perfeição artística não estão mais unidas em uma ingênua e autoevidente unidade; em vez disso, estão nitidamente em desacordo uma com a outra. Ao conciliar essas tendências conflitantes, Goethe produziu uma criação única no verdadeiro sentido da palavra. Ele mesmo chamou de “produção incomensurável”. Fausto retrata o destino de um homem, mas o verdadeiro conteúdo do poema é o destino de toda a humanidade. Os problemas filosóficos mais importantes de uma grande Era transicional são colocados diante de nós, e não apenas no plano conceitual, mas indissoluvelmente fundidos com representações de relações humanas não só envolventes como resplandecentemente belas.”

György Lukács, Goethe e seu tempo.

Nossa leitura

Assim como em Rabelais e Cervantes, o Fausto, de Goethe, na verdade são dois livros independentes, publicados com 28 anos de diferença. Juntos, formam um livro longo, mas factível de ler lido em um mês. Se só puderem ler uma parte, leiam a primeira parte e o ato V da segunda.

Edição recomendada

Tradução de Jenny Klabin

Outras traduções recomendadas

Tradução de David Luke
Tradução de Walter Arndt
Tradução de Helena Cortés Gabaudan

Crítica

Um texto meu sobre Goethe:

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7. Aleksander Púchkin e a literatura russa, séc.XIX

(Vídeos das aulas, só para alunas pagantes: I rússia, II puchkin, III eugênio oneguin, IV negritude)

A importância de Púchkin

“Se os ingleses têm Shakespeare; os italianos, Dante; os alemães, Goethe; os espanhóis, Cervantes; e os portugueses, Camões, os russos têm Púchkin, o mais tardio de todos os patriarcas das grandes literaturas europeias. Não parece exagero considerar Púchkin como o criador do idioma literário russo, já que, após as reformas iniciadas por Pedro, o Grande, no século XVIII, orientadas para a europeização da sociedade russa, os nobres russos passaram a se comunicar entre si basicamente em francês, enquanto usavam o idioma russo em situações do dia a dia e nas conversas com os servos, considerando-a “língua do povo”, demasiado rude e incapaz de verbalizar ideias elevadas e sentimentos delicados. Portanto, até o começo do século XIX, os literatos russos costumavam evitar o uso de certas palavras, próprias das camadas sociais inferiores, substituindo-as por termos análogos da língua francesa. Púchkin, contudo, introduziu em suas obras muitos folclorismos, dialetismos etc., antes impensáveis nos gêneros literários “sérios”. Muitas dessas palavras e expressões usadas em textos de Púchkin, reconhecidos e populares já durante a vida do escritor, posteriormente foram “oficializadas” na linguagem escrita. Muitas coisas impressionam em Púchkin, e a menor delas certamente não é o descompasso entre a recepção de sua obra na Rússia e fora dela. Louvado continuamente em prosa e verso pelos russos como seu maior literato, no exterior é menos reconhecido do que nomes como Dostoiévski e Tolstói. Sua obra-prima é o romance em versos Ievguêni Oniéguin (1833), chamado de “enciclopédia da vida russa”. Cada imagem de Púchkin é de uma polissemia tão elástica, e de uma capacidade assimilatória tão espantosa, que ela se insere facilmente nos mais variados contextos. A grande prosa russa da segunda metade do século XIX, que surge como se saída do vazio, como um efeito sem causa aparente, foi na verdade uma simples decorrência da poesia russa do século XIX. Deu o tom para tudo que seria escrito mais tarde em russo, e as melhores obras da ficção russa podem ser consideradas como um eco distante e uma elaboração meticulosa da sutileza psicológica e léxica demonstrada pela poesia russa do primeiro quartel do século passado. A maioria dos personagens de Dostoiévski são envelhecidos heróis de Púchkin, Oniéguins e outros assim. Foi uma sorte rara e boa para a literatura russa que o talento de Púchkin fosse de inclinação tão múltipla e clássica. Suas obras constituíram em si mesmas um corpo de tradição. Púchkin era um gênio universal que reunia em si toda a humanidade. Afinal, ele podia incorporar gênios alheios em sua alma, como se fossem nativos. Na arte, ao menos na obra literária, ele demonstrou essa aspiração universal do espírito russo de forma indiscutível.”

Irineu Perpétuo, Como ler os russos.

“Púchkin é um dos escritores mais puros que a Rússia produziu em termos da harmonia completa que seus escritos transmitem. Antes da chegada de Púchkin, a literatura russa era míope. As formas que ela enxergava eram um contorno dirigido pela razão: não via a cor como tal, mas apenas usava as combinações rotineiras em que um adjetivo canino segue o substantivo cego, tal como a Europa herdara dos clássicos. Em 1880, na inauguração do memorial dedicado a Púchkin em Moscou, um evento de enorme repercussão em que ficou manifesta a paixão da Rússia por Púchkin e de que participaram os principais escritores da época, Dostoiévski apresentou Púchkin como o representante do espírito nacional da Rússia, que sutilmente compreende os ideais de outras nações mas os assimila e digere de acordo com sua própria conformação espiritual. Dostoiévski identificou nessa capacidade a prova da missão histórica do povo russo.”

Vladimir Nabokov, Lições de literatura russa.

Nossa leitura

Eugênio Oneguin é a obra-prima de Púchkin. No Brasil, recomendo a excelente tradução de Rubens Figueiredo para a Companhia das Letras. Recomendo também o poema “O Cavaleiro de bronze”, disponível em português, espanhol e inglês.

Edição recomendada em português:

Tradução de Rubens Figueiredo.
Completo, mas fora de catálogo, encontrável também em sebos. Tradução de Dario Moreira de Castro Alves
Em catálogo, mas só tem os primeiros 4 livros dos 8 totais. Tradução de Alípio Correia de França Neto e Elena Vássina

Outras traduções recomendadas

Tradução de James E. Falen
Tradução de Stanley Mitchell
Tradução de Anthony Wood
Tradução de Eduardo Alongo Luengo
Tradução de Mijail Chilikov
Tradução de Felipe Franco Munhoz

Crítica

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Linguagem não-sexista

Em meus textos, para chamar atenção para o sexismo de nossa língua, inverto a norma e uso o feminino como gênero neutro. Não porque troquei um sexismo por outro, mas porque o gênero da palavra “pessoa” é feminino.

Trocar:

“Meus alunos não calam a boca.”

Por:

“Minhas alunas não calam a boca.”

Só mantém o sexismo da língua. Pior: sugere que são apenas as minhas alunas mulheres que não calam a boca.

Por isso, hoje, digo:

“Minhas pessoas alunas não calam a boca.”

Essa tem sido, pra mim, a maneira não-sexista de escrever.

Mais detalhes aqui: Mini manual pessoal para uso não-sexista da língua.