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Paraíso Perdido: o que é, como ler

Com certeza, uma das maiores obras da literatura. Mas é um poema religioso? Político? Pedagógico? O debate continua. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa.)

Paraíso Perdido é a história de uma revolta: Satã se levanta contra a tirania de Deus, tenta derrubá-lo, perde e é lançado aos abismos do inferno, depois de cair por nove dias e nove noites. Ainda revoltado, decide arruinar a Criação e oferece o fruto proibido a Eva.

O poema, que começa com a queda de Satã do Céu e termina com a Queda de toda a humanidade, no momento em que Adão e Eva são expulsos do Éden, poderia ser uma simples história carola, um fanfic da Bíblia, se não fosse contada pelo mais radical dos poetas.

A Revolução Francesa eclipsou a radicalidade da Revolução Inglesa, mas, um século antes, os ingleses já tinham feito o impensável: derrubaram e executaram seu rei e proclamaram uma República. John Milton, poeta radical, defensor da liberdade, apologista do divórcio, se tornou o principal propagandista no novo regime, encarregado de defendê-lo intelectualmente perante uma Europa de reis e rainhas horrorizados. A república teve duração efêmera, o filho do rei executado logo voltou ao trono e comandou um sangrento expurgo. Milton, velho e cego, escapou por pouco de uma execução humilhante, mas viu todos os seus sonhos, ambições e projetos serem destruídos. Nesse momento, escreve Paraíso Perdido.

O diabo deve tudo a Milton, escreveu Shelley. Escrito ostensivamente para exaltar Deus, Paraíso Perdido nos legou o maior rebelde da literatura, um personagem de infinito carisma. A Bíblia nunca nos informa as razões de Satã, mas Milton, sim. Em sua boca, estão articuladas todas as grandes questões políticas de sua época, e da nossa: quanta obediência devemos ao poder constituído? Quais são as obrigações do poder em relação aos seus dominados? É mais digna uma vida de revolta sem fim comparada à paz de uma submissão bovina? Ou, como bem coloca Satã, será melhor reinar no inferno do que obedecer no céu?

Nas palavras de Barbara Lewalski, Paraíso Perdido é um radical projeto pedagógico para nos educar sobre as virtudes, valores e atitudes que fazem um povo ser digno da liberdade.

Na insuportável tensão interna do poema, oscilando entre a religiosidade sincera de Milton e os seus ideais políticos revolucionários, estão resumidas as grandes questões religiosas e políticas que animaram a Reforma e a Contra-Reforma, as guerras religiosas na Europa, e todas as futuras revoluções cidadãs que abalariam a Europa, da Francesa à Russa.

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Existem três teorias principais sobre Paraíso Perdido, de Milton.

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Um poema religioso

A mais antiga, contemporânea ao poema, presume que Paraíso Perdido é o que diz ser: ou seja, um poema sobre a “primeira desobediência do homem”, sobre o “fruto da árvore proibida” e sobre o pecado inicial que trouxe a morte ao mundo.

É uma teoria bem possível. Além de constar do próprio poema, Milton também era um homem sinceramente muito religioso, puritano de raiz e versadíssimo na Bíblia.

(Mas, se era isso, como explicar a sedução do maravilhoso personagem Satã? Sustentam alguns estudiosos do século XX que, se Paraíso Perdido fosse realmente sobre isso, ele não teria mais nada a nos dizer, não se comunicaria mais conosco.)

Minha edição preferida e recomendada de Paradise Lost.

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Um poema político

Ao ler o poema, não é difícil de perceber que, enquanto Satã é um dos personagens mais fascinantes de todos os tempos, os outros, a começar por Deus e Jesus, são bastante apagados. No século XIX, alguns autores românticos (um movimento que valorizava o gótico e o macabro, a rebeldia e a insubmissão, e que era marcadamente antirreligioso) começam a defender que o herói do poema é Satã. Disse Blake: Milton, na verdade, era do partido do diabo. Disse Shelley: ninguém fez tanto pelo diabo quanto Milton.

É uma teoria bem possível. Milton também era um rebelde fracassado, que no começo do poema está exatamente na mesma posição de Satã, exilado e castigado por ter ousado desobedecer a autoridade máxima.

Paraíso Perdido seria, então, a desforra do perdedor insubmisso: o Deus insosso e tirânico do poema representaria o rei vitorioso que esmagara o experimento republicano inglês, e Satã seria o alter-ego de Milton, defendendo todas as teses republicanas pelas quais Milton arriscara a vida e que agora não podiam mais nem mesmo ser articuladas.

(Mas, se for isso, como explicar o final ignóbil e fraco de Satã? E que cada uma de suas maravilhosas falas é sempre imediatamente contradita e negada pela voz narrativa? Será tudo disfarce de Milton?)

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Um poema pedagógico

Durante mais de cem anos, ambas as posições (irreconciliáveis) travaram uma verdadeira batalha literária, cada lado considerando que o outro estava fazendo uma desleitura severa do poema. Naturalmente, como se pode adivinhar, os grupos também se dividiam por política e religião: os defensores da primeira teoria tendiam a ser mais religiosos e mais de direita; os da segunda, mais antirreligiosos e mais de esquerda.

Na década de 1960, surge uma nova teoria que tem a virtude de, pelo menos, conciliar os irreconciliáveis. Stanley Fish defende que, na verdade, Paraíso Perdido é um poema sobre a pessoa leitora e seus processos mentais; ou seja, é um poema pedagógico.

Milton, de fato, era o homem religioso que sabemos que era. O objetivo do poema seria demonstrar, na prática, o quão fácil era se deixar levar pela sedução do mal. Por isso, Satã seria tão sedutor, tão eloqüente, justamente para nos seduzir, nos levar, nos convencer. E, logo depois, a voz narrativa nos acordaria:

“Atenção! Está percebendo o que acabou de acontecer?! Você se pegou concordando com os argumentos do diabo! Olha aqui porque eles não fazem sentido, pelas razões A, B e C, etc.”

Esse mecanismo se repete múltiplas vezes: primeiro, o poema nos seduz; depois, nos humilha por termos nos deixado seduzir; e, por fim, nos mostra o que considera a sua verdade.

Essa teoria também explica algo antes inexplicável: por que Satã vai se deteriorando enquanto personagem? (No começo, ele está em seu mais sedutor, republicano, paladino da liberdade, herói solitário. A medida que o poema avança, porém, suas qualidades vão sumindo e ele se mostra cada vez mais invejoso, mesquinho, pequeno.) A resposta, naturalmente, é que, nós, pessoas leitoras, educadas pelo poema, conseguimos finalmente enxergar sua verdadeira natureza.

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Vale a pena sempre lembrar: essas são apenas três teorias sobre o poema. Nenhuma é intrinsecamente melhor que outra. Nenhuma é idiota, errada, tola. Todas têm seus méritos e foram defendidas por gente muito mais culta, inteligente, perceptiva que nós. Naturalmente, nada nos impede de concordar com qualquer uma dessas, ou com todas, ou com outras. Literatura é isso.

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Poesia é para ouvir

Por fim, a sugestão mais importante.

Em Paraíso Perdido, o ritmo e a sonoridade são tudo. Mesmo quem não fala inglês perfeitamente, recomendo que acompanhe a leitura com esse excelente audiolivro gratuito, nem que apenas para ouvir o ritmo e a cadência da poesia. (Um texto sobre a importância de ouvir poesia.)

Outra sugestão é ler acompanhando esse site, cheio de anotações e explicações (em inglês).

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a sétima aula, Reforma, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Paraíso Perdido: o que é, como ler é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 16 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/como-ler-paraiso-perdido // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

2 respostas em “Paraíso Perdido: o que é, como ler”

Muito bom! É muito raro encontrar um site falando algo sobre Milton. Muito obrigada pelo ótimo trabalho!

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