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Duas histórias do Leme

“Tinha gente sendo colocada no forno e metralhada por um guarda-chuva a um quarteirão da sua casa. Que tipo de pessoa é você se resolver esse problema não toma precedência sobre tudo?”

Que tipo de pessoas somos se certas tragédias nem ao menos estragam nosso apetite?

* * *

O Leme é um sub-bairro de Copacabana, um canto pacífico e fora de mão onde convivem os ricos da praia, os pobres do morro e todas as outras classes sociais entre elas. Um resumo do Rio de Janeiro.

* * *

Praia do Leme, segunda passada, 17 de setembro de 2018.

Em um banco, uma senhorinha, suas amigas e um poodlezinho.

Andando pelo calçadão, um menino e seu labrador, de focinheira.

Correndo pela areia, um moço bombado e seus dois buldogues ambos soltos.

O menino vê os buldogues vindo na direção dele e pára.

Não adianta: eles vêm direto pra cima dele.

O menino tenta gritar:

“Segura eles, segura eles.”

Não adianta: os buldogues avançam sobre seu labrador que, coitado, de focinheira, não pode nem se defender.

A senhorinha e suas amigas gritam, o poodle rosna, os buldogues atacam, o labrador chora, uma confusão geral.

O dono dos buldogues finalmente consegue alcançá-los e separar todo mundo.

Mas o homi está puto. Muito puto.

Ele grita com as pessoas que reclamaram:

“Porra, nem sangrou, tá tudo bem!”

Ele grita com o menino do labrador:

“Caralho, por que não deu meia-volta?”

Ele grita com seus próprios buldogues

“Seus merdas, desobedientes, vocês vão ver!”

E lá se vai ele, chutando e xingando seus próprios buldogues, e ficamos nós, as testemunhas, nos olhando estupefatas:

“Ele jura que está todo mundo errado, menos ele.”

* * *

Presenciei essa cena ontem e quis escrever esse texto, sobre as inabaláveis autoestima e autoconfiança do homem hetero branco, blá blá blá.

Mas, aí, nesse mesmo Leme, nesse mesmo dia, a poucos metros mas muitos mundos de distância, um pai de família negro, vigia de restaurante no bairro, foi até o ponto de ônibus esperar sua mulher e seus dois filhos que estavam chegando de Kombi. Sabe como é, chuva fina, comunidade tensa, queria voltar com eles pra casa, protegê-los. Estava vestindo bolsa-canguru e tudo, para o filhinho de quatro meses.

Policiais confundiram seu guarda-chuva com um fuzil e abriram fogo.

* * *

Às vezes, acho que a história julgará as pessoas cariocas brancas de classe média de hoje como julgou as pessoas civis da Alemanha durante a Segunda Guerra:

“Tinha gente sendo colocada no forno e metralhada por um guarda-chuva a um quarteirão da sua casa.

Com que direito você ousa prosseguir com sua vida normal, escrevendo sobre atenção e cuidado, lendo Goethe e ouvindo Beethoven, ao invés de largar tudo e lutar por essas vítimas?

Que tipo de pessoa é você se resolver esse problema não toma precedência sobre tudo?”

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