Obra de estreia do maior nome da literatura russa no XIX, esse livro completamente inovador e revolucionário foi responsável direto pela abolição da escravatura no país. Como pôde esse menino rico ter escrito sobre servos de maneira tão bela, nunca sendo invasivo ou condescendente? Reconhecendo seu lugar de fala e sabendo fazer o que Tolstoi e Dostoievski nunca conseguiram: sumir atrás das palavras.
Categoria: leituras
Como (des)ler literatura, uma aula
Os Miseráveis é um dos romances mais longos de todos os tempos. E, em minha opinião, o melhor.
Naturalmente, vários outros romances têm qualidades técnicas e literárias equivalentes. Os meus finalistas seriam Guerra e Paz (Tolstoi, 1867, russo), Moby Dick (Melville, 1850, inglês), Cem anos de solidão (Garcia Márquez, 1967, espanhol), Manuscrito encontrado em Saragoça (Potocki, 1814, francês): todos possuem um interesse profundo, sincero, empático por cada personagem, até os menores — que, na prática, não são menores, pois explodem na página com profundidade e concretude inesquecíveis.
Mas, se o que me faz amar Homero é sua dureza, o que me faz amar Hugo (e colocar Os Miseráveis um nariz à frente de todos os outros romances que já li) é o seu olhar amoroso.
Leituras 2020, comentadas
Não por acaso, o primeiro ano da grande pandemia também foi o ano em que mais li. Abaixo, alguns comentários sobre as minhas leituras em 2020. Antes, alguns avisos. Para quem tiver pressa, a lista está no fim do texto.
A Tempestade (nem tragédia, nem comédia, mas um “romance”, termo vago que caracteriza as últimas peças de Shakespeare) é uma obra onírica e indistinta, esfumaçada e sonolenta, de enredo solto e elíptico, onde ninguém morre nem se machuca.
Cada obra de arte só pode ser julgada e fruida em relação a si mesma, suas premissas, seus objetivos.
Dez romances preferidos
Perguntaram a vários escritores. Aqui vão os meus.
Todo grande romance é cósmico: ele parte da especificidade das situações cotidianas e, a partir delas, abraça a totalidade da existência.
Primeiro, seis romances simplesmente perfeitos, objetivamente impecáveis, que nunca poderiam deixar de estar nessa minha lista:
- Moby Dick (EUA, 1851), de Herman Melville
- Os miseráveis (França, 1862), de Victor Hugo
- Guerra e paz (Rússia, 1867), de Liev Tolstoi
- Grande sertão: veredas (Brasil, 1956), de João Guimarães Rosa
- Cem anos de solidão (Colômbia, 1967), de Gabriel Garcia Márquez
- Tetralogia Napolitana (Itália, 2012-15) de Elena Ferrante
Não por acaso, vamos ler os seis no meu curso Grande Conversa Romance, que está em andandamento. (Sim, ainda dá tempo de você entrar.)
E outros quatro quase tão perfeitos quanto:
- Princesa de Clèves (França, 1678), de Madame de La Fayette;
- Noventa e três (França, 1874), de Victor Hugo
- Os passos perdidos (Cuba, 1953), de Alejo Carpentier
- Solenóide (Romênia, 2015), de Mircea Cartarescu
Falei sobre a Princesa de Clèves e Solenóide nas minhas aulas avulsas para mecenas: A antiliteratura de “Solenóide”, de Mircea Cărtărescu e “A Princesa de Cleves”: outras felicidades. Os passos perdidos fará parte do meu curso de literatura de 2026: Grande Conversa Latino-Americana.
Quais são os seus? Eu quero saber mesmo: me escreve, comenta, me diz.
* * *
Um de meus autores preferidos não entrou, pois nunca escreveu romances (Tchecov), assim como não entraram vários outros que estão entre os mais importantes da minha vida: Ésquilo, Euripides, Lucrécio, Virgílio, Agostinho, Spenser, Vicente, Mendes Pinto, Shakespeare, João da Cruz, Milton, Byron, Shelley, Whitman, Gogol, Hernandez, Maupassant, Kipling, Gorki, Borges, Weil, Freyre, Singer, Szymborska, Ampuero, Enríquez, Schweblin.
Abaixo, as menções honrosas. No total, quinze autoras mulheres.
(Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos.)
* * *
Menções honrosas
Alemão
- Processo, Castelo, Kafka
- Breve romance de sonho, Schnitzler
- Confusão de sentimentos, Zweig
- O homem de areia, Hoffmann
Catalão
Coreano
- Vegetariana, Kang
Espanhol
- Guerra do fim do mundo, Tia Julia e o escrevinhador, Filhotes, Vargas Llosa
- Sobre heróis e tumbas, Sábato
- Colmeia, Cela
- Homem que amava cachorros, Romance da minha vida, Padura
- Enteado, Saer
- Fortunata e Jacinta, Misericordia, Galdós
- O deserto e sua semente, Barón Biza
- Nem mesmo os mortos, Gómez Bárcena
- Cecília Valdés, Villaverde
- A Celestina, Rojas
- Lazarilho de Tormes, anônimo
- O buscón, Quevedo
- O beijo da mulher-aranha, Cai a noite tropical, Puig
- Paixão de Urbino, Otero
- A voragem, Rivera
Francês
- Partículas elementares, Submissão, Houellebecq
- Amante, Dor, Duras
- Corcunda de Notre-Dame, Hugo
- Manuscrito encontrado em Saragoça, Potocki
- A queda, Camus
Inglês
- Lord Jim, Nostromo, Coração das trevas, Conrad
- Morro dos ventos uivantes, Bronte
- Imperfeccionistas, Rachman
- Mrs Dalloway, Woolf
- Grande Gatsby, Suave é a noite, Fitzgerald
- Amada, Morrison
- Benito Cereno, Billy Budd, Bartleby, Melville
- Frankenstein, Shelley
- O despertar, Chopin
- A fera na selva, A lição do mestre, James
Húngaro
- Porta, Szabo
Japonês
- Querida Konbini, Terráqueos, Murata
- Retrato de Shunkin, Cortador de Juncos, Tanizaki
Italiano
- Leopardo, Lampedusa
- Cidades invisíveis, Calvino
Português
- Água viva, Paixão segundo G.H. Hora da estrela, Lispector
- Manual dos inquisidores, Naus, Antunes
- Dom Casmurro, Mão e a luva, Machado
- Romance da Pedra do Reino, Suassuna
- O guarani, Alencar
- Bom dia, Camaradas, Ondjaki
- O cortiço, Azevedo
- A relíquia, O mandarim, Queiroz
- O quinze, Queiroz
- Clara dos Anjos, Barreto
- São Bernardo, Ramos
- Um defeito de cor, Gonçalves
Romeno
- Solenóide, Cartarescu
Russo
- Morte de Ivan Ilich, Ressurreição, Tolstoi
- Jogador, Dostoievski
- Primeiro amor, Pais e Filhos, Torrentes de primavera, Fumaça, Turgeniev
Tcheco
- Insustentável leveza do ser, Brincadeira, Kundera
* * *
Lista em constante movimento. Atualizada pela última vez no dia 18 de outubro de 2025.
* * *
Dez romances preferidos é um texto no site do Alex Castro, publicado originalmente no dia 23 de setembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/dez-romances-preferidos // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
Tersites é tudo que os herois homéricos não são, que ninguém mais é, que até então não existia. Tersites é uma figura que acaba de surgir na história humana: agitador popular e revolucionário marxista, um revoltado e um silenciado, o primeiro anarquista e o primeiro protestante. Um criador de caso que não sabe o seu lugar, um homem do povo que diz que o rei está nu. Um teórico da conspiração, um herói da classe trabalhadora. Tersites é aquilo que somente então se torna concebível.
Atos humanos, de Han Kang
Human acts, romance da sul-coreana Han Kang, me deixou absolutamente destruído, derrubado. Eu, que durmo cedo, só fui desabar às sete da manhã, na lona. Poucas vezes apanhei tanto de um romance em toda a minha vida.
Que livro. Que mulher. Que artista.
José J. Veiga (1915–99) é um de nossos grandes autores esquecidos, um alegórico de mão cheia, talvez único verdadeiro praticante de realismo mágico no Brasil.
Tomás de Aquino, frade e teólogo, mais tarde santo, foi um dos homens mais lógicos e mais racionais de todos os tempos. Ninguém me ensinou, tanto quanto ele, sobre os limites duros da lógica e sobre os pontos cegos da racionalidade.
O livro Na Estrada (1957), de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos.
Para quê serve a História?
O objetivo de qualquer processo filosófico é sempre des-naturalizar o que nos parecia mais natural.
Como organizo meus livros
Ontem, fiz minha primeira live no Instagram apresentando as estantes aqui de casa.
(Se ainda não me segue por lá, aproveita: @outrofobia)
Mas me dei conta de que não expliquei a organização das estantes.
Em resumo:
Ficção de um lado, não-ficção do outro.
Não-ficção por assunto e, dentro, por sobrenome de pessoa autora.
Ficção por língua original e, dentro, por sobrenome de pessoa autora.
Estou completamente embasbacado e impressionado, fascinado e apaixonado.
É como se fosse uma nova Bíblia, melhorada e modernizada, aprofundada e embelezada, onde as questões e discussões latentes no Gênese, em Jó, no Apocalipse, são finalmente desenvolvidas e elaboradas com toda a arte retórica e a beleza vocabular que só um poeta no auge dos seus poderes é capaz.
Paraíso Perdido tem tudo que eu buscava na Bíblia e não encontrava. De certo modo, é melhor, ou pelo menos, é o complemento ao meu livro preferido. Não teria como gostar mais.
(Meus livros preferidos são, nessa ordem, Bíblia, Declínio e Queda do Império Romano, Ilíada. Paraíso Perdido está arriscando entrar na lista.)
As questões levantadas já eram relevantes na época de Milton (que se engajou em uma revolução recém-derrotada e perdeu tudo, menos a vida) e são ainda mais na nossa:
Oquanto de obediência devemos ao poder constituído?
Quais são as obrigações do poder em relação aos seus dominados?
É mais digna uma vida de revolta sem fim comparada à paz de uma submissão bovina?
Ou, como bem coloca Satã, será melhor reinar no inferno do que obedecer no céu?
Romeu e Julieta, de Shakespeare
Romeu e Julieta, de William Shakespeare, talvez seja a melhor, a mais perfeita, a mais acessível tragédia do autor. Sob qualquer critério, um dos ápices da literatura ocidental. Para apreciá-la, porém, nosso maior inimigo é sua própria fama, seu lugar central na nossa cultura, e todas as noções pré-concebidas – “uma história água-com-açúcar”, “os protagonistas são bobinhos”, etc e etc – que trazemos para a experiência.

Peter Handke
Deus!, como eu queria gostar de literatura contemporânea!
Infelizmente, obras sobre personagens tediosos e vazios quase sempre também são obras tediosas e vazias.
Lord Byron está morto há 200 anos, mas nunca escreveu uma frase que não fosse, no mínimo, interessante. É uma das poucas obrigações da literatura.
Acabei de ler quatro romances de Peter Handke, ganhador do Nobel de Literatura de 2019, e só o que pensava era que teria sido melhor, mais útil, mais prazeroso, reler Byron.
Houellebecq
O romancista francês Michel Houellebecq (uélbéq), com toda sua raiva, ressentimento, misantropia, reacionarismo, é, com certeza, em parte por tudo isso, mas também por seu inegável gênio literário, o escritor vivo mais importante do mundo, aquele que mais capturou o zeitgeist, aquele que tem que ler lido pra se entender 2020.
Dos grandes russos, Górki é, ao mesmo tempo, o menor e o maior, o mais falho e o mais necessário.
Nunca perfeito, todos os seus defeitos emanam das suas grandes qualidades, do seu humanismo, da sua empatia, da sua expansividade.

Queen Mab, de Shelley
A poesia é a casa da subversão e do radicalismo.



