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Camões e Gil Vicente

Além de serem dois dos maiores artistas da língua portuguesa, também representam perfeitamente as estruturas de pensamento em confronto no século XVI. (Guia de Leitura para o curso Introdução à Grande Conversa.)

Gil Vicente e Camões, além de serem dois dos maiores artistas da língua portuguesa, também representam perfeitamente as estruturas de pensamento em confronto no século XVI.

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Em 1502, apenas dois anos após a chegada de Cabral do Brasil, Gil Vicente encena sua primeira peça na Corte Portuguesa: hoje considerado “pai do teatro ibérico”, seus autos e farsas ajudaram a apoiar, possibilitar e glorificar a expansão marítima portuguesa. Ainda no mesmo século, em Os Lusíadas, Camões cria uma das obras literárias mais emblemáticas do Renascimento, unindo os deuses da mitologia grega e estilo épico da Eneida com os valores da cristandade e a exaltação dos feitos bélicos de seu pequeno reino.

Mas toda obra-prima é mais inteligente que sua autora: apesar de Vicente e Camões escreverem para exaltar Portugal, as fraturas expostas desse projeto imperialista são visíveis por toda parte de seus textos. Em O Auto da Índia, no auge da celebração nacional pelas grandes navegações, uma jovem aproveita a ausência do esposo, que buscava a glória no Além-Mar, para traí-lo com dois amantes. Já em Os Lusíadas, enquanto Vasco da Gama está embarcando em sua mui-heroica frota para as Índias, um velho aparece no Restelo (o bairro de onde saíam as naus) e faz um apaixonado discurso contra aquela aventura: as melhores vidas do reino estavam se perdendo no mar, por pura ganância, enquanto passava-se fome por não haver camponeses para lavrar a terra. O Velho do Restelo desmonta o poema por dentro, sabota seu chauvinismo conservador e nos permite reinterpretar a obra inteira em uma nova chave: é a chaga exposta que o texto não pôde ou não quis esconder. Parte da grandeza de Os Lusíadas está na coragem, ou na temeridade, de dar voz ao Velho do Restelo. Mais tarde, José Saramago colocou o Velho do Restelo em Cabo Canaveral, conversando com os astronautas que subiam para a Lua.

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Camões era um espírito renascentista, humanista, cientificista. (Os Lusíadas é cheio de conhecimento científico de ponta.) Quer descobrir o mundo, pensar o universo, cruzar os mares. Acredita no homem, no progresso, na ciência.

Por outro lado, Gil Vicente, de fato, não estava no porto celebrando as navegações: era um reacionário à moda antiga, contra tudo o que era novo, contra mudanças na sociedade, que acha tudo aquilo uma loucura que iria virar o mundo de cabeça pra baixo. (Não estava errado.) Ele não exalta a nação… porque está exaltando Deus. (Em suas sátiras e farsas onde faz um panorama de toda a sociedade, a crítica maior sempre é para as pessoas ambiciosas que não sabem o seu lugar.)

Para o reacionarismo pé no chão de Gil Vicente, nada poderia ser mais arrogante do que essa busca pelo progresso e pela autossuficiência que Camões representa.

De modo bem real, ambos representam o melhor dessas visões de mundo que, até hoje, ainda estão em confronto.

Ambos são o tema da sexta aula, Grandes Navegações, do curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, que acontece quinta agora, 12 de novembro, às 19h.

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Leia também meu texto principal sobre Gil Vicente.

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Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Camões e Gil Vicente é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 10 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/camoes-e-gil-vicente // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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