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Perdoa-me por te esqueceres

Um dia, eu não vou lembrar de você. Perdão.

Fui presidente do grêmio de uma escola de mil alunos (1991-93). Trabalhei com consultor entrando e saindo de diferentes empresas por oito anos (1999-2007). Dei aulas em escolas, cursos e universidades por dezoito anos (1993-2011). Estou promovendo encontros As Prisões: Exercícios de Atenção por todo Brasil há eis anos (2013-).

Sou o primeiro a dizer que nossa falta de memória é um sintoma da nossa falta de atenção: “quem presta atenção, lembra”, etc.

No meu caso, porém, a questão é tamanho do HD. Simplesmente não dá pra lembrar de todas as pessoas com quem tive interações intensas e significativas, mas curtas. (Só nos meus encontros já vieram duas mil.)

Então, pra começar, peço desculpas prévias por não lembrar de você quando nos esbarrarmos em 2020. Não quer dizer que você foi desimportante para mim. Não quer dizer que não prestei atenção no que você me contou. Quer dizer apenas que já superei e muito a capacidade do meu HD mental para nomes e rostos. Perdão.

E, pra terminar, um pedido: talvez eu me lembre de você, talvez não, mas é sempre mais compassivo pouparmos a outra pessoa de possíveis constrangimentos (“não acredito que você não lembra de mim?!”) e já comece a conversa nos apresentando: “oi, Alex, sou o Paulo, que veio no encontro de Belém, que tinha uma avó com Parkinson, tudo bem?”

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Meu textinho sobre falta de memória:

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Quem presta atenção, lembra

Se nossa atenção plena e irrestrita é um dos maiores presentes podemos oferecer às pessoas, nossa memória também é uma função dessa atenção. Quem presta atenção, lembra. Se tivemos várias interações com uma pessoa e, ainda assim, não conseguimos lembrar nada ou quase nada sobre ela, isso já nos diz muito sobre nossa Atenção e nosso Cuidado.

Antes, eu tinha várias justificativas já na ponta da língua:

— Foi mal, sou tão distraído, minha cabeça está cheia de problemas, não lembrei mesmo…

Mas a distração que me faz esquecer não é o que me justifica: é o que me condena. Gostaria de poder dizer que sou uma pessoa boa que tem péssima memória e é muito distraída. Mas não: minha péssima memória e minha extrema distração são sintomas de meu profundo desinteresse por tudo que não diga respeito a mim.

Não esqueço os nomes das editoras com quem tenho que fazer networking, o dinheiro que emprestei pra uma amiga, o endereço do moço com quem flertei na praia. Eu esqueço é de lavar a louça (“puxa, fiquei aqui distraído com o filme, agora ela já lavou, amanhã ajudo!”), de assinar o livro de ouro dos porteiros (“putz, com essa correria de natal, nem lembrei, mas tudo bem, ano que vem dou em dobro!”), de responder o email da amiga que pediu minha ajuda (“caramba, essa mensagem está na minha caixa de entrada há três anos, ela já deve ter resolvido sozinha.”)

Mas tudo bem: na minha cabeça, sempre me absolvo. Afinal, sou o protagonista do filme da minha vida e tudo o que eu faço sempre se justifica.

Hoje em dia, quando reparo que estou usando minha falta de memória como justificativa por alguma distração, já soa um alerta em minha cabeça. Qualquer comportamento meu que precise ser justificado ou racionalizado já é por definição suspeito.

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Trechinho do meu livro Exercícios de Atenção: Manual de Outro-Ajuda, a ser publicado em março de 2019 pela editora Rocco.

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