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Poema do meu Cid, introdução

O Poema do meu Cid (séc XIII) é a primeira grande obra-prima espanhola, talvez a primeira verdadeira obra-prima literária em qualquer língua românica.

Poema do meu Cid, no século XIII, é a primeira grande obra-prima espanhola, talvez a primeira verdadeira obra-prima literária em qualquer língua românica (ainda faltavam cem anos para A Divina Comédia) e um exemplo do melhor que a poesia medieval tinha a oferecer. É a canção medieval perfeita, protagonizada pelo cavaleiro paradigmático, bem-sucedido e em total sintonia com seu mundo.

Será nossa leitura na primeira aula do curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna.

(Edição recomendada, espanhol antigo.)

Ao contrário de textos escritos na mesma época em inglês ou português antigo, o poema pode ser lido com prazer (e apenas alguma dificuldade) por um falante do espanhol contemporâneo.

(Para ajudar, existem várias versões modernizadas em espanhol, assim como traduções para dezenas de línguas. Minha versão modernizada preferida, pelo poeta Pedro Salinas, em pdf gratuito. E minha tradução preferida ao inglês, pelo poeta Paul Blackburn. Abaixo, dou mais opções.)

Não é o que esperamos de um livro de cavalaria da Idade Média: não tem fantasia, dragões, feiticeiros, lendas. Exilado do reino com alguns poucos homens leais, a primeira atitude do Cid é pegar um empréstimo para pagar suas tropas. Na verdade, ele dá um cambalacho nos usurários, deixando um baú de areia como caução.

Uma das características mais interessantes da poesia épica espanhola é a proximidade temporal e geográfica aos fatos narrados. Enquanto o ciclo arturiano começa a circular cantando um rei que presumivelmente vivera muitos e muitos séculos antes, o Poema do Cid canta um herói ainda vivo na memória. Enquanto outras poesias épicas medievais são mais fantasiosas e escapistas, povoadas por heróis perfeitos que lutam contra monstros e gigantes, o Cid enfrenta a ingratidão de um rei ocupado e a ganância de genros covardes.

(minha tradução preferida ao inglês.)

Não é uma poesia épica realista (algo que nem faria sentido!), mas existe um substrato realista, quase prosaico, que ao mesmo tempo em que o aproxima de nós, também o destaca das outras canções épicas e heroicas medievais, de Beowulf à Canção de Rolando, do ciclo arturiano ao Amadis de Gaula — que leremos na aula 3.

Fruto de uma época onde literatura e oralidade ainda se confundiam, estudiosos discutem até hoje se o poema foi “escrito” ou se é uma performance oral transcrita. O único manuscrito que temos dele, pequeno e não adornado, não se parece com os manuscritos tradicionais, feitos para durar séculos e preservar conhecimentos valiosos, mas sim com um auxílio de performance: o papel é fino, cabe no bolso, está manchado e, ao final, uma nota pede “mais vinho”.

O que chama atenção no Poema do Cid, e em muitas outras obras medievais que leremos, até Celestina (na aula 4), é como seus autores, na falta de precursores ou modelos, criaram uma literatura nova, desgarrada, violentamente original. Todas as possibilidades literárias e estilísticas estavam em aberto, até mesmo a língua que usavam era fresca, ainda não fossilizada em gramáticas (a primeira gramática do espanhol é de 1492) e, por isso, é um prazer, uma delícia, um privilégio podemos ler a produção de grandes artistas criando nessas condições.

O Poema do Cid é irregular, tanto na métrica (os versos e as estrofes têm tamanhos radicalmente diferentes) quanto no tom (mistura seriedade com humor, registros cultos com populares, sacros com profanos). Ao contrário de outros tantos poemas épicos, o foco do Poema do Cid não são vitórias militares, conquistar o amor da amada cortesã, ou mesmo recuperar uma honra perdida, mas objetivos prosaicos como casar bem as filhas. Assim, a família do Cid, suas filhas e sua esposa, estão sempre ali, presentes, criando um ar de intimidade, domesticidade e verossimilhança que só torna as cenas de ação ainda mais emocionantes. O poema nunca nos deixa esquecer por quem, concretamente, o Cid está lutando.

Ao longo dos séculos seguintes, o Cid (que realmente existiu) foi se transformando em um personagem mítico, cercado de um elenco de coadjuvantes digno das melhores mitologias: seu fiel cavalo Babieca; Jimena, que passa de nêmesis a fiel esposa; Urraca, a princesa que renuncia ao seu amor; Sancho, a quem Cid presta lealdade mas é traído e assassinado; Alfonso, que passa de suspeito do crime à monarca a quem Cid agora deve lealdade, etc. Mais ainda, começam a surgir inúmeros prequels do Poema do meu Cid (em forma de canções, poemas narrativos, peças de teatro e, especialmente, cordéis, nossas leituras da aula 2) mostrando o herói em uma fase mais jovem, rebelde e intransigente – em total oposição ao Cid maduro e leal do Poema do meu Cid.

Ao longo da história espanhola, o Cid sempre foi o grande herói nacional. Mas faz sentido sagrar herói nacional um homem que viveu antes mesmo de surgir a ideia de nação?

E, aliás, qual Cid? No Século de Ouro (séculos XVI e XVII), o Cid paradigmático era o jovem impetuoso dos romances e cordéis. No século XX, a ditadura de Franco produziu até manuais de liderança militar com base no Cid maduro e obediente do Poema do meu Cid.

Hoje, uma novíssima série televisiva (El Cid, de 2020, já na segunda temporada e disponível no Brasil pela Amazon Prime) recupera o Cid inseguro e rebelde da juventude.

Para a primeira aula do nosso curso, leremos O Poema do meu Cid, certamente uma das maiores obras da literatura universal, e também uma seleção de romances e cordéis posteriores, medievais e renascentistas, sobre o jovem Cid. Para acompanhar, recomendo ouvir um bom audiolivro, assistir ao filme hollywoodiano de 1961, a série espanhola de 2020 e, principalmente, o episódio da série Ministerio del Tiempo.

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Leituras

Como ler

A versão original, em espanhol antigo, pode ser bastante difícil. Recomendo ler uma das versões modernizadas em verso (López Estrada, Salinas ou Montaner Frutos), acompanhando com o áudiolivro (da versão López Estrada) e consultando a edição da Penguin pelas notas. Não recomendo as traduções para o português por serem em prosa, mas posso fornecer os pdfs. Em inglês, minha tradução preferida é a de Blackburn, que é excelente. O episódio de Ministério del Tiempo sobre o Cid é imperdível: tenho o arquivo para compartilhar. Para uma releitura contemporânea, recomendo o romance Sidi de Perez-Reverte, também disponível em áudiolivro.

Edições recomendadas

Espanhol antigo

Espanhol modernizado

  • —> Poema del Cid [140pp, Castalia, coleção Odres Nuevos, versão Francisco Lopez Estrada. Poesia.]
  • —> Poema de Mio Cid [163pp, ver. Pedro Salinas. Poesia.] (pdf)
  • —> Cantar de Mio Cid [85pp, Mestas, ver. Alberto Montaner Frutos. Poesia.] (pdf)
  • Cantar de Mio Cid [170pp, Edaf, trad. Luis Guarner, 1970. Poesia.] (pdf, kindle)
  • Cantar del Cid [150pp, Espasa-Calpe, ver. Alfonso Reyes. Prosa.] (pdf)
  • Cantar de Mio Cid [Ver. Timoteo Riaño Rodríguez e Maria Carmen Gutiérrez Aja. Poesia] (site)
  • Cantar de Mio Cid [Ver. Miguel Garci-Gomez. Poesia.] (site)

Português

  • Poema do meu Cid [130pp, ed. Francisco Alves, trad. Maria do Socorro Almeida. Prosa] (pdf)
  • O poema do Cid [115pp, ed. Relógio D’Água, trad. Afonso Lopes Vieira. Prosa] (pdf)

Inglês

  • —> Poem of the Cid [170pp, Univ. Okhlahoma Press, trad. Paul Blackburn. Poesia.] (pdf)
  • The song of the Cid [125pp, Penguin, trad. Burton Raffel. Poesia. Bilíngue.]
  • The epic of the Cid [107pp, Hackett, trad. Michael Harney. Prosa]
  • The Lay of the Cid [Trad. R. Selden Rose e Leonard Bacon. Poesia.] (site 1, site 2)
  • Cantar de Mio Cid [Trad. Archer M. Huntington, 1903. Poesia. Bilíngue.] (site 1, site 2)

Áudio

Site

  • No Instituto Cervantes (site)
  • Na Universidade do Texas (site)

Vídeo

Apoio

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Épica, do meu curso Grande Conversa Espanhola: do El Cid ao Dom Quixote, a invenção da literatura moderna. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Para comprar o curso, clique aqui.

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