A Tempestade (nem tragédia, nem comédia, mas um “romance”, termo vago que caracteriza as últimas peças de Shakespeare) é uma obra onírica e indistinta, esfumaçada e sonolenta, de enredo solto e elíptico, onde ninguém morre nem se machuca.
Categoria: grande conversa
Paraíso Perdido é a história de uma revolta: Satã se levanta contra a tirania de Deus, tenta derrubá-lo, perde e é lançado aos abismos do inferno, depois de cair por nove dias e nove noites. Ainda revoltado, decide arruinar a Criação e oferece o fruto proibido a Eva.
O poema, que começa com a queda de Satã do Céu e termina com a Queda de toda a humanidade, no momento em que Adão e Eva são expulsos do Éden, poderia ser uma simples história carola, um fanfic da Bíblia, se não fosse contada pelo mais radical dos poetas.
Cada obra de arte só pode ser julgada e fruida em relação a si mesma, suas premissas, seus objetivos.
Fernão Mendes Pinto passou vinte anos peregrinando pela Ásia em meados do século XVI, no auge do poder marítimo português. Enquanto quase todos os outros autores escreveram sobre o lado oficial da conquista, ele deixou testemunho sobre a ralé que ia nos porões dos navios. Foi o primeiro ocidental a ver, registrar, testemunhar incontáveis países, povos, culturas, cerimônias asiáticas. Quase morreu várias vezes. Se salvava sempre por sua lábia e por suas mentiras, nunca pela força ou por proezas militares. É o nosso maior pícaro, precursor de Pedro Malasartes, malandro da gema.
Fernão mentia? Mentia. Mas que diferença faz? O importante é que tinha uma mensagem a comunicar e, como todo grande artista literário, comunicou essa mensagem através de palavras, diálogos, episódios que misturam realidade e ficção.
Impedidos de comerciar com o Oriente pelo Mediterrâneo e buscando novos caminhos pelo Atlântico, os europeus começam o caminho que os levará a fundar “novas Europa fora da Europa”, ou seja, a ampliar de maneira global o conceito de Ocidente.
Trabalhamos e pensamos conceitos como Idade Média ou Renascimento, como se fossem muito antigos, como se as próprias pessoas vivendo essas épocas fossem reconhecê-los… mas, na verdade, são surpreendentemente recentes.
A revolução que dá origem às mudanças mentais e culturais que chamamos de Renascimento foi a descoberta da humanidade através das grandes navegações.
Os Lusíadas é um poema de batalhas medievais e tempestades em alto-mar, de deuses pagãos e de cruzadas cristãs, uma etnografia do Oriente e uma celebração do amor físico, entre muitos outros.
Gil Vicente e Camões, além de serem dois dos maiores artistas da língua portuguesa, também representam perfeitamente as estruturas de pensamento em confronto no século XVI.
Cassandra, a pitonisa amaldiçoada por Apolo para que ninguém acredite nela, é uma das personagens mais interessantes da mitologia. Gil Vicente tem uma peça sobre ela, Auto da Sibila Cassandra, escrita em espanhol em 1511, que já no título começa a misturar a herança clássica (“Cassandra”) com a cultura cristã (“auto”).
A peça é considerada um dos primeiros textos da literatura europeia a apresentar certos temas a partir de uma perspectiva feminina, como perda de liberdade depois do casamento, peso da maternidade, destempero dos maridos, brigas domésticas, etc.
Em pleno auge “heroico” do expansionismo português, só mesmo um grande artista como Gil Vicente para ridicularizar, diante do Rei e da corte, os homens que iam fazer fama e fortuna nas Índias.
Gil Vicente
Artista medieval em atividade na Renascença, ao mesmo tempo reacionário e progressista, criador de uma vasta obra polifônica, Gil Vicente certamente é um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Regras de leitura
A maioria das “regras de leitura” só serve para causar ataques de ansiedade e sentimentos de inadequação. A única regra de leitura verdadeira é existencial: toda escolha é uma des-escolha.
A Idade Média não foi nem Era das Trevas nem Idade de Ouro, mas um período de grandes contrastes, em que fome e peste se alternaram com prosperidade e paz, no qual o universalismo do papado e do império conviveram com os particularismos senhoriais e com as monarquias em vias de centralização.
Em plena erupção da peste negra, um grupo de dez pessoas foge de Florença e se isola em uma villa rural. Verdadeiras xerazades medievais, elas mantém a morte afastada contando histórias umas para as outras: dez pessoas (sete mulheres), contando dez histórias por dia, durante dez dias. (Daí o título Decameron.)
Nenhuma outra obra da literatura universal acontece sob a sombra de tanta tragédia. Nenhuma outra obra da literatura universal celebra a vida com tanto vigor, com tanta força, com tanta alegria.
Um dos principais temas do curso Introdução à Grande Conversa é tradução. A maioria das pessoas alunas nunca tinha se dado conta da importância de boas traduções.
Por exemplo, o Decameron é uma obra canônica há quase um milênio e já foi traduzida e retraduzida várias vezes para todas as línguas ocidentais. Por que tanto trabalho? Por que retraduzir um livro já traduzir? Por que pagar mais caro para ler uma tradução contemporânea ao invés de simplesmente ler uma tradução antiga, em domínio público, de graça?
Algumas pessoas do curso Introdução à Grande Conversa: Um passeio pela história do ocidente através da literatura fizeram diferentes variações de uma mesma dúvida:
“Em se falando de literatura ocidental, se a Idade Média não foi época das trevas… por que a grande literatura sumiu? O que houve com as grandes obras do cânone literário? Por que eram tantas na Antiguidade, tantas a partir do Renascimento, mas, de repente, existe um vazio na Idade Média? Na Alta Idade Media, não tem quase nada, só Beowulf e algumas sagas. Na Baixa, onde já existem algumas, Canção de Rolando, Cantar do meu Cid, Ciclo do Rei Arthur, e depois Divina Comédia, Contos da Cantuária, Decameron, etc, ainda assim não dá pra se comparar à Antiguidade e ao pós-Renascimento em quantidade e qualidade. Por quê?”
Não é que essa época teve mais “gênios” do que a média: é que foi nessa época que escolhemos quem seriam nossos grandes autores, a medida do nosso bom escrever. E por que nessa época? Por causa da imprensa.
O Cristianismo surge em uma província do Império Romano, entre judeus helenizados, e seus textos fundacionais são escritos em grego: praticamente um amálgama do mundo antigo sobre o qual, em breve, passará como um trator. Nada preparou a elite intelectual da Antiguidade para os Evangelhos.
Nas palavras de Erich Auerbach, eles eram muito sérios para ser Comédia, muito contemporâneos e cotidianos para ser Tragédia, muito politicamente insignificantes para ser História, mas pulsavam com um imediatismo arrebatador para o qual não havia nem paralelo nem precedente: o que está em jogo, sempre, em cada Evangelho, é simplesmente tudo, a imortalidade da alma individual da leitora e a eternidade do Reino de Deus. Incapazes de se encaixarem na literatura da Antiguidade, os Evangelhos a implodiram.
Agostinho de Hipona, professor de retórica, a princípio desprezava os Evangelhos justamente por sua “baixeza estilística”: a conversão religiosa que narra nas Confissões também é uma conversão estilística, uma descoberta do “sublime na baixeza”. Inventor da autobiografia e primeiro indivíduo da história cujo retrato completo chega até nós, Agostinho afirmava não haver sentido em “abandonar as armas da eloquência aos representantes da mentira”. Assim, combinando seu arsenal retórico grego-romano com os novos valores e prioridades cristãs, ele efetivamente enterra o mundo pagão e inaugura a civilização ocidental como a conhecemos.
Marcos é o primeiro evangelho, o evangelho que inventa os evangelhos. O mais brusco, o mais rápido, o mais curto. O evangelho dos mártires. Que começa com Jesus começa morrendo simbolicamente e termina com Jesus morrendo concretamente. Que é todo determinado por um evento que está além do seu final, mas que pauta cada uma de suas histórias, de suas imagens: o Fim dos Tempos.