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aula 06: navegações gil vicente grande conversa

Auto da Sibila Cassandra, de Gil Vicente

Uma obra impressionante, que já no título une a tradição clássica ao cristianismo, primeiro grito ocidental em defesa da mulher. (Guia de leitura do curso Introdução à Grande Conversa.)

Cassandra, a pitonisa amaldiçoada por Apolo para que ninguém acredite nela, é uma das personagens mais interessantes da mitologia. Gil Vicente tem uma peça sobre ela, Auto da Sibila Cassandra, escrita em espanhol em 1511, que já no título começa a misturar a herança clássica (“Cassandra”) com a cultura cristã (“auto”).

A peça é considerada um dos primeiros textos da literatura europeia a apresentar certos temas a partir de uma perspectiva feminina, como perda de liberdade depois do casamento, peso da maternidade, destempero dos maridos, brigas domésticas, etc.

Cassandra recebe vários pretendentes, mas ela se recusa terminantemente a casar, fazendo elogios à liberdade e argumentando que o casamento é um cativeiro. Ela canta:

Dizem que me case, então.

Não quero marido, não.

Prefiro viver segura,

nesta serra, na soltura,

do que entrar na aventura

de um bom ou mau casamento.

Dizem que me case, então.

Não quero marido, não.

Mãe, não quero ser casada

pra não ver vida cansada

ou talvez mal empregada

a graça que Deus me deu.

Dizem que me case, então.

Não quero marido, não.

Não é nem será nascido

quem possa ser meu marido;

e já que tenho sabido

que a flor mais formosa eu sou,

dizem que me case, então,

não quero marido, não.

[Tradução: Alexandre Soares Carneiro e Orna Messer Levin. Duas belíssimas versões musicais dessa cantiga.]

No fim, Cassandra revela que um de seus motivos para não querer casar é que tinha profetizado que o salvador nasceria de uma mulher virgem, e ela achava que seria ela. Mas, na verdade, descobrimos que estamos em um Auto Natalino e que, ali ao lado, na manjedoura, Jesus está nascendo de Maria. Cassandra percebe o seu engano, assiste ao nascimento e fica feliz.

A cena final parece ser toda encenada para benefício de Cassandra, uma anti-Maria, com presciência sem caridade, irremediavelmente pagã em seu desejo de se elevar acima dos outros, de ser a “mãe de Deus”. Apesar disso, Cassandra não é de modo algum punida: seu arco na trama leva somente à sua feliz conversão, à sua união ao grupo de pessoas que celebra o nascimento do Messias. (Não há nem mesmo menção de se ela terá que casar contra sua vontade, e presumimos que não.) Enquanto a tragédia clássica apresentava o ser humano sempre esmagado pelo destino que lhe era inexplicável, o drama cristão é otimista e inclusivo por definição e mostra, em grande parte das vezes, a providência divina agindo para salvar a alma de um pecador. É uma mudança conceitual poderosa, que influenciará toda a cultura ocidental. (Spitzer.)

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Assim como Os Lusíadas, é uma obra que funde, de maneira belíssima e surpreendente, a herança greco-romana que vai começando a ser recuperada pela Renascença, e os temas cristãos e natalinos que eram a essência do teatro e da literatura medievais.

Cassandra, naturalmente, era um nome conhecido do público, remetendo à profetisa da mitologia grega. A personagem de Vicente faz profecias, fortalecendo a associação. Mas, por outro lado, ela também não é a Cassandra que conhecemos, pois um de seus pretendentes é Salomão (rei de Israel? um homônimo) e, depois, encontra figuras bíblias como Moisés, Abraão, Isaías. Por outro outro lado, as velhas aldeãs têm os nomes de outras sibilas mitológicas. Por fim, a peça termina no próprio nascimento de Jesus. Onde estávamos? Quando estávamos? Faz diferença? O teatro de Gil Vicente embola todas essas categorias para demonstrar que, na verdade, não faz tanta diferença assim: somos isso tudo, ao mesmo tempo, uma cultura greco-romana e cristã que se estende através dos milênios.

A peça não é uma miscelânea de motivos seculares e pagãos, mas uma ampliação dos primeiros através dos últimos: tudo converge ao mistério natalino. Gil Vicente mostra como o cristianismo é amplo, eclético, canibal, aglutinando tudo que consegue agarra sob seu enorme guarda-chuva, uma apoteose do pensamento medieval, seu ponto máximo, mais maduro, mais inclusivo, mais carregado de sentido. (Spitzer.)

(Referências: Leo Spitzer, “A unidade artística do Auto da Sibila Cassandra”; Robert Potter, “La Sebila Cassandra: Gil Vicente’s Postmodern Feminist Christmas Play”)

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Alguns links

Texto completo do Auto de Sibila Cassandra, em espanhol.

Dois artigos, em português: Questões femininas na obra de Gil Vicente & O imaginário feminino sobre o casamento em Gil Vicente: “libertação ou fardo?”

Leia também meu texto principal sobre Gil Vicente. Ou um texto sobre Cassandra.

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Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Auto da Sibila Cassandra, de Gil Vicente é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 10 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/auto-da-sibila-cassandra-de-gil-vicente // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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