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O Brasil, enlouquecido

Em qual momento você percebeu que o Brasil tinha enlouquecido?

Para mim, foi 16 de março de 2016.

Eu estava em Matanzas, Cuba, lançando um livro na Feira Internacional do Livro, e o Moro liberou os áudios de gravações ilegais entre um ex-presidente e a atual presidente.

Já havia uma crise política em andamento, naturalmente. Mas era uma crise política feijão com arroz, parecia a velha crise politica de sempre.

Então, isso!

(Naturalmente, o fato político relevante não foi o ato individual do Moro — juiz doido sempre existiu — mas metade do Brasil aplaudir e ele não ter sido imediatamente preso e execrado.)

Talvez, pra mim, tenha sido mais impactante por estar sozinho no exterior, único brasileiro entre centenas de editores, escritores, intelectuais, que vinham todos me perguntar:

“¿Que pasa en Brasil, Alejandro?”

E respondi que não sabia.

Que claramente tudo tinha mudado.

Que as regras antigas não se aplicavam mais.

Que, de agora em diante, tudo era possível.

Desde então, confesso, nada mais realmente me surpreendeu.

Enterrei ali meu estoque de surpresas.

E você? Quando foi?

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Elogio ao Henfil

Quando eu tinha seis anos de idade, Henfil publicou essa capa na sua revista Fradim, confessando abertando seu tesão por pés femininos. (E publicando cartas das leitoras que lhe enviavam fotos dos pés.)

Não vou nem dizer que abriu caminhos ou horizontes para mim, porque, nessa época, eu ainda era muito pequeno.

Mas, quando fui crescendo, e descobrindo quem eu era, o que eu queria, o que eu gostava, foi extremamente importante para minha autoestima e para minha sanidade que esse caminho já estivesse aberto, que já fosse uma coisa no ramo do possível.

Obrigado, Henfil.

* * *

Meu depoimento:

Elogio aos pés
papodehomem.com.br/elogio-aos-pes

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Porque escrever sobre “Prisões”

Só faz sentido escrever sobre Prisões porque as pessoas estão presas.

Um comentário que recebi hoje:

“Alex, tem um aspecto que sempre vejo você desconsiderando nas suas análises, que é o complexo e o medo da rejeição. Não é próprio da sua experiência, não é da sua personalidade, mas é um fator com um peso gigante na vida das pessoas mais inseguras. Eu diria que metade dos adolescentes sofrem primordialmente por isso (eu) enquanto a outra metade se sente no topo do mundo nesta fase (você?). Junto com o aspecto identitário que você descreveu, tem a dor de ser rejeitado pelo parceiro e pelo empregador, de não ser bom o suficiente pra ser amado/aceito/apreciado.”

Se todas as pessoas fossem bem-resolvidas como você acha que eu sou, meus textos perderiam totalmente a razão de ser.

Se eu achasse que todas as pessoas eram bem-resolvidas como você acha que eu sou, eu definitivamente estaria escrevendo outras coisas.

Afinal, pessoas livres, bem-resolvidas, no topo do mundo, etc, não estão procurando textos sobre a Prisão Trabalho, a Prisão Monogamia, etc.

Eu só escrevo sobre Prisões porque

1) eu SEI que a maioria das pessoas é aprisionada por inseguranças galopantes e

2) estou tentando ajudá-las.

Sem qualquer uma dessas duas condições, ou seja, se eu não soubesse como as pessoas são inseguras ou se eu não quisesse ajudá-las, os textos das Prisões simplesmente não fariam sentido e eu teria passado os meus últimos anos fazendo alguma outra coisa.

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As virtudes de não-lutar

Estamos no século III antes da Era Comum. Roma, então somente uma cidade-estado na península itálica, estava em guerra com outra cidade-estado, Cartago (perto da atual Túnis), pelo controle do Mediterrâneo.

Aníbal Barca, um dos grandes generais de todos os tempos, desembarcou um exército de mercenários e elefantes na Espanha, cruzou os Alpes enfrentando mil perigos e penetrou na Itália pelo norte, surpreendendo Roma e suas aliadas.

Durante dezoito longos anos, Aníbal perambulou pela península, vencendo todas as batalhas que travou.

Roma sofreu derrotas achapantes, que teriam derrubado qualquer cidade mais fraca, e que são estudadas até hoje em academias militares pelo mundo, como as de Lago Trasimeno e Canas.

Ainda assim, não caiu.

Por quê?

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Elogio às forças armadas

A esquerda precisa urgentemente reatar relações afetivas, intelectuais, estratégicas com as forças armadas.

Defesa, teoria militar, geopolítica, nada disso é “coisa de direita”. Aliás, todas as revoluções populares que tivemos foram ganhas e, depois, mantidas por forças armadas coesas, unidas, eficientes.

(Os escravos do Haiti conquistaram sua independência das armas; Cuba manteve a sua da mesma maneira. Os exemplos são inúmeros.)

As forças armadas não têm lado: elas são do lado de quem estiver lá, ocupando suas patentes, estudando suas questões, articulando suas prioridades.

Se a esquerda hostiliza as forças armadas desde a redemocratização, é natural que elas sejam majoritariamente ocupadas por pessoas de direita.

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O que significa nossa bandeira

Uma amiga norte-americana, uns dez anos atrás:

“Alex, sabe qual a coisa que mais amo no Brasil? Na Europa, em qualquer país, se você encontra uma grupo de pessoas enroladas na bandeira nacional, já sabe que não é coisa boa. Nos EUA, as casas com a bandeira hasteada na fachada são sempre de republicanos que apoiam todas as nossas guerras e invasões. No Brasil, não. Aqui, as pessoas vestem a bandeira do Brasil, colocam a bandeira nas havaianas e nas camisetas, vão à praia com a canga da bandeira, e isso não é ameaçador, não é agressivo, não é violento. Aqui a bandeira ainda é linda, positiva, inspiradora.”

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Levamos uma surra achapante

Eric Hobsbawm afirmava ter dedicado toda sua vida a um projeto que considerava fracassado, mas que nada aguçava tanto a mente do historiador quanto a derrota: afinal, quem consegue ser reflexivo enquanto está ganhando? Quem consegue aprender com suas vitórias?

A palavra “autocrítica” tem o sufixo “auto” porque é uma crítica que uma pessoa ou grupo faz a si mesma. Pedir ou exigir “auto”crítica a outrem é uma forma disfarçada e hipócrita de criticar.

Não posso fazer autocrítica do PT pois não sou nem nunca fui petista, nem pensaria jamais em exigir isso do partido e de suas pessoas apoiadoras: elas que decidam o que querem fazer de si mesmas e de seu projeto político.

Mas sou de esquerda e, já faz anos, escrevo publicamente como homem de esquerda: publiquei até um livro chamado “Outrofobia: textos militantes” e mantive um blog de mesmo nome na Revista Fórum.

Primeiro, é preciso encarar a realidade, sem dourar pílulas: nós, as pessoas que nos consideramos de esquerda, sofremos uma derrota achapante e literalmente traumática (tenho várias amigas sinceramente traumatizadas, chorando, deprimidas), a maior na minha geração.

Política não é a arte de ser o mais certo e puro e lacrador do partido derrotado, mas de chegar ao poder, por meios democráticos, para assim implementar nosso projeto de governo legitimado pelo voto popular.

Nisso, falhamos miseravelmente. Isso é fato. As urnas comprovam.

Como falhamos? Por que falhamos? Como devemos fazer de agora em diante?

Não sei. Realmente, não sei.

Mas sei que essa é a grande questão que vou estar me colocando, de mim para mim mesmo, nos próximos meses e anos.

Não sei como agirei daqui pra frente, mas com certeza mudarei o meu jeito de fazer/pensar/articular política.

Porque, claramente, não deu certo.

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A maré da história

Em alguns anos ou décadas, talvez tenhamos uma nova perspectiva sobre a eleição de ontem.

Talvez a gente se perdoe.

Talvez a gente perceba que não dava para ter vencido.

Talvez a gente seja como o exército polonês em 1939, discutindo se deveríamos ter mandado a cavalaria pela esquerda ou pela direita, como se isso fosse fazer alguma diferença.

Talvez a gente perceba que estávamos na contramão de uma nova onda da História.

Mas talvez a gente também perceba que é da natureza das ondas ir e vir, que quando a onda da História está contra nós, a maior vitória é simplesmente resistir e sobreviver até maré mudar.

Porque a maré da História sempre muda.

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O voto das pessoas pobres

Faz algum tempo, escrevi que brincadeira só é brincadeira se a outra pessoa tem total liberdade de me mandar a merda, ir embora ou responder na mesma moeda.

Brincadeira de cima pra baixo tem outro nome: humilhação.

Penso muito nisso quando me pego tentando mudar o voto da empregada ou do faxineiro, da garçonete ou do taxista.

Ser de esquerda é ter consciência de classe. Ser de esquerda é ser sensível aos horrores da sociedade de castas onde nos calhou viver.

A moça quer apenas servir o meu café e garantir sua gorjeta, esperar o fim do seu turno e descansar em sua cama.

Eu aqui, do alto do meu privilégio, querer lhe ensinar qual é o voto correto me parece desrespeitoso e arrogante, invasivo e imperialista.

Então, em minha vida, também adotei essa regra: só tento mudar o voto de quem pode, livremente, me mandar à merda.

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Não é uma foto, é um espelho

Alemanha nazista, verão de 1939 ou 1940. Um casal apaixonado, nas areias de uma praia, completamente absortos um no outro, concentrados em seu amor, entregues ao seu futuro cheio de possibilidades.

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Guia pessoal para conversas políticas

Antes de conversar sobre política com qualquer pessoa, tento sempre lembrar que:

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O Brasil terá o presidente que merece

O Brasil terá o presidente que merece.

Só depende de nós fazer desse fato autoevidente uma esperança ou uma maldição.

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Melhora interior vs melhora exterior

Não acredito em “melhora interior” se ela não se manifesta em uma melhora “exterior”, ou seja, em uma melhora da maneira como tratamos as outras pessoas e interagimos com o mundo.

Se existe essa “melhora exterior”, então, ela é sinal de que existe uma “melhora interior”.

Se não existe essa “melhora exterior”, então, tanto faz o que está dentro de nós: claramente não está funcionando.

Meu próximo livro, “Atenção.”, a ser lançado pela Rocco em 2019, é exatamente sobre isso.

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Duas histórias do Leme

Que tipo de pessoas somos se certas tragédias nem ao menos estragam nosso apetite?

* * *

O Leme é um sub-bairro de Copacabana, um canto pacífico e fora de mão onde convivem os ricos da praia, os pobres do morro e todas as outras classes sociais entre elas. Um resumo do Rio de Janeiro.

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Geléia de Jabuticaba

Café da manhã de pousada em Paraty. Mãe, filha, avó:

A filha trazia a proverbial cara-de-cú da adolescente forçada a viajar com a família.

A mãe, profissional liberada e empoderada, ocupada e sem tempo a perder, parecia ansiosa para sair dali e ticar boxes no seu roteiro já pré-planificado de Paraty: Praça da Matriz e Praia do Pontal, Igreja de Santa Rita e Cais do Porto, etc e etc.

Mas a avó estava simplesmente maravilhada demais com aquele simples café-da-manhã. Tudo era lindo, incrível, delicioso:

“Tem omelete! Feita na hora! Quentinha!”

“Mãe, a senhora ainda nem começou a comer. Desse jeito a gente vai ficar aqui até o meio-dia, vamos perder Paraty!”

Em resposta, a avó pegou um pote da mesa, leu o rótulo e riu sozinha, feliz como uma menina:

“Olha só, geléia de jabuticaba caseira. Que incrível! Quanto tempo que não vejo isso.”

Entre a filha impaciente e a neta entediada, me senti na obrigação de tomar partido.

Fiz contato visual com a senhorinha e disse:

“Tá tudo tão lindo, né?”

* * *

Esse texto é dedicado à minha mãe, que faz aniversário amanhã e que também anda pela vida se maravilhando com cada pote de geléia. Obrigado, mãe.

* * *

O próximo encontro As Prisões: Exercícios de Atenção será o meu CENTÉSIMO evento, e acontece no fim-de-semana de 21 a 23 de setembro. Saiba mais.

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Kafka no restaurante

Alguém deve ter distorcido seu pedido, pois assim que Joseph K chegou no restaurante o garçom já lhe trouxe um bife. Joseph K mandou voltar o bife e o garçom disse que não tinha autoridade pra devolver o bife, que Joseph K deveria falar com o Gerente-Geral. Joseph K pede que ele pelo menos afaste o bife, pois é vegetariano e tem nojo. O garçom diz que não pode fazer nada, que é apenas uma engrenagem na grande máquina do restaurante, que não sabe como as coisas funcionam, que tem acesso apenas ao 3o cozinheiro, que teria que passar o bife ao 2o cozinheiro, que teria que passar o bife ao 1o cozinheiro, que teria que passar o bife ao cozinheiro-chefe, que nenhum deles nunca tinha visto, não sabiam nem se existia um cozinheiro-chefe. Joseph K pede que o garçom então chame o Gerente-Geral. O garçom avisa que é inútil, que o Gerente-Geral nunca vem ao restaurante, nunca gerencia nada e nunca, nunca fala com os clientes, mas que iria tentar assim mesmo.

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Diálogo em uma mesa de bar carioca

A gente se acostuma a tudo.

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A Autobiografia do Poeta-Escravo em escolas públicas de todo Brasil

É com enorme prazer que compartilho a melhor notícia de minha carreira de escritor:

A Autobiografia do Poeta-Escravo, de Juan Francisco Manzano, organizado, traduzido e anotado por mim, foi selecionado pelo PNLD Literário (Programa Nacional do Livro e do Material Didático).

Em breve, milhares de estudantes de escolas públicas por todo Brasil terão acesso à história de vida de um homem excepcional: um poeta nascido escravizado e que se libertou por força de sua palavras.

O livro foi lançado no Brasil em 2015 e, em Cuba, no ano seguinte. Está à venda nas principais livrarias e existe em versão ebook.

Para comprar e saber mais:
alexcastro.com.br/autobiografia-do-poeta-escravo

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De quem é a bondade?

“Lembremos-nos, também, de socorrer os mais necessitados, particularmente os enfermos, sendo para eles um sinal da bondade divina.”

Uma das frases mais bonitas e intrigantes da missa de hoje de manhã.

Afinal, se eu, homem mortal e falho, posso decidir, por um ato de vontade humana, socorrer um enfermo e me tornar, assim, para ele, um sinal da bondade divina…

… uma interpretação possível é que só socorri o enfermo por inspiração da bondade divina.

Uma outra inspiração mais interessante é que o pobre enfermo está projetando bondade divina onde só existe bondade humana, ou seja, que Deus está tomando crédito pela minha bondade.

Que, na verdade, só existe a bondade humana, inclusive a bondade humana de inventar um Deus que justifique, com sua bondade divina fictícia, a bondade humana que já praticamos umas com as outras.

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Perdoa-me por te esqueceres

Fui presidente do grêmio de uma escola de mil alunos (1991-93). Trabalhei com consultor entrando e saindo de diferentes empresas por oito anos (1999-2007). Dei aulas em escolas, cursos e universidades por dezoito anos (1993-2011). Estou promovendo encontros As Prisões: Exercícios de Atenção por todo Brasil há eis anos (2013-).

Sou o primeiro a dizer que nossa falta de memória é um sintoma da nossa falta de atenção: “quem presta atenção, lembra”, etc.

No meu caso, porém, a questão é tamanho do HD. Simplesmente não dá pra lembrar de todas as pessoas com quem tive interações intensas e significativas, mas curtas. (Só nos meus encontros já vieram duas mil.)

Então, pra começar, peço desculpas prévias por não lembrar de você quando nos esbarrarmos em 2020. Não quer dizer que você foi desimportante para mim. Não quer dizer que não prestei atenção no que você me contou. Quer dizer apenas que já superei e muito a capacidade do meu HD mental para nomes e rostos. Perdão.

E, pra terminar, um pedido: talvez eu me lembre de você, talvez não, mas é sempre mais compassivo pouparmos a outra pessoa de possíveis constrangimentos (“não acredito que você não lembra de mim?!”) e já comece a conversa nos apresentando: “oi, Alex, sou o Paulo, que veio no encontro de Belém, que tinha uma avó com Parkinson, tudo bem?”