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A tempestade, de Shakespeare

Talvez a mais misteriosa das grandes peças. É sobre arte? Autoridade? Colonialismo? (Guia de Leituras para a Grande Conversa.)

A Tempestade (nem tragédia, nem comédia, mas um “romance”, termo vago que caracteriza as últimas peças de Shakespeare) é uma obra onírica e indistinta, esfumaçada e sonolenta, de enredo solto e elíptico, onde ninguém morre nem se machuca.

(Sempre quero saber a opinião de vocês sobre esses textos. Se leu, gostou, responda esse email ou deixe um comentário. :) Todos os links levam à Amazon Brasil e, se você comprar algo por lá, ganho uma comissão. E agradeço.)

Em uma ilha deserta no Mediterrâneo, o feiticeiro Próspero, antes todo poderoso Duque de Milão, cria sua filha Miranda e planeja sua vingança contra aqueles que lhe tomaram o poder. Ajudado pelo ente mágico Ariel, ele faz com que um navio transportando seus inimigos naufrague perto da ilha. Como um diretor de teatro, ele coordena várias cenas, entre elas, fazendo com que um príncipe se apaixone por sua filha Miranda. Estranhamente, quando enfim se revela aos náufragos, Próspero não planejava vingar, mas simplesmente perdoa todos.

Talvez a figura mais enigmática e polêmica da peça seja o (monstro?) Calibã, filho de uma feiticeira que havia chegado na ilha e morrido antes de Próspero. Calibã, criatura simples, nem sabia falar, recebe Próspero e Miranda na ilha e, em troca, recebe o dom da fala e é escravizado. Quando os náufragos aparecem, Calibã convence dois dos membros mais infames a matarem Próspero e tomarem a ilha, mas o plano é rapidamente desbaratado por Ariel. No final, antes de abandonar a ilha, Próspero liberta tanto o fiel Ariel quanto o infiel Calibã.

Das principais peças de Shakespeare, talvez seja a que desperta mais paixões e polêmicas sobre seu “verdadeiro” assunto. É uma peça sobre autoridade ou sobre arte? Sobre sonho ou sobre perdão? Ultimamente, uma das suas leituras mais comuns (que deixava Harold Bloom morto de raiva) era a anticolonial. O que as relações entre Próspero e Miranda, Ariel e Calibã, pode nos ensinar sobre o imperialismo europeu na América Latina?

Para Victor Hugo, grande defensor dos pobres e oprimidos, A Tempestade era um texto poderosamente mítico que completava a Bíblia, dava um final tranqüilo ao drama sangrento do livro do Gênese e simbolizava a expiação de um crime ancestral. Uma última criação de Shakespeare, no tom solene de um testamento. (Oxford.)

Melhor edição/tradução brasileira.

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Uma peça sobre autoridade e controle

O primeiro diálogo da peça, no barco, já gira em torno de questões de poder e controle: os nobres querem ordenar o contramestre e o contramestre sabe que está sob controle da tempestade, que precisa vencer ou morrerão todos. Quando Gonzalo apela para uma variação do “Sabe quem está falando?”, a resposta é maravilhosa:

Gonzalo

Muito bem; mas lembrem-se de quem têm a bordo.

Contramestre

Ninguém de quem eu goste mais do que de mim mesmo. (I, i)

(Todas as citações são da tradução brasileira de Barbara Heliodora, disponível nessa belíssima edição que eu recomendo. O primeiro algarismo se refere ao ato, o segundo à cena.)

Naturalmente, as relações de Próspero com Ariel e Calibã derivam todas de controle: ele afirma repetidas vezes ser o mestre de ambos, que são igualmente seus entes escravizados. A diferença é que um deles é submisso e outro, não. Tudo que Ariel e Calibã fazem é para conseguir a liberdade. Surpreendentemente, nessa peça que também pode ser considerada sobre perdão e conciliação, ambos conseguem.

(René Girard, em Shakespeare: Teatro da Inveja, sempre falando de mimética, aponta que o desejo mimético em Calibã é tão forte que sua estratégia para se livrar da dominação de Próspero é encontrar um outro mestre, ainda menos digno, e lhe fazer a mesma oferta: mostrar a ilha em troca de amor. Girard, hoje, é um dos meus pensadores favoritos: escrevi mais sobre ele aqui.)

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Uma peça anticolonial

Durante alguns séculos, a leitura de Próspero como uma figura positiva foi um ponto pacífico da peça. No começo do século XIX, porém, com o movimento abolicionista cada vez mais popular na Inglaterra, já não era mais possível ler com tanta benevolência um senhor de escravos que trata seus dois escravizados com tanta tirania — mesmo se os tiver libertado ao final. Já em 1840, Calibã era posto em cena como um abolicionista negro que cantava a Marselhesa. Na adaptação de Aimé Cesaire, de 1969, Ariel é mulato claro e Calibã, negro escuro. Em uma montagem recente, de 1993, de Sam Mendes, o primeiro ato de Ariel recém-libertado é cuspir na cara de Próspero.

Em 1971, na revista Casa de las Américas, o intelectual cubano Roberto Fernández Retamar publicou o influente artigo “Caliban”, que, ao menos para mim, solidificou essa leitura em um contexto latino-americano e anti-imperialista. (Esse artigo, brilhante, fecundo, impactante, merece ser lido inteiro, aqui, em espanhol.)

Em A Tempestade de Shakespeare, o branco europeu Próspero rouba as terras e a liberdade do nativo Calibã, ao mesmo tempo em que lhe concede um dom problemático e complexo: a fala. Diz Calibã:

Agora eu sei falar, e o meu proveito
É poder praguejar. Que a peste o pegue,
Por me ensinar sua língua! (I, ii)

Próspero seria o tirano ilustrado que o Renascimento tanto ama; Miranda, sua linhagem, sua continuação; Calibã, as massas colonizadas.

Para Fernandez Retamar, assumir nossa condição de Calibãs equivaleria repensar nossa própria história desde o outro lado, a partir de um outro protagonista. Não há polarização entre Ariel e Calibã: ambos são igualmente escravizados pelo feiticeiro estrangeiro. A diferença é que Calibã, trabalhador rude e braçal, não tem como ignorar sua condição, enquanto Ariel, criativo e aéreo, ainda consegue se enganar. Ariel, naturalmente, representa os intelectuais: eles podem optar entre serem cooptados, podem escolher servir Próspero e cavar assim uma vida marginalmente melhor, mas sempre temidos por ele e ainda escravizados, ou podem unir-se a Calibã, em sua luta pela verdadeira liberdade. Naturalmente, era esse o convite e o desafio que Fernandez Retamar, intelectual da Revolução Cubana, estendia a suas pessoas leitoras. (Fernandez Retamar)

(Fernández Retamar não foi o primeiro intelectual latino-americano a tentar nos explicar através de A tempestade. Antes dele, um dos mais influentes artigos explicadores de nós mesmos tinha sido Ariel (1900), do uruguai José Enrique Rodó. De muitas maneiras, o artigos de Fernández Retamar é uma resposta e uma correção a Rodo. Esse artigo de Moacyr Scliar, na Folha, resume um pouco desse rico debate.)

No filme de 2010, Próspero é uma mulher e Calibã, um negro de forte sotaque africano.

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Calibã e Manzano

Em 1835, Juan Francisco Manzano, escravizado cubano e poeta autodidata, escreveu sua autobiografia. Na edição que organizei e traduzi para a editora Hedra, eu desenvolvi uma comparação entre Manzano e Calibã, a partir idéias de Fernandez Retamar:

Manzano também recebeu um idioma que não era seu, para que pudesse melhor servir suas pessoas proprietárias. E, como a pessoa em posição subalterna não necessariamente é passiva, Calibã e Manzano contra-atacam, cada um de seu jeito. Calibã reafirma sua natureza animal e seus baixos instintos (um outro nome para “instintos não europeus”) e tenta violar a filha de Próspero.

Manzano, mantendo-se sempre cuidadosamente dentro da esfera cultural branca, conseguiu perpetrar uma violação talvez maior: com sua memória e seu talento e sua fala, ele roubou a escrita para si, correndo grande risco pessoal, e a utilizou para obter sua liberdade.

O ato de Manzano foi ainda mais revolucionário que o de Calibã: em vez de agir como uma fera e confirmar os preconceitos das pessoas brancas, Manzano as derrotou em seu próprio jogo, seguindo suas próprias regras.

O grande dilema é que a façanha de Manzano é realizada dentro dos limites da prisão que lhe ofereceu seu Próspero, del Monte: a cultura branca. Para vencer na sociedade branca, Manzano precisou tornar-se parcialmente branco e afastar-se de sua própria condição negra e subalterna. Não mais Calibã mas também nunca Próspero, autor consagrado mas ainda negro em uma sociedade escravista, Manzano ao mesmo tempo é e não é: símbolo vivo das contradições da subalternidade.

(Criei um site para divulgar a obra do Manzano, que você pode visitar aqui: juanfranciscomanzano.com)

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Uma peça sobre arte e artistas

Para Colin McGinn, A Tempestade é uma peça sobre a arte, onde Próspero representa a idéia do artista. Nessa linha, a falta de delicadeza ou carinho de Próspero seria um comentário sobre a condição do artista: criativo e exuberante mas também inseguro, brusco no trato e orgulhoso de suas criações.

Ariel simbolizaria a instável e conflituosa relação do artista com seu próprio talento: às vezes, está distante; noutras, submisso; em mais outras, completamente insubmisso e fora de controle. (Ariel gosta do trabalho, e o realiza bem, mas também quer parar de trabalhar, quer relaxar, quer a liberdade, etc.)

Calibã seria algo como um Id selvagem, um parte destrutiva do artista que lhe impede de trabalhar, ou lhe destrói o trabalho, e Miranda (que uma hora afirma que as falas de Próspero lhe davam sono) seriam o leitor/espectador ideal que todo artista precisa introjetar dentro de si e, mais importante, manter interessado, senão não conseguirá jamais terminar de escrever sua obra. Os outros personagens, que por duas vezes quase se rebelam, naturalmente, são o público – sempre a um passo de subir no palco e dar porrada nos atores.

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Inato ou adquirido

Em A Tempestade, Shakespeare articula pela primeira vez, em termos belamente aliterativos, um debate vital sobre a natureza humana que continua contestado até hoje. Próspero, falando de Calibã, diz:

E um demônio nato, cuja têmpera

Nenhum tempero educa; os meus esforços,

Humanamente feitos, ’stão perdidos.

Com o seu corpo que o tempo enfeou,

A mente apodreceu. (IV, i)

A tradução, como não poderia deixar de ser, mata uma pouco, tanto a aliteração, quanto os termos do debate em si. Vejamos no original:

A devil, a born devil, on whose nature

Nurture can never stick. On whom my pains,

Humanely taken, all, all lost, quite lost,

And, as with age, his body uglier grows,

So his mind cankers.

Em inglês, o debate até hoje se dá nesses termos: entre “nature”, ou seja, natureza, nossa genética, como nascemos, e “nurture”, ou seja, nossa criação, como fomos criadas, o ambiente de nossa infância.

Naturalmente, Próspero tem sua opinião formada: Calibã é um demônio nato, ruim de nascença. O argumento contrário seria que Calibã torna-se mau ao ser escravizado por Próspero, que é sua tirania que produz o demônio.

Essa é a obra de referência absolutamente indispensável para ter em casa e ler junto com as peças.

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Um peça sobre o sono, os sonhos, a morte

A peça tem uma certa qualidade de sonho. Há diversas ocasiões de pessoas dormindo, ou sendo postas para dormir, ou acordando do sono, às vezes todas juntas. Estarão realmente vivas? A peça não tem nenhuma morte. Talvez porque todas as personagens já estão mortas? Afinal, não existe morte depois da morte. (Brockbank, citado em Tenner.)

Minhas edições preferidas de Shakespeare são essas da Everyman’s Library. São as que uso.

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Um peça sobre perdão e compaixão

Outro elemento que chama atenção nessa peça sem mortes: Próspero, no clímax da peça, quando realizou todos seus planos, quando frustrou todas as iniciativas de seus antagonistas (Bloom aponta que nenhum personagem shakespereano é tão bem-sucedido), quando está completamente livre para exercer suas vontades e realizar suas vinganças, perdoa a todos, sem exceção, e sem que eles mesmo precisem se arrepender ou pedir perdão ou prometer melhora. É um perdão incondicional, amplo, belíssimo.

Mas também surpreendente, pois nada no Próspero tirânico e irascível da peça nos preparou para isso. Talvez essa diferença tenha como objetivo enfatizar os poderes (mágicos?) de persuasão de Ariel:

Próspero

Como estão o rei e a corte?

Ariel

Retidos,

Todos juntos, assim como ordenou,

E os deixou; estão presos, senhor,

Pelo visgo que guarda a sua cela;

Sem ordem sua, não mexem. O rei,

O seu irmão e o dele estão perplexos.

Os outros se lamentam, junto a eles,

Transbordantes de dor; e mais que todos

Aquele a quem chamou “o bom Gonzalo”

Suas lágrimas correm pela barba

Como neve no inverno. O seu encanto

Tanto os afeta que os vendo teria

Tocado o sentimento.

Próspero

Acha, espírito?

Ariel

Se humano, eu teria.

Próspero

E o meu terá.

Se você, que é só ar, fica afetado

Por suas aflições, não hei-de eu,

Que sou da espécie deles, e que nutro

Paixões iguais, sentir mais que você?

Os crimes deles me tocaram fundo,

Mas co’a razão, mais nobre, contra a fúria

Tomo partido: a ação mais rara

’Stá na virtude, mais que na vingança. (V, i)

Era essa intenção de Próspero desde sempre, do alto de sua tirania de mestre, amo, senhor? Ou será que o mestre se deixou convencer por seu ente escravizado?

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Fértil e estéril

Outro elemento que faz a ilha parecer um local de sonho é ser frequentemente descrita ou como muito fértil ou como muito estéril, dependendo da cena, dependendo do personagem. É um pouco como se ela fosse tudo para todos, como se adaptasse ao olhar de quem vê.

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Uma peça-despedida

A Tempestade é geralmente considerada a última peça que Shakespeare escreveu sozinho. (Depois de aposentado, ele teria colaborado em outras três.) Desse modo, o belíssimo discurso final de Próspero, que fecha a peça, e também o obra de Shakespeare, é considerado a despedida do grande autor:

Nossa festa acabou. Nossos atores,

Que eu avisei não serem mais que espíritos,

Derreteram-se em ar, em puro ar;

E, como a trama vã desta visão,

As torres e os palácios encantados,

Templos solenes, como o globo inteiro,

Sim, tudo o que ela envolve, vai sumir

Sem deixar rastros. Nós somos do estofo

De que se fazem sonhos; e esta vida

Encerra-se num sono.

Melhor edição/tradução brasileira.

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Leia outros textos meus sobre Shakespeare.

Referências: Bill Tanner, “Introduction”, em Romances, de William Shakespeare, Everyman’s Library; René Girard, Shakespeare: Teatro da Inveja; Colin McGinn, Shakespeare’s philosophy; The Oxford Companion to Shakespeare; Harold Bloom, Shakespeare: The Invention of the Human; Roberto Fernández Retamar, “Caliban“.

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Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a sexta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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A tempestade, de Shakespeare é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 17 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/tempestade-shakespeare // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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