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Qual tradução de Dante ler?

Existem muitas traduções da Divina Comédia em catálogo. Como escolher a melhor… pra você? Guia de leitura da Grande Conversa Fundadora.

Quando vocês me perguntam “qual tradução de Dante ler?” talvez não se deem conta de o quão difícil é essa pergunta e de o quão pessoal é essa resposta.

Tudo depende de quais são nossas prioridades, do que estamos buscando na obra.

Ou seja, depende, basicamente, de você.

(Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Dante, do meu curso Grande Conversa Fundadora: as obras que inventaram as línguas literárias modernas. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.)


Com raras e (des)honrosas exceções, editoras boas e consolidadas não publicam traduções “ruins”.

Por exemplo, a princípio recomendo evitar tudo da editora Martin Claret, mas gostei muito da edição deles de Fausto. A tradução de Agostinho D’Ornellas é excelente, apesar de antiga, e a edição está bem cuidada.

Mas a da 34, de Jenny Klabin, é tão superior que nem recomendei.


Então, se você me pergunta, as traduções de Dante da Companhia das Letras e da 34 são excelentes. Qual escolher?

Tradução de Emanuel França de Brito, Mauricio Santana Dias e Pedro Falleiros Heise

Qual você preferir. Qual te soar melhor. Qual fizer da sua leitura mais fluida, mais gostosa.

Então, por exemplo, se aquilo que mais te interessa é o enredo, o conteúdo, saber o que acontece na historinha, essa versão em prosa da L&PM resolve plenamente sua questão.

Mas, aí, claro, você perde toda a poesia, a sonoridade, a musicalidade.

Eu amo a tradução para o inglês de Allen Mandelbaum, ela é belíssima e poética, e bastante fácil de entender. Talvez seja a que leio com mais prazer.

Só que, claro, inglês é tão, mas tão diferente de italiano que ela é poética sim, mas é a poesia de Mandelbaum: a dicção própria de Dante, sua sonoridade e musicalidade, isso tudo se perde.

Em português, tanto a da 34 quanto da Cia das Letras são muito boas.

Tradução de Ítalo Eugenio Mauro.

A da Cia das Letras é mais fiel ao texto original, o que significa que não suaviza as escatologias, o que é bom, mas também significa que, pra acompanhar Dante mais de perto, usa palavras difíceis e fora de uso quando poderia usar outras mais fácil.

Por exemplo, considerem a palavra “pélago”:

“substantivo masculino

[Marinha] profundo, longe das costas.

Abismo.

[Figurado] Imensidade; profundidade.”


No canto I, 22-27, Dante escreve:

“E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l’acqua perigliosa e guata,

così l’animo mio, ch’ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.”


Eugenio Mauro, da 34, traduz:

“E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a encara,

minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo passo
que pessoa alguma já deixou com vida.”

É uma imagem poderosa, real, concreta.


Já o time de tradutores da Cia das Letras traduz assim:

“E como alguém sem ar vindo ofegante
logo ao sair do pélago à deriva
se volta à água, ao risco já distante,

assim a minha força, fugitiva,
se voltou para trás para ver o passo
que não deixou jamais pessoa viva.”


Eu não conhecia a palavra “pélago”. Por isso, pra mim, a tradução da Cia das Letras não comunicou nada. O que era pra ter sido uma imagem poderosa se transformou numa ida ao dicionário. A força da cena se perdeu.

É uma má tradução? De modo algum.

Dante usou a palavra “pelago” e eles, tendo à disposição a palavra “pélago” em português, usaram também.

Mas o peso cumulativo de sucessivas escolhas por palavras mais difíceis que a média faz a tradução da Cia das Letras soar cansativa pra mim.

Mais e mais, tenho preferido a de Eugenio Mauro, da 34.

Ou seja, qual é a melhor tradução?

Não sei.

Se você quer uma leitura mais fluida, talvez Mauro, da 34.

Se você quer uma leitura mais fiel, talvez o time da Cia das Letras.

Ou outra que você preferir.


Mandelbaum, 1982, certamente a tradução pela qual tenho mais afeto, resolveu assim:

And just as he who, with exhausted breath,
having escaped from sea to shore, turns back
to watch the dangerous waters he has quit,

so did my spirit, still a fugitive,
turn back to look intently at the pass
that never has let any man survive.


Na prática, entretanto, pra mim, hoje, em 2022, por razões pessoais, porque estou apaixonado por espanhol, porque estou dando a Grande Conversa Espanhola, estou lendo Dante em espanhol. Eis como as traduções que estou lendo resolveram essa questão:

trad. José María Micó [2018].

Y como aquel que sale jadeante
del mar y al verse libre del naufragio
se vuelve y mira el agua procelosa,

de igual modo mi ánimo, aún huyendo,
se volvió atrás para mirar el paso
que no cruzó jamás ningún ser vivo.


trad. Luis Martínez de Merlo. [1982].

Y como quien con aliento anhelante,
ya salido del piélago a la orilla,
se vuelve y mira al agua peligrosa,

tal mi ánimo, huyendo todavía,
se volvió por mirar de nuevo el sitio
que a los que viven traspasar no deja.


Só por curiosidade, uma amostra de como outros tradutores resolveram esse mesmo dilema na nossa língua. (Quando a tradução estiver em catálogo, vai o link.)


Luiz Vicente De Simoni. [1843]

E como quem com alento anciado
Do pélago sahindo para a riva,
Volve-se, e olha a onda em que hap’rigado:

Assim minha coragem fugitiva
Virou-se para traz, a ver o passo,
Que jámais não deixou pessoa viva.


Antonio José Viale. [1883]

E como quem, sem fôlego, da amara
Agoa das ondas salvo, a praia alcança,
Os olhos volve ao mar, de que escapara;

Tal meu animo afflicto a vista lança
Para o bosque tão negro e temeroso,
Que tolhe ao coração toda a esperança.


trad. Domingos Ennes. [1887]

Como quem ofegante e sem alento,
Sendo tirado da onda que deriva,
Olha da riba o pégo turbulento.

Na mente, naquela hora ainda esquiva,
Entrei a contemplar de novo o espaço
Que não deixou jamais pessoa viva.


trad. Barão da Villa Barra. [1888]

O náufrago depois que a praia ganha,
Arquejando, ofegante volve os olhos,
Os transpostos abismos contemplando.

Assim o meu espírito inda esquivo
Pôs-se a mirar de novo aquele passo
Com vida por ninguém jamais vadeado.


trad. Xavier Pinheiro. [1888]

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.

[Essa é a versão em domínio público mais fácil de encontrar.]


trad. João Trentino Ziller. [1953]

Qual náufrago, depois de luta fera,
tendo alcançado a suspirada meta,
o mar revolto incerto considera,

assim minh’alma, pensativa, inquieta,
a contemplar virou-se o rude passo
que não deixou jamais pessoa ereta.


trad. José V. de Pina Martins. [1972]

E como quem sem fôlego e com afã
fosse salvo das ondas junto à margem
e olha para o mar que o afrontara,

o meu ânimo assim, que inda fugia,
voltou-se a remirar atrás o espaço
que jamais homem vivo atravessou.


trad. Cristiano Martins. [1976]

E como aquele a quem já o sopro para,
saindo da água à praia apetecida,
volta-se, fita o pélago, e repara

― assim, a alma em torpor, naquela lida,
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.


trad. Augusto de Campos. [1986]

e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.


trad. Vasco Graça Moura. [1995]

E como quem a respirar arfava,
escapando do pélago à deriva,
e as águas perigosas remirava,

assim minh’alma, ainda fugitiva,
volveu a olhar atrás aquele passo
em que pessoa alguma ficou viva.


trad. Jorge Wanderley. [2004]

E como o que sem fôlego escapasse
do mar à praia e em hora pungitiva
à onda perigosa ainda encarasse,

assim minh’alma, que ia fugitiva,
voltou-se pra trás, olhando o espaço
de onde jamais voltou pessoa viva.

[Não conhecia essa tradução, mas gosto do Wanderley e gostei bastante desse trecho. Infelizmente, ele só traduziu o Inferno antes de falecer.]


trad. Luis Dolhnikoff. [2012]

Como quem, a respiração ansiosa,
Depois que na praia do mar se livra,
Volta-se e olha a água perigosa,

Minha coragem, ainda fugitiva,
Virou-se para olhar aquele passo
Que não deixou jamais pessoa viva.


trad. Eugênio Vinci de Moraes. [2016]

E como aquele que, como um náufrago, ofegante, chega à praia e se volta para encarar as águas traiçoeiras, assim minha alma, que ainda se afastava, voltou-se para olhar o lugar do qual homem algum jamais saiu vivo.


trad. Matheus Mavericco. [2016]

E como quem, cansado e indisposto,
salvo do pélago ao chegar na areia,
ao mar bravio então revolve o rosto,

a isto meu ser que foge se baseia,
no que retorno a remirar o rumo
no qual, vivo, ninguém jamais passeia.

[Retirei esses trechos do blog do próprio Matheus.]


Termino repetindo a solução de Eugenio Mauro, da 34, que, depois de ler todas essas, gosto cada vez mais:

E como aquele que ofegando vara
o mar bravio e, da praia atingida,
volta-se à onda perigosa, e a encara,

minha mente, nem bem de lá fugida,
voltou-se a remirar o horrendo passo
que pessoa alguma já deixou com vida.

Tradução de Ítalo Eugenio Mauro.

* * *

Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Dante, do meu curso Grande Conversa Fundadora: as obras que inventaram as línguas literárias modernas. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.

5 respostas em “Qual tradução de Dante ler?”

Considero todas as traduções da Divina Comédia para o português lamentáveis. Perde-se o essencial em poesia: a diretidade da linguagem, o ritmo e as maravilhosas jogadas no plano microscópico. A edição da 34 Letras, por exemplo, é impecável graficamente. Mas é só. Eugenio Mauro abre o poema já com escândalos de tradução. Dante diz: Nel mezzo del cammin di nostra vita. Eugenio Mauro traduz: A meio caminhar de nossa vida. De onde ele tirou isso? No meio do caminho virou a meio caminhar. Quis tornar (segundo o entendimento equivocado dele) vetusta uma passagem clara e direta. Para não falar que esse infinitivo torna metálico e duro um verso de andadura suave. Ainda no primeiro terceto Dante escreve: ché la diritta via era smarrita. Eugenio Mauro traduz: estava a reta minha via perdida. Trata-se de uma inversão canhestra, num português que se torna bizarro. Por coincidência, acabo de escrever um artigo sobre as traduções da Divina Comédia, cujo (mau) exemplo é justo a tradução de Eugenio Mauro. Meu artigo pode ser lido aqui: t.me/colunadokenard

Li com atenção, e aceitarei sua sugestão. Irei comprar a da editora 34: parece forte, mais fácil de ler, mais convidativa. Obrigada

A editora principis faz uma edição linda, campeã de vendas atualmente. Aí você vai ler, é a tradução de Xavier pinheiro, de 1888. Não tem uma estrofe com pelo menos 2 palavras novas. Parece que estou lendo em outro idioma, tenho que ficar com dicionário do lado. Que dor. Vou dar exemplo da parte que estou lendo, as palavras que desconheço de algumas estrofes: calcaram, flamas, tardo, lasso, lume, estória, furente, dite, tolhendo.

Eu pensei pela edição bonita que seria uma nova tradução kkkk Pelo menos agora vou aprender muitas palavras novas, e aprendi também a pesquisar sobre a tradução antes de comprar um livro kkmkkk

“Como alguém que já sem respiração
de um naufrágio consegue se salvar
e olha o perigo atrás com atenção,

assim minh’alma, pronta a debandar,
voltou-se para trás olhando o passo
do qual ninguém sai vivo pra contar.”

Essa é a tradução do José Clemente Pozenato, que publica por editora própria.
Das apresentadas, tenho maior gosto pela do Italo Eugênio Mauro e a do Cristiano Martins, que mantém a fidelidade, sem esquecer a musicalidade do texto.

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