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aula 05: idade média decameron grande conversa

Decameron, de Boccaccio

Nenhuma outra obra da literatura universal celebra a vida com tanto vigor, com tanta força, com tanta alegria. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa.)

Em plena erupção da peste negra, um grupo de dez pessoas foge de Florença e se isola em uma villa rural. Verdadeiras xerazades medievais, elas mantém a morte afastada contando histórias umas para as outras: dez pessoas (sete mulheres), contando dez histórias por dia, durante dez dias. (Daí o título Decameron.)

Nenhuma outra obra da literatura universal acontece sob a sombra de tanta tragédia. Nenhuma outra obra da literatura universal celebra a vida com tanto vigor, com tanta força, com tanta alegria.

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A peste negra

É difícil estimar quantas pessoas a Peste Negra matou na Europa ao longo dos vários anos nos quais foi endêmica. Existem estimativas de que tenha matado quase metade da população da Europa. É difícil de exagerar (e de conceber) o impacto social de uma doença que, em poucos anos, mata metade de um continente. Em algumas regiões do norte da Itália, onde se passa o Decameron, há estimativas de 80% de mortes. (Em comparação, no traumático onze de setembro, morreram três mil pessoas, ou cerca de 0,01% da população dos Estados Unidos.) Mesmo se não tiverem morrido tantas pessoas assim, com certeza as pessoas contemporâneas tinham essa percepção.

Imagine como seria sua vida hoje se metade das pessoas que você conhece tivesse morrido de 2016 pra cá. Imagine que você não sabia se você ou suas pessoas mais queridas seriam as próximas vítimas. Por fim, imagine como tudo seria pior se você vivesse em comunidades relativamente pequenas e unidas, onde todo mundo se conhecia.

Pois esse é o contexto histórico do Decameron. Mas o Decameron não é sobre isso. O Decameron é radicalmente o oposto disso. O Decameron é a maior celebração da vida da literatura universal.

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Decameron: celebração da vida

Li o Decameron por sugestão de Henry Miller, mais um de tantos presentes que esse velho sem-vergonha me deu: era um dos livros que ele lia quando queria se inspirar, se insuflar de energia, alçar voo.

Das grandes obras universais, talvez seja a mais acessível: as histórias são curtas, divertidas, fáceis de ler. O tema principal, sem dúvida, é sexo e adultério, mas sempre de uma perspectiva leve. Boccaccio é como se fosse um Nelson Rodrigues do bem, sem o lado sádico e reacionário do nosso anjo pornográfico.

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A (a)moralidade do Decameron

Mais do que isso,o Decameron fala de sexo e adultério sem ser moralista. Nas cidades mercantis do norte da Itália, começava a nascer um novo tipo de moralidade, mais burguesa e mais flexível, menos aristocrática e menos teocrática. Boccaccio, bardo dessa nova moralidade, não distingue entre amor e sexo, entre o sentimento do amor romântico e o sentimento do amor carnal. Para ele, o ser humano é parte da natureza, dotado de impulsos e vontades que não são éticos nem anti-éticos, mas apenas convenientes ou inconvenientes.

Daí o Decameron ser um grande elogio à inteligência, pois é através dela que as personagens conseguem tanto usufruir dos seus desejos quanto manter as aparências. Naturalmente, os personagens FALAM muito de amor romântico e virtudes cristãs, mas raramente AGEM de acordo. Mais importante, a voz narrativa não os pune por essas contradições: ao contrário, ela nos apresenta infindáveis trepadas e falcatruas sem nunca aprovar mas também sem nunca condenar.

Essa ambivalência moral corre ao longo de todas as cem histórias do Decameron como uma fissura geológica, jogando a narrativa contra si mesma e gerando acaloradas discussões que mantém a popularidade do livro há 700 anos.

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Literatura em prosa

Boccaccio quebra uma série de paradigmas: ele escreve em prosa; na língua vernácula que se falava nas ruas, o italiano; e sobre pessoas do povo. Até então, a literatura só era levada a sério se fosse drama ou poesia; em latim, pois era a língua da alta cultura; e sobre aristocratas e reis. O Decameron é um daqueles raríssimos livros que é tão, mas tão revolucionário que, 700 anos depois, parece até normal. Mas, na verdade, nossa literatura de hoje se parece com o Decameron porque ela foi praticamente inventada pelo Decameron.

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Precursor do romance realista

O romance não tem como não ser realista, pois presume a realidade empírica como algo dado. Os contos moralizantes, os fabliaux, os romances corteses têm muito valor literário, são belos e interessantes, mas ainda não tem essa consciência de si mesmos, essa consciência de uma existência terrena que precisa ser vivida e compreendida e valorizada em si mesmo (e não em função de um julgamento divino futuro), que será uma das marcas do humanismo renascentista e um dos originadores do gênero literário romance. É nesse sentido que o Decameron, com todo seu humanismo vanguardista, também é considerado um precursor da novela e do romance, gênero que somente podem surgir e florescer já no Renascimento, com Rabelais e Cervantes. O romance, na verdade, é um sintoma, uma representação literária desse novo espírito, com sua consideração apaixonada pela vida terrena, sua nova mentalidade aristocrática agora individual e não mais feudal, com sua consciência de si. (Auerbach, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 17-9)

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A moldura do Decameron

O Decameron tem suas cem novelas, mas tem também a moldura que lhes dá forma: dez pessoas, numa vila isolada, durante a peste, um tema diferente por dia, etc. Na literatura anterior, havia molduras parecidas, mas elas eram mais importantes que as histórias: o que importava eram quem estava contando, como, porque. Boccaccio, no Decameron, inverte esse efeito: a moldura passa a ser um pretexto para a narração das histórias e, também, um meio artístico para intensificar o seu efeito. A moldura tornava-se assim um jogo elegante, um jogo de salão para divertir pessoas ricas, nobres e ociosas. Aquelas histórias, sozinhas, por si só, seriam um fabliaux popular, histórias talvez grosseiras de necessidades sexuais e fisiológicas, acontecidas entre pessoas pequenas, baixas, do povo. Ao inserir sua estrutura moldural, Bocaccio eleva-as, aos olhos de seus contemporâneos elitistas, ao nível da mais alta literatura: a moldura literária torna-se assim um meio não só de Boccaccio transformar suas anedotas populares em alta literatura, mas também em fazer seu público elitista e letrado valorizar aquelas histórias, experiências, vivências populares. Dante inaugura a própria consciência e individualidade do artista como assunto literário de primeiro nível: Boccaccio, possibilitado e estimulado por Dante, coloca essa tema em uma nova moldura, ao mesmo tempo bucólica, letrada, elitista, popular. (Auerbach, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 22-23)

Existe uma incongruência lógica no coração do Decameron. Por um lado, Boccaccio enfatiza, no Prefácio, que a Peste está fazendo a civilização praticar desabar; há anarquia e saques, violência e desespero nas ruas, a volúpia o crime estão desenfreados; não restou nenhum ponto de apoio. Por outro lado, vemos dez jovens, todos de boa família, se isolando em uma vila como se estivessem em uma viagem de lazer, como se houvesse toda a segurança, como se o mundo não estivesse acabando lá fora, de coração leve e divertido, mantendo os mesmos hábitos sociais elegantes que mantinham quando a civilização estava de pé. Auerbach pergunta: O que os mantém juntos? Que poder mágico lhes garante tanta calma interior? Não são concebidos como pessoas particularmente fortes, ou capazes, ou dignas de nota. Pelo contrário, parecem todos medianos, medíocres, nenhum se sobressai aos outros. Na verdade, são tão mal-desenhados que mal conseguimos distinguir uns dos outros. Também não é a fé que os mantém, pois não parecem ter muita. Não é na religião que buscam refúgio, consolo, forças. O que faz com que pessoas delicadas, mimadas, fragilizadas, resistam tão calmamente a um destino tão terrível? Segundo Auerbach, é a pura força da forma social. A medicina, a família, o estado, a religião, tudo mais falhou. As pessoas estão morrendo nas ruas, desenganadas, desesperadas. Mas a forma aristocrática é inabalável, a educação nobre é a única barreira que resistiu. Assim, não é por coincidência que os dez narradores são tão mal delineados. Se fossem pessoas mais distintas, mais individuais (como são, aliás, as personagens das histórias) as próprias histórias perderiam sua razão de ser: os heróis seriam os narradores. Também por isso são especialmente tão esfumaçadas as relações entre eles. (Quem está pegando quem? Não sabemos, não temos como saber?) A boa sociedade vive desse discreto e misterioso vaivém das pessoas elegantes: uma vontade única e decidida, um personagem forte impondo sua vontade aos outros, uma relação passional entre dois amantes irrompendo ali, tudo isso destruiria o efeito de coletividade esfumada e harmoniosa de todo o grupo. Para evitar isso, a moldura se resume a duas paisagens: a cidade lá fora, imersa no caos, e o campo, idílico, perfeito, ordenado. Dentro disso, a liberdade e amplitude que essa moldura oferece era inédita. Esse é o grande contraste do Decameron, essa é a fissura interna, incontornável, inexplicável, que lhe dá forças. É isso que permite que uma coleção de histórias populares e popularescas tenha sido aceita tão rapidamente, quase automaticamente, no cânone criado e mantido pelas pessoas mais elitistas e eruditas. Ao mesmo tempo que as histórias celebram a inteligência e a potência das pessoas simples do povo, a moldura celebra o poder do berço, a força interna advinda de uma impecável educação aristocrática. O Decameron oferece um pouco para todas as pessoas: todo mundo pode se olhar nele, ver a si mesma refletida e, em alguma medida, gostar do que está vendo. (Auerbach, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 25-27)

Ao mesmo tempo, a literatura pós-Boccaccio revela ainda mais não apenas suas qualidades, mas que elas não foram apreendidas. Não faltaram, por exemplo, romances moldurais, mas nenhum com a ênfase totalizante do Decameron. Não faltaram livros coletando histórias, contos, novelas, mas eram sempre histórias mais simples, anedotas, que não tinham a complexidade e a textura nem equivalente às piores novelas do Decameron. (Auerbach, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 81-96)

Onde Boccaccio era rico e dinâmico, com sua moldura social e predomínio das mulheres, os romances seguintes terão um estilo mais anedótico, de moldura atrofiada e misoginia cética; onde Boccaccio tinha uma mirada ampla, da sociedade como um todo, futuros romances vão observar a mulher cada vez mais em situação doméstica e subalternizada. Mesmo quando romances futuros, dos séculos XIV e XV, imitam a aparência do Decameron, eles minam suas premissas e sua própria alma. Quando o romance surge, finalmente, no século XVI, as mulheres já não tem mais nenhum protagonismo. (Auerbach, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 101-3)

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Decameron, narrativa totalizante

O Decameron não é uma simples coleção de novelas aleatórias. Além de misturar prosa com poesia, ele é um agregado de microtextos que, sem perder autonomia individual, forma uma entidade maior, um macrotexto. (55)

Um exemplo. O quarto dia é dedicado às histórias de amor que terminam mal. Já na primeira história (IV.1), vemos um pai literalmente, bem literalmente, arrancando o coração do amante da filha. O dia seguinte de histórias, o quinto, é dedicado às histórias de amor com final feliz. Na quarta novela (V.4), um casal de amantes é apanhado em flagrante pelo pai da moça, ou seja, uma situação bastante parecida à acontecida quatorze histórias atrás. Para enfatizar a proximidade, a narrativa afirma:

“Quando Ricciardo o viu [o pai], achou que seu coração estava sendo arrancado do corpo.”

De tantas metáforas que Boccaccio poderia ter escolhido para representar o nervosismo de Ricciardo, ele escolhe justamente aquela que descreve o que tinha acontecido na prática, literalmente, com o jovem amante flagrado por um pai ciumento na mesma situação. Dessa vez, a situação é cômica, ma non troppo, pois o autor sutilmente nos recorda que nem toda situação cômica termina em comédia: algumas vezes, a aposta é mais alta.

Esses pequenos detalhes, correlações, lembranças sutis de uma história em outra história, acontecem ao longo de todo o Decameron. São fruto da tentativa de Boccaccio de colecionar, coligir, demonstrar, explorar, toda a realidade, em todos seus aspectos contrastantes e complementares. Não é uma realidade cuidadosamente selecionada, mas também não é uma realidade caótica: é uma perspectiva total da realidade, organizada de acordo com uma perspectiva que transmita todo o sentido de sua totalidade totalizante. (57)

É a ilusão da totalidade, essa sensação de que o livro não apenas é um mundo em si, mas contém o mundo, é o que garante ao Decameron estar na mesma estante que Dante ou Homero, ou, mais tarde, Proust ou Joyce. No século XX, boa parte das análises do Decameron se dedicou a mapear a interconectividade entre as histórias: em que dia a história aparece? Quem é o narrador? Qual é sua posição dentre as novelas do seu dia? Qual sua relação com as novelas dos dias anteriores e posteriores? Os seus personagens aparecem em outras novelas? (Calandrino, por exemplo, aparece nas novelas VIII.3; VIII.6; IX.3; IX.5) Existe uma ordem correta das novelas? Em uma obra escrita em prosa e no vernáculo, repleta de sexo e gargalhadas, foi essa complexidade que lhe trouxe respeitabilidade. (58)

(Referências: Pier Massimo Forni, “The Decameron and narrative form”, The Cambridge Companion to Boccaccio.)

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Mulheres no Decameron

Boccaccio escreveu mais sobre mulheres do que todos os seus contemporâneos. A maioria das obras de sua juventude tem ou uma protagonista feminina ou pelo menos uma forte voz feminina. Ele escreveu uma série de biografias femininas onde as mulheres ilustres retratadas foram escolhidas não pelas virtudes que a Idade Média considerava femininas, mas pelos mesmos atributos que as biografias clássicas utilizavam para os homens: poder político, fama. A própria multiplicidade de vozes femininas em Boccaccio faz que seja difícil, impossível de encontrar uma “postura única” que ele tenha em relação às mulheres. As próprias mulheres ideais de seus grandes antecessores, a Beatriz de Dante ou a Laura de Petrarca, eram etéreas, idealizadas. A Fiametta, de Boccaccio, que aparece em várias obras e inclusive no Decameron, tem uma corporalidade, uma vida, uma inteligência, que destoa inteiramente das anteriores. Longe de tentar localizar em Boccaccio uma postura misógina ou proto-feminista, é interessante observar o seu projeto estético e ficcional de desestabilizar todas as convenções sociais, não só de gênero, mas também políticas, eclesiásticas, etc. Imediatamente após o impacto inicial da Peste Negra, existe um momento de retraimento social nos pensamentos convencionais e tradicionais. O Decameron representa a primeira reação, paródica e subversiva, a esse processo. (Jason M. Houston, “Boccaccio”, Women and gender in Medieval Europe, an Encyclopedia.)

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Sim, existem mulheres frívolas no Decameron, mas essa frivolidade resulta de um direito, da moral do amor, que não obriga ninguém a amar ninguém, que permite que as pessoas rejeitem ou aceitem quem quiserem em seu amor. A moral do amor é a única lei que Boccaccio certamente, seguramente reconhece e respeita no Decameron. Em suas histórias, o único pecado é contra a lei do amor, e o maior bem é seguir nosso impulso natural. O amor não seria pecado, mas uma demanda natural, portanto, naturalmente bom, fonte último de todo pensamento nobre, de toda generosidade. O conflito sempre nasce de uma tentativa de negar nossa verdadeira natureza. O amor sensual nunca é mau em si: o que é mau é a ganância, o ciúme, a frieza, tudo que o profana. (Para Boccaccio, o ideal da castidade seria incompreensível.)

É fácil constatar a não-misoginia do Decameron contrastando-o com as obras dos anos seguintes (a literatura fica de fato misógina a partir do final do XIV): no Decameron, as mulheres são frívolas porque não querem ir contra a moral do amor; em outras obras, elas fazem talvez as mesmas coisas, mas dessa vez por serem prostitutas, decaídas, imorais, atacando a ordem moral burguesa e instaurando a tão temida anarquia. Aquilo que no Decameron era um jogo livre do amor, altivo e nobre, torna-se, em outras mãos, uma guerra dos sexos, com mortos e feridos. Situações que, no Decameron, são engraçadas, naturais, óbvias, compreensíveis, como a jovem esposa cujo marido idoso não dá conta dos desejos, são retratadas de forma extremamente negativa na literatura logo posterior. Em Boccaccio, mesmo quando o homem é enganado, é fundamentalmente por culpa dele mesmo: por ser muito velho, muito frio, muito tolo, muito ciumento, etc. Boccaccio parece não levar a sério a infidelidade. Um homem descobre uma traição da esposa e o que faz? Trai também. Na literatura posterior, cada vez mais burguesa, a santidade do lar doméstico é tudo: uma infidelidade passa a ser um terrível caso de vida ou morte. A mulher traidora jamais será justificada, ou vista com simpatia, como no Decameron: ela será sempre somente a puta, a destruidora de lares, a pessoa fraca controlada por seus piores instintos. (Auerbach, “2. Protagonistas”, A Novela no Início no Renascimento – Itália e França, 41-64)

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Boccaccio afirma escrever o Decameron para as mulheres. Entretanto, a própria defesa que faz disso, na Introdução ao Quarto Dia, e na Conclusão, indica que, de fato, sabia estar escrevendo para homens e que sabe quais seriam as objeções dos típicos leitores masculinos da época a essa pretensão. (Rhiannon Daniels, “Boccaccio’s narrators and audiences”; em The Cambridge Companion to Boccaccio, 44)

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Se Dante, com sua Comédia, construiu uma catedral gótica como um sepulcro para sua mulher ideal, Boccaccio construiu um mausoléu secular para todas as mulheres. Seu Decameron foi ostensivamente escrito para mulheres, sua ação é iniciada por mulheres, sua histórias, frequentemente narradas por mulheres, tem frequentemente mulheres fortes e inteligentes e cheias de desejo como suas protagonistas. O Decameron não pertence a uma mulher (como a Comédia pertence à Beatriz) mas a todas. Pampineia, que propõe a contação de histórias, pode ser considerada como a Musa do Decameron, mas não a única. (Pier Massimo Forni, “The Decameron and narrative form”, em The Cambridge Companion to Boccaccio, 62.)

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No prefácio do Decameron, Boccaccio presume um público feminino para sua obra, pois tanto a sociedade quanto os costumem colocariam as mulheres em uma posição desvantajosa.

“[C]oagidas por vontades, gostos e ordens de pai, mãe, irmãos e marido, ficam a maior parte do tempo encerradas no pequeno circuito de seus aposentos, permanecendo quase ociosas e, querendo e não, revolvendo num mesmo instante diversos pensamentos que não podem ser todos sempre alegres.”

Ou seja, ao afirmar a distinção entre sexo biológico e a construção social do gênero, Boccaccio está afirmando um dos pilares do feminismo de hoje. Apesar disso, existe um debate: ele celebra e quer reforçar, ou denuncia e quer corrigir? (F. Regina Psaki, “Voicing gender in the Decameron”; em The Cambridge Companion to Boccaccio, 101.)

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É difícil sustentar a posição de uma pretensa misoginia de Boccaccio no Decameron, pois é difícil sustentar qualquer posição sobre qualquer posição ideológica por parte de Boccaccio no Decameron. Um dos grandes temas da obra é a precariedade do acesso à verdade, especialmente por esse acesso ser mediado por nossa linguagem, sempre falha, insuficiente, instável.

Além disso, buscando uma totalidade da experiência humana, Boccaccio multiplica propositalmente os pontos de vistas e dá voz plenamente à todas as suas personagens, mesmo as que têm opiniões mais díspares, aos homens misóginos mas também às mulheres fortes. Não apenas isso, as opiniões também podem vir de fontes inesperadas: existem mulheres que defendem que mulheres são imperfeitas e dependentes por natureza, assim como existem homens que defendem o comportamento feminino como inteligente e dependentes.

Mesmo quando a narrativa mostra mulheres como mais sexualmente ativas e vorazes do que homens, o que por si só é um velho clichê, não é para condená-las como carnais, inferiores, descontroladas, mas para explorar narrativamente as conseqüências dessa diferença. “E daí?”, o livro parece perguntar. Esse clichê (trope? arquétipo?) surge em diversas narrativas, mas nunca de maneira a humilhar e inferiorizar mulheres como um todo.

Mesmo na novela que é considerada a mais misógina, também a mais longa do livro, a sétima do oitavo dia (VIII.7), onde uma mulher, Elena, é mostrada como malvada, vaidosa, egoísta, ainda assim fica imediatamente óbvio que o objetivo da novela não é de modo algum misógino. Sim, Elena é a vilã, mas a crítica do conto, a moral da história, é toda uma denúncia de Rinieri, que é desnudado compartilhando toda a logorréia, obssessão, manipulação, soberba, desejo de dominação, insinceridade, etc etc, que ele critica nas mulheres. O alvo da piada, o alvo da crítica, é ele, não Elena. (Aliás, essa história é uma das minhas preferidas, justamente porque Elena é deliciosamente má, dona da história do começo até quase o fim.)

Ou seja, fica muito difícil reduzir a obra inteira a uma única ideologia, seja misógina, seja mesmo protofeminista.

Entretanto, mesmo no pior dos casos, mesmo se considerarmos Boccaccio um misógino por suas inúmeras mulheres falhas, terríveis, desagradáveis, ainda assim teríamos que admitir que o Decameron mostra mais invidividualidade e autonomia feminina do que qualquer obra de sua época, ou mesmo qualquer obra que lemos no curso até agora. (F. Regina Psaki, “Voicing gender in the Decameron”; em The Cambridge Companion to Boccaccio, 101.)

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Até hoje, a representação feminina no Decameron continua sendo importante e impactante. Em coluna no New York Times, traduzida ao português aqui, a romancista Elena Ferrante diz que foi o Decameron, com suas sete narradoras femininas, que lhe convenceu, erroneamente, que havia espaço na literatura para as mulheres. Mais tarde, descobriu que não, na verdade, não, não havia esse espaço, mas aí já era tarde: a vontade já estava instalada. Assim como devemos muitas cientistas mulheres e negras à Tenente Uhura, de Star Trek, talvez também devamos, ao menos em parte, Lila e Lenu à Pampinéia e Fiametta.

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A grande diferença entre os retratos masculinos e femininos do Decameron é quando Boccaccio mostra as mulheres negativamente, por exemplo, no discurso de Tessa enchendo o saco de Calandrino, na quinta novela do nono dia (IX.5), não parece um discurso individualizante.

“Cão imundo sem-vergonha, então você me faz uma coisa dessas? Velho maluco, maldito seja o bem que eu lhe quis; então acha que não tem o suficiente para fazer em casa, e vai se apaixonando na dos outros? Que belo apaixonado! Não se enxerga, desgraçado? Não se enxerga, infeliz? Espremidinho, não ia sair sumo suficiente para um molho! Pela fé de Deus, então agora não era a Tessa aquela que te emprenhava; que Deus a amaldiçoe, seja ela quem for, que deve ser coisa bem ruim para gostar dessa bela joia que você é.”

Segundo a crítica Psaki, Tessa falaria isso não por ser chata, mas porque falar chatices desse gênero é o que fazem todas as esposas com todos os maridos, tanto que discursos parecidos aparecem na boca de esposas nas novelas II.10, III.6 e V.10. Ou seja, as mulheres não seriam retratadas como indivíduos, mas como representantes representativas de seu grupo. Por outro lado, o discurso ressentido de seu marido, Calandrino, no final da terceira novela do oitavo dia (VIII.3) é estúpido porque ele é um homem estúpido, não porque todos os homens ou todos os maridos são estúpidos.

Em minha opinião, entre o tratamento de Tessa e de Calandrino nas mãos de Boccaccio, não tenho a sutileza de olhar para ver essa individuação de um e não da outra. O Decameron é tão múltiplo que existem mulheres de todos os tipos. Se existem três esposas que atormentam seus maridos, existem dezenas de outras que não. A grande maestria literária de Boccaccio é justamente de transformar essa multidão, que poderia ser composta por tipos esquemáticos, em uma multidão de pessoas. (F. Regina Psaki, “Voicing gender in the Decameron”; em The Cambridge Companion to Boccaccio, 101-103.)

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A língua vernácula é feminina

Na introdução ao quarto dia, Boccaccio afirma ter escrito sua obra no “estilo mais baixo e humilde” possível.

Na época de Boccaccio, havia uma percepção de que o latim seria uma língua masculina (forte, útil, correta, viril, utilizada para a ciência e para a filosofia, etc) e as línguas vernáculas, que seriam feminina, ou seja, as que aprendemos com nossas mães, que usamos para cozinhar, para falar de assuntos domésticos, caseiros.

Dessa maneira, o próprio projeto humanista italiano de valorizar a língua vernácula, de basicamente criar do nada um idioma literário italiano, pode ser visto como um projeto eminentemente feminino, ou, pelo menos, um projeto de valorizar algo visto, percebido, sentido como feminino.

Por outro lado, naturalmente, também pode ser visto como um processo de retirar a língua vernácula da esfera maternal e feminina, ou seja, uma ingerência, uma invasão, uma apropriação do feminino.

Em um primeiro momento, isso é feito com conteúdo sexuais e sexualizados, com toda a invenção de um novo vocabulário erótico-literário que essas línguas até então não possuíam e, depois, claro, consolidar esse novo vocabulário, essa nova língua, em obras literárias que lhe dessem respeitabilidade: é isso, por exemplo, que fazem, muito conscientemente, Dante e Boccaccio. (Já Petrarca vai na direção oposta: seus textos sérios ele escrevia em latim, deixando para escrever no vernáculo somente aquelas poesias emotivas e líricas nas quais não enxergava muito valor.)

Então, quando Boccaccio diz que está escrevendo em um estilo humilde, para leitoras mulheres, o que ele está enfatizando é justamente, entre outras coisas, esse próprio aspecto intrinsecamente feminino (aos seus olhos) de sua decisão de escrever o Decameron em italiano e não em latim.

(Referências: F. Regina Psaki, “Voicing gender in the Decameron”; Pier Massimo Forni, “The Decameron and narrative form”, em The Cambridge Companion to Boccaccio.)

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As mulheres, os camponeses e a Peste Negra

Se não fosse a Peste Negra, as sete narradoras do Decameron estariam em casa, isoladas, escondidas — como as pretensas leitoras ideais do livro. Ao invés disso, não mais forçadas a obedecer seus pais, irmãos, maridos, não mais enclausuradas em seus quartos e casas, elas agora conquistam o direito de viver livremente em um mundo além das fronteiras de casa. Sim, a Peste Negra foi uma tragédia: mas, para essas e outras mulheres, talvez tenha sido uma libertação.(Pier Massimo Forni, “The Decameron and narrative form”, em The Cambridge Companion to Boccaccio, 62-63)

Não foram só as mulheres que lucraram com a Peste Negra. O colapso demográfico (estima-se que morreram entre 30% e 50% da população da Europa) teve uma série de conseqüências para as pessoas mais pobres: com menos mão-de-obra, ela se tornou mais valiosa. Os salários dobraram, triplicaram, e chegaram a um nível ao qual só retornariam no século 19. Os camponeses não estavam mais tão presos à terra, pois lhes bastava procurar novas terras — havia muitas terras abandonadas. Da mesma maneira, co m o fantasma da morte súbita tão real, havia menos e menos incentivo para obedecer as mesmas pessoas de sempre. A renda dos nobres, aristocratas, senhores feudais caiu, assim como decaiu o respeito que recebiam de seus inferiores. Tentativas de estabelecer “salário máximo” levou a uma revolta de camponeses em 1381, na Inglaterra. Na segunda metade do século 14, houve insurreições camponesas também na França, Espanha e Itália. Em Florença, a Roda da Fortuna começa a aparecer desenhadas nas paredes de tabernas e oficinas, simbolizando que havia uma expectativa coletiva de que, em breve, o destino de todos mudaria.

(Referências: Silvia Federici, “A peste negra e a crise do trabalho”, Calibã e a bruxa, Mulheres, corpo e acumulação primitiva; Pier Massimo Forni, “The Decameron and narrative form”, em The Cambridge Companion to Boccaccio.)

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Decameron e a Inquisição

Em 1599, um moleiro (ou seja, pessoa que trabalhava em um moinho) chamado Menocchio foi acusado de heresia pela Inquisição. Era um homem simples, do povo, autodidata, mas que tinha idéias estranhas e inovadoras, consideradas perigosas para a Igreja.

Quatrocentos anos depois, em 1976, o historiador italiano Carlo Ginzburg publicou O queijo e os vermes, contando a história do moleiro, um dos mais importantes trabalhos de história cultural, história das mentalidades e microhistória. Um dos focos de Ginzburg justamente é tentar mapear as leituras de um homem do povo nessa época, o que ele lia, como lia, como pensava e articulava aquilo que lia, etc.

No capítulo 23 de O queijo e os vermes, Menocchio faz menção a uma crença de que não se sabia qual era a melhor “lei”: os cristãos achavam que era a cristã por terem nascidos cristãos, mas os muçulmanos achavam que era a muçulmana por terem nascido muçulmanos, etc. Quando o escandalizado inquisidor pergunta de onde ele tirou essa heresia, depois de muitas idas e vindas, acaba descobrindo que foi do Decameron, de Boccaccio, e, pior, de uma novela que havia sido recentemente expurgada e que não constava mais das novas edições: a terceira do primeiro dia, dos três anéis.

No mesmo ano, 1599, Menocchio foi queimado vivo.

Muitas pessoas associam a Inquisição à Idade Média e, de fato, ela foi criada na Idade Média. Mas, nessa era, ela não tinha tanto poder nem exercia tanto terror. Seus piores anos começam já na Idade Moderna, em pleno Renascimento, depois da Reforma Protestante, e dentro do movimento da Contra-Reforma.

Ou seja, a Idade Média foi onde o Decameron foi escrito, celebrado, circulado, canonizado. Foi já em plena Renascença que pobres moleiros eram queimados vivos por repetir suas histórias.

(Referência: Carlo Ginzburg, cap.23, O queijo e os vermes.)

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Rubricas narrativas

Chamamos de “rubricas narrativas” aqueles pequenos resumos antes das histórias do Decameron.

Originalmente, em uma época onde a leitura era mais lenta e mais custosa, incluindo o manuseio de pesados códex e o desenrolar de manuscritos delicados, esses resumos eram parte de um largo complexo de auxílios textuais para facilitar a vida de leitores e copiadores. (Por exemplo, se o topo de cada manuscrito já trouxesse o resumo de seu conteúdo, não seria preciso fastidiosamente desenrolar o manuscrito até o fim para encontrar o conteúdo buscado, correndo o risco de sujá-lo, rasgá-lo, etc.)

Mais tarde, por hábito e costume, por cultura e por imitação, o costume foi adotado pela literatura de modo geral e ainda era comum até o século XX, onde era usado para dar uma atmosfera antiquada a conteúdos contemporâneos. (Por exemplo, a série de romances policiais do “Santo”, narrando as aventuras de Simon Templar, depois transformada em série de rádio e de TV, trazia como título de cada capítulo um resumo da ação: “XXI. De como o Santo convenceu o Sheik a devolver o Rubi do Sião”, etc. Como o “Santo” era um misto de herói e anti-herói à la Robin Hood, essas rubricas davam um colorido antiquado às suas aventuras.)

No Decameron, Boccaccio faz questão de explicar e justificar o seu uso, com uma metáfora interessante:

“Na multidão das coisas é preciso encontrar coisas de diferentes qualidades. Nenhum campo jamais foi tão bem cultivado que nele não se encontrasse urtiga, tríbulo ou algum espinheiro misturado às ervas melhores. Sem contar que, para falar a simples mocinhas, como é a maioria, seria tolice sair procurando e esforçar-se por encontrar coisas muito rebuscadas, tendo o cuidado de falar com todas as medidas. No entanto, quem vai lendo tais novelas que deixe de lado as que ofendem e leia as que deleitam. Para que ninguém se sinta enganado, todas elas trazem na fronte aquilo que têm escondido no seio.” (Conclusão)

Interessantemente, ao propositalmente fazer com que suas histórias tragam na “fronte” aquilo que têm escondidas “no seio”, Boccaccio está indo contra nossa atual cultura de evitar spoilers a todo custo. Em uma tradução inglesa recente (1993), o tradutor Guido Waldman escolhe suprimir as rubricas, para não entregar o “final das histórias”. Naturalmente, isso levanta uma série de outras questões: o autor não apenas consciente e propositalmente incluiu as rubricas, como ainda fez questão de justificá-las na conclusão. (Algumas autoras, como Daniels, defendem até que essa justificativa indica uma certa ansiedade do autor em controlar a recepção do livro.) De qualquer modo, são parte integrante do conteúdo do livro e o autor já escreve as histórias presumindo que serão lidas por uma leitora que também leu as rubricas.

(Referências: Stephen Milner, “Boccaccio’s Decameron and the semiotics of the everyday”; Cormac Cuilleanáin, “Translating Boccaccio”; Rhiannon Daniels, “Boccaccio’s narrators and audiences”, em The Cambridge Companion to Boccaccio.)

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O que é “literatura mundial”?

Segundo David Damrosch, “world literature”, ou “literatura mundial”, seria aquela literatura nacional que ganha ao ser traduzida, que cresce ao ser retirada de seu contexto. Não um cânone estabelecido de textos mas sim um modo diferente de ler textos. Obras de literatura nacional se tornam literatura mundial ao serem recebidas nesse espaço virtual supra-nacional. Quando conseguem perder seu conteúdo nacional, paroquial, bairrista, e ainda assim fazerem sentido, ainda assim comunicarem.

Pensando aqui na nossa literatura, Grande Sertão Veredas talvez seja o romance mais perfeito que já se escreveu em português, mas pode ser que seja brasileiro demais para jamais se tornar “world literature”. Quando você retira essa história da língua portuguesa e do Brasil, o que sobra? Uma história de caubóis em drag. Um de nossos últimos grandes talvez sofra do mesmo mal: Romance da pedra do reino, de Ariano Suassuna.

Nem todo regionalista ou folclórico sofreria disso: não é à toa que Jorge Amado foi durante muito nosso autor mais traduzido. Assim como romances como São Bernardo e Vidas secas não perdem nada em tradução.

Já autores como Clarice Lispector e Machado de Assis, em romances como Água viva e Dom Casmurro, se prestariam mais a se transformarem em “world literature”.

O Decameron acaba sendo um precursor do conceito de “world literature”, criado por Goethe em começos do XIX: um livro que, sim, é intensamente local, mas, ao mesmo tempo, ganha força quando é libertado desse sua localização paroquial, e passa a se aplicar a toda humanidade.

(Referência: David Damrosch, What is world literature?)

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O Decameron e a grande conversa

Durante boa parte da minha infância, a coleção Great Books of the Western World foi a minha única guia na “grande conversa” que forma o cânone ocidental. (Ninguém lia na minha família, então, eu não tinha nenhum “mentor intelectual” para me guiar.)

A própria ideia dessa coleção já é exclusionária e problemática mas, mesmo sem incluir nenhuma pessoa autora não-homem, não-branca, ela mudou minha vida e, com certeza, a de muita gente.

Poderíamos ficar eternamente debatendo quem foi e quem não foi escolhida. Dada a limitação conceitual da lista, por exemplo, dá até pra entender porque, digamos, para ficarmos só no século XIX, Austen e Nietszche não entraram na primeira edição, de 1950, mas entraram na segunda, de 1990. Na minha área profissional, para dar outro exemplo aleatório, Heródoto e Tucídides são indiscutíveis, mas eu trocaria fácil Plutarco e Tácito por Tito Lívio e Políbio. (Tito Lívio contando a história de Aníbal e da Guerra Púnica foi uma das leituras mais empolgantes da minha infância.) Mas, enfim, nada disso pode ser considerado uma falha da coleção.

Todo esse longo preâmbulo foi para dizer o seguinte.A grande, enorme, gigantesca falha dessa coleção, de acordo com seus próprios critérios e objetivos, é ter deixado de fora o Decameron, uma das obras fundadoras da literatura ocidental.

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Um rápido aparte sobre a coleção

Uma coisa que não falei sobre a coleção Great Books of the Western World, e que talvez tenha confundido algumas pessoas: Ela é péssima.

Em primeiro lugar, as traduções quase sempre são fracas, antiquadas, cheias de erros. Em segundo, e talvez mais importante, a coleção parte de uma premissa terrível: que os grandes livros são grandes porque falam por si mesmos, logo não são necessárias notas explicativas ou introduções críticas.

Ora, em se tratando de textos milenares, escritos em outras línguas, provenientes de outras culturas, repletos de todo tipo de erro factual ou científico já detectado, isso é um patente absurdo.

(Quando Martinho Lutero promoveu a Contra-Reforma, no século XVI, uma de suas premissas era que nenhuma pessoa cristã precisava de qualquer “sábio da igreja” para lhe explicar a palavra de deus: a Bíblia seria autoexplicativa, pois o próprio deus insuflaria cada pessoa leitora com o espírito do entendimento correto. Como uma reação aos bispos corruptos de Roma, até fazia sentido. Hoje em dia, porém, o resultado é que as melhores Bíblias de estudo, com notas explicativas e contextualização histórica, são as católicas, enquanto a maioria das pessoas que ainda lê a Bíblia literalmente, apesar de flagrantes contradições às vezes no mesmo livro, são protestantes.)

Mas a coleção serve como um portal. Porque ela está bem ali. Então, se alguém cita as Confissões de Agostinho, eu posso ir até a minha sala, abrir o livro, conferir a citação, ver seu contexto, talvez me perder um pouco na vida do velho pecador arrependido. Aí, se eu me interessar, se o texto me prender, se eu quiser saber mais, posso correr atrás por conta própria de uma edição melhor das confissões, com uma tradução mais legível, com mais contexto histórico.

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As traduções utilizadas

Li, recomendo, a excelente tradução de Ivone Benedetti, publicada pela L&PM em 2013, em comemoração dos 700 anos de Boccaccio. Recomendo para todas as pessoas interessadas: está em catálogo, é fácil de encontrar, fluente, ágil, fiel. Os contras: o livro é grande e pesado demais (deveriam ter ou usado papel mais leve ou dividido em dois volumes) e faltam melhores notas explicativas sobre o contexto histórico. (A tradutora conta aqui alguns dos critérios que nortearam a tradução: interessantíssimo.)

Li outra excelente tradução, também em catálogo, do mesmo ano, de Maurício Santana Dias, para a falecida Cosac Naify. O livro é lindo, ilustrado, charmoso mas não tem nenhuma nota explicativa. Além disso, só têm dez das cem histórias.

A edição mais fácil de encontrar no Brasil, em sebos e bibliotecas, é a da Nova Cultural/Abril, intitulada “Decamerão”, e atribuída a Torrieri Guimarães mas, na verdade, um copidesque de uma tradução anterior de Raul de Polillo, de 1952. (A indômita tradutora Denise Bottman conta essa história aqui e aqui.) Apesar da fraude, e da falta de notas, a tradução é aceitável e legível: se está mais acessível, vale a pena ler.

A tradução de Polillo, que não é de todo má, saiu recentemente em um belíssimo box da Nova Fronteira.

Não consegui achar nenhuma tradução para o português em domínio público.

Por fim, utilizei também a edição da Penguin organizada e traduzida por. G. H. Mcwilliam, em 1972, ainda em catálogo e fácil de encontrar. Editoras como a Penguin e a Oxford publicam edições acessíveis de livros clássicos (muitas vezes, mesmo com o dólar a cinco reais, mais baratas que as brasileiras) mas com um aparato crítico mínimo que nós aqui raramente possuímos.

(Repito que estou falando não de mega edições críticas para experts, mas do aparato crítico mínimo para uma leitora não-especialista poder aproveitar a obra em sua totalidade.)

Então, eu li as dez histórias da tradução de Maurício Santana Dias e as noventa restantes, na de Ivonne Benedetti, consultando as notas de G. H. McWilliam e, ocasionalmente, cotejando trechos das traduções de Torrieri Guimarães e da espanhola sem-nome.

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O Decameron do Alex Castro

Para quem não quiser ler todas as cem histórias, eu dou aqui a seleção das minhas 21 favoritas, junto com o resuminho de cada uma, alguns comentários e citações do texto. Basta ler todos para ter uma boa ideia do tom do Decameron.

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Primeiro dia, Primeira novela (I.1)

“Cepperello, com falsa confissão, engana um santo frade e morre; e, tendo sido péssimo homem em vida, depois de morto tem reputação de santo e é chamado São Ciappelletto.”

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Segundo dia, Sétima novela (II.7)

“O sultão da Babilônia manda uma de suas filhas ao rei de Algarve para casar-se com ele, e ela, passando por diversas atribulações, no período de quatro anos cai nas mãos de nove homens em diversos lugares; por fim, devolvida ao pai como donzela, é novamente enviada ao rei de Algarve, como antes, para ser sua mulher.”

O Algarve, hoje província meridional de Portugal, na época era um poderoso reino árabe que abrangia partes do sul da península ibérica e do norte da África.

O final da novela:

“E ela, que com oito homens dormira talvez dez mil vezes, ao lado dele [o rei do algarve] se deitou como donzela e o levou a crer que assim fosse; e com ele viveu feliz como rainha durante muito tempo. E por esse motivo se diz: “Boca beijada não perde ventura; antes, renova como faz a lua.”

Nesse caso, acho que a tradução inglesa de McWilliam passa melhor a ideia:

“A kissed mouth doesn’t lose its freshness: like the moon it turns up new again.”

Ou seja, lavou, tá novo. É por isso que eu amo o Decameron.

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Segundo dia, Décima novela (II.10)

“Paganino de Mônaco rouba a mulher de messer Ricciardo de Chinzica, que, sabendo onde ela está, vai lá e se torna amigo de Paganino. Pede a mulher de volta, e este concorda, desde que ela queira voltar. Ela não quer voltar e, depois que messer Ricciardo morre, torna-se mulher de Paganino.”

O resumo não faz justiça à história, cujo grande tema é a obrigação que os maridos têm de satisfazerem sexualmente as esposas. Abaixo, trechos do discurso final da esposa, jogando na cara do marido porque o abandonou:

“[S]e era esperto… Saberia do que as mulheres novas precisam, além de vestir e comer, mesmo que elas não digam, por vergonha … [M]ais me parecia um pregoeiro de festas e feriados, a tal ponto conhecia essas coisas, de jejuns e vigílias. E digo que, se tivesse dado aos trabalhadores que lavraram as suas terras os mesmos feriados que impunha àquele que deveria lavrar minha rocinha, o senhor nunca teria colhido nem um só grão de trigo. … Da minha honra não conheço ninguém que cuide mais que eu, agora que ninguém pode fazer mais nada; antes tivesse minha família cuidado quando me deu ao senhor! E se naquele tempo não cuidou, não vou eu agora cuidar dela; e se agora estou em pecado mortal, ou se um dia estarei em picudo morteiro, não se preocupe com isso mais do que eu. E digo mais: aqui me sinto mulher de Paganino, em Pisa me sentia sua vadia, pensando se por posições da lua e esquadros de geometria devíamos nós dois fazer a conjunção dos planetas, ao passo que aqui todas as noites Paganino me abraça, me aperta e me morde, e como ele me sova só Deus sabe.”

Vale a pena lembrar que durante toda a história ocidental, até começos do século XX, sempre se acreditou que a mulher queria e precisava de sexo muito mais que o homem, um tema recorrente no Decameron. Essa ideia atual, de que os homens querem mais sexo, é uma invenção do século XX. Naturalmente, como a sociedade sempre foi patriarcal e machistas, ambas as crenças, tanto que a mulher que mais como que quer menos sexo, foram usadas para legislar, vigiar, reprimir a sexualidade feminina.

Para dar um gostinho da excelente tradução de Macwilliam:

“[Y]ou should certainly have had the gumption to realize that a fresh and vigorous young woman like myself needs something more than food and clothes, even if modesty forbids her to say so. And you know how little of that you provided. ‘If you were more interested in studying the law than in keeping a wife, you should never have married in the first place. Not that you ever seemed to me to be a judge. On the contrary, you had such an expert knowledge of feasts and festivals, to say nothing of fasts and vigils, that I thought you must be a town-crier. And I can tell you this, that if you had given as many holidays to the workers on your estates as you gave to the one whose job it was to tend my little field, you would never have harvested a single ear of corn. … ‘As to my honour,’ the lady replied, ‘I mean to defend what remains of it as jealously as anyone. I only wish my parents had displayed an equal regard for it when they handed me over to you! But since they were so unconcerned about my honour then, I do not intend to worry about their honour now. And if I am living in mortar sin, it can be pestle sin too for all I care, so stop making such a song and dance about it. And let me tell you this, that I feel as though I am Paganino’s wife here. It was in Pisa that I felt like a strumpet, considering all that rigmarole about the moon’s phases and all those geometrical calculations that were needed before we could bring the planets into conjunction, whereas here Paganino holds me in his arms the whole night long and squeezes and bites me, and as God is my witness, he never leaves me alone.”

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Terceiro dia, Primeira novela (III.1)

“Masetto de Lamporecchio se faz de mudo e torna-se hortelão de um convento de mulheres, e estas competem para dormir com ele.”

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Terceiro dia, Segunda novela (III.2)

“Um palafreneiro deita-se com a mulher do rei Agilulfo, Agilulfo fica sabendo e se cala; encontra-o e tosa-o; tosado, ele tosa todos os outros e assim escapa da desventura.”

Palafreneiro era a pessoa que cuidava dos cavalos, ou seja, era um serviçal muito baixo.

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Terceiro dia, Terceira novela (III.3)

“Com a aparência de confissão e de consciência puríssima, uma mulher apaixonada por um jovem induz um frade severo, sem que ele perceba, a encontrar maneira de satisfazer inteiramente os seus desejos..”

Uma das minhas preferidas. A mulher diz ao padre que fulano estava dando em cima dela: o padre recrimina fulano, e fulano passa a prestar atenção na senhora. Ela diz ao padre que fulano lhe deu um presente que uma dama casada não pode aceitar e pede ao padre que o devolva: fulano aceita o presente. Finalmente, ela diz ao padre que fulano está passando dos limites, pois aproveitou uma viagem de seu marido, no dia tal e hora tal, para pegar a escada escondida acolá e usá-la para aparecer no quarto dela (!!) E é naturalmente isso que ele faz. Final feliz.

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Terceiro dia, Quarta novela (III.4)

“Dom Felice ensina a irmão Puccio como se tornar bem-aventurado fazendo uma penitência; irmão Puccio a faz, e dom Felice nesse ínterim diverte-se com a mulher dele.”

Era um frade laico, por isso, tinha esposa, aliás, mais uma mulher sedenta de sexo:

“A mulher, que se chamava monna Isabetta. Jovem ainda, de vinte e oito a trinta anos, viçosa, bela e roliça, … Em virtude da santidade e talvez da velhice do marido fazia frequentemente dietas muito mais longas do que desejaria; e sempre que queria dormir ou, quem sabe, brincar com o marido, este lhe contava a vida de Cristo, as pregações de frei Anastácio ou o lamento de Madalena e coisas desse gênero. … Dom Felice deu-se conta de qual era a coisa de que ela mais sentia falta e achou que, para poupar trabalho a irmão Puccio, talvez pudesse suprir essa falta. …  [Dom Felice diz que irmão Puccio deve ficar a madrugada inteira, rezando, imóvel, em penitência, para alcançar a santidade.] A mulher entendeu muitíssimo bem o que o monge [Dom Felice] queria dizer com a história de ficar parado imóvel até de madrugada; por isso, achando muito boa ideia, disse que esse benefício ou qualquer outro que ele fizesse por sua alma a deixava contente. … Continuando dessa maneira a penitência de irmão Puccio e o divertimento da mulher com o monge, várias vezes ela disse brincando a esse último: ‘Você manda irmão Puccio fazer penitência, e quem ganha o paraíso somos nós.’ … [I]rmão Puccio, enquanto fazia penitência acreditando que ganharia o paraíso, dava-o ao monge, que lhe mostrara o caminho0 para lá chegar mais depressa, e à esposa, que com ele passava grande necessidade daquilo que o senhor monge, muito misericordioso, lhe deu em abundância.”

Em outra história (oitavo dia, segunda novela, VIII.2), uma moça fica espantada ao saber que padre “faz dessas coisas” e o padre responde: “e fazemos um trabalho muito melhor, pois nosso moinho funciona com água represada”

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Terceiro dia, Quinta novela (III.5)

“Garrido dá um palafrém a messer Francesco Vergellesi e, para tanto, com licença do marido, fala à mulher; como ela se cala, ele mesmo responde por ela, e o efeito se segue à resposta.”

Um potencial amante troca um presente ao marido pela licença de falar com sua esposa, desde que ela não responda nada. Ainda assim, ele dá um jeito de armar um adultério na frente do otário.

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Quarto dia, Segunda novela (IV.2)

“Frei Alberto afirma a uma mulher que o anjo Gabriel está apaixonado por ela e, passando-se por ele, deita-se várias vezes com ela; depois, com medo dos parentes dela, pula da janela da casa e refugia-se em casa de um homem pobre, que, no dia seguinte, o leva à praça como se fosse um selvagem; lá é reconhecido, seus confrades o apanham e o prendem..”

Essa história é analisada nos mínimos detalhes no nono capítulo de Mímesis, de Erich Auerbach, um dos livros mais importantes da minha vida. Auerbach não apenas me deu o empurrão final para fazer mestrado e doutorado em literatura mas também, só no primeiro capítulo, ao compará-los, me fez ler dois dos meus três livros favoritos: a Ilíada e a Bíblia. (O terceiro é Declínio e queda do Império Romano.)

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Quinto dia, Décima novela (V.10)

“Pietro di Vinciolo vai jantar fora; sua mulher chama um rapaz à sua casa; Pietro volta, ela esconde o rapaz debaixo de uma cesta de frangos; Pietro diz que em casa de Ercolano, com quem estava jantando, foi encontrado um jovem introduzido pela mulher dele; sua esposa censura a mulher de Ercolano; um asno, por azar, pisa nos dedos daquele que está debaixo da cesta, ele grita, Pietro corre até lá, vê o rapaz, percebe a traição da mulher, mas no fim faz as pazes com ela por causa de sua perversão..”

Essa história é interessantíssima por dois motivos. Em primeiro lugar, porque ela desenvolve e articula essa concepção generalizada de que as mulheres querem mais sexo que os homens. Aqui, uma velha aconselha a pobre esposa insatisfeita, em um discurso muito lúcido sobre as agruras de ser mulher:

“[Os homens] nascem bons para mil coisas, não só para essa [o sexo], e na maioria das vezes são mais considerados na velhice do que na juventude. As mulheres, porém, nascem só para isso e para terem filhos, e por isso os outros lhes dão valor … [E]stamos sempre preparadas para aquilo, mas os homens não … [U]ma mulher pode deixar muitos homens cansados, ao passo que muitos homens não conseguem cansar uma mulher … [V]ocê faz muito bem em pagar seu marido com a mesma moeda, para que na velhice a alma não tenha o que reprovar à carne. Deste mundo cada um tem aquilo que toma, principalmente as mulheres, que precisam aproveitar o tempo que têm muito mais que os homens … [Q]uando envelhecemos nem o marido nem ninguém nos quer ver pela frente … Nos enxotam para a cozinha e lá ficamos contando histórias ao gato e tomando conta de panelas e tigelas.”

Em segundo lugar, porque aqui o marido não satisfaz a esposa por ser homossexual, o que adiciona um novo elemento à questão:

“[A esposa] vendo que era bonita e viçosa, [sentiu-se] forte e poderosa. … ‘[P]or que casou comigo se mulheres não são do seu agrado? Quem aguenta uma coisa dessas? Se eu não quisesse viver no mundo, teria virado freira; mas querendo viver no mundo, como quis e vivo, se for esperar alegria ou prazer desse aí, acho que vou envelhecer esperando à toa; e, quando for velha e me arrepender, de nada adiantarão as queixas de ter perdido a juventude; e, para achar consolo, ele é um ótimo mestre, pois mostra muito bem como eu posso conseguir prazer do mesmo modo que ele consegue; prazer que em mim é louvável e nele é muito reprovável: nisso só violo as leis, ele viola as leis e a natureza.'”

Vale lembrar que, em muitas culturas ocidentais, até pouquíssimo tempo atrás, havia uma categoria de crimes chamados de “crimes contra a natureza” que englobava todo e qualquer sexo cujo fim não fosse reprodutivo, incluindo todos os atos homossexuais e até mesmo sexo anal em casais héteros. Em muitos estados dos EUA, essas leis só caíram nos último QUINZE anos.

Mas, como sempre, a voz narrativa do Decameron é moralmente ambígua: mesmo quando condena, é como se estivesse dando uma piscadela para nós. Como diz Azzura Givens, citada na introdução de MacWilliam, no Decameron não há imoralidade como tal, e sim a sensação de que o homem é parte de uma natureza não governada por leis ou princípios morais, mas que responde somente a instintos, impulsos e fenômenos biológicos além de qualquer jurisdição ética.

Nesse caso, apesar das condenações débeis da voz narrativa, claramente o maior pecado do marido não era transar com homens, mas sim não satisfazer sua esposa. Finalmente, quando o marido flagra a esposa com um amante no quarto do casal…. Convida o amante para jantar!

“Depois do jantar, o que Pietro estava pensando em fazer para a satisfação dos três me fugiu da mente; só sei que na manhã seguinte o rapaz estava na praça sem saber ao certo a quem tinha feito mais companhia durante a noite, se à mulher ou ao marido.”

Na tradução inglesa de Macwilliam:

“How exactly Pietro arranged matters, after supper, to the mutual satisfaction of all three parties, I no longer remember. But I do know that the young man was found next morning wandering about the piazza, not exactly certain with which of the pair he had spent the greater portion of the night, the wife or the husband.”

O final feliz, ao não punir e, pior ainda, recompensar o “criminoso contra a natureza” joga por terra as condenações morais anteriores. Afinal, de que lado está Boccaccio? O livro é moral ou imoral? O debate está rolando há 700 anos e não dá mostras de parar.

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Sexto dia, Quarta novela (VI.4)

“Chichibio, cozinheiro de Corrado Gianfigliazzi, salva-se com uma frase oportuna, transformando a ira de Corrado em riso e escapando da desventura com que Corrado o ameaçara.”

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Sétimo dia, Quarta novela (VII.4)

“Certa noite Tofano fecha a porta de casa e deixa a mulher para fora; esta, não conseguindo entrar por mais que suplique, faz de conta que se atira num poço, mas joga dentro dele uma grande pedra. Tofano sai de casa e corre até lá; ela entra em casa, fecha-a, deixando-o para fora, e se põe a xingá-lo em altos brados.”

A quarta e a quinta novelas do sétimo dia (VII.4 e VII.5) são ambas libelos contra o ciúme. A quarta, acima, termina assim:

“Tofano, vendo … Que o ciúme fora um mau conselheiro … [prometeu à esposa] que nunca mais seria ciumento; além disso, deu-lhe permissão para fazer tudo o que quisesse, mas com bastante cuidado, para que ele não percebesse. E assim, ao modo do insensato, depois do prejuízo fez o trato. Viva o amor, morte à guerra, viva toda a nossa companhia.”

Seguindo o mote, a próxima novela (VII.5) começa assim:

“[O]s ciumentos são agressores da vida das jovens senhoras e buscam diligentemente a morte delas. … Por isso, … Aquilo que uma mulher faz a um marido injustamente ciumento sem dúvida não deve ser condenado, mas louvado.”

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Sexto dia, Sexta novela (VI.6)

“Madonna Isabella está com Leonetto e é visitada por certo messer Lambertuccio, que a ama; quando seu marido volta, ela manda messer Lambertuccio sair com um punhal na mão; depois o marido acompanha Leonetto de volta para casa.”

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Sexto dia, Sétima novela (VI.7)

“Lodovico revela a madonna Beatrice o amor que sente por ela; ela manda Egano, seu marido, para um jardim vestido como ela e deita-se com Lodovico; este depois se levanta e vai surrar Egano no jardim.”

Malvada e esperta, Beatriz é das minhas mulheres preferidas do Decameron. Não satisfeita em trair o otário marido, ela ainda cria uma situação para que ele leve uma surra do amante e não possa nem reclamar depois. Tudo para sua “alegria e prazer”. Na cama, depois do sexo, nos braços do amante, ela lhe diz:

“‘Oh, lábios de mel, pegue um bom porrete, vá até o jardim e faça de conta que me cortejou só para me tentar; então comece a xingar Egano como se fosse eu e a lhe dar uma boa tunda com o porrete, porque com isso teremos depois muita alegria e prazer.'”

Vale dizer, para quem gosta dessas coisas, que a mulher mais malvada do Decameron é monna Elena (oitavo dia, sétima novela, VIII.7), que seduz um erudito e faz com que ele fique esperando-a toda uma noite, do lado de fora, na neve, tiritando de frio, enquanto ela, no alto de uma torre, transa com o amante, se excitando muitíssimo de vê-lo sofrendo por ela lá embaixo:

“[P]assaram grande parte da noite em meio a regozijos e prazeres, rindo e escarnecendo do mísero erudito. … ‘O que acha, alma minha, do nosso erudito? O que você acha maior: a sabedoria que ele tem ou o amor que tenho por ele? Será que o frio que eu o faço passar tirará do seu peito aquilo que nele entrou no outro dia com minhas palavras?’ [Ou seja, mostrando ao amante que ele não tem razão para ter ciúme do pobre erudito.] ‘Ah! Vamos nos levantar um pouco e ir ver se já apagou o fogo no qual esse meu novo amante ardia o dia inteiro, segundo me escrevia.’ Levantando-se, foram até a janelinha e, olhando para o pátio, viram o erudito dançar miudinho sobre a neve, ao som do bater de dentes … ‘O que diz, minha doce esperança? Você acha que eu sei fazer os homens dançar sem som de trombetas ou cornamusas? … Vamos lá embaixo até a porta: você fica quieto, e eu falo com ele; vamos ouvir o que ele vai dizer e pode ser que seja mais divertido do que só ver.’ [Ela vai e se excita enormemente só de tripudiar dele.] O amante, que ouvia tudo com supremo prazer, voltou com ela para a cama e pouco dormiram naquela noite; ao contrário, passaram quase o tempo todo a gozar e a escarnecer do erudito.”

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Sexto dia, Oitava novela (VI.8)

“Um homem começa a ter ciúmes da mulher; ela, amarrando um barbante no dedo, à noite, sabe quando o amante vai procurá-la. O marido descobre e, enquanto segue o amante, a mulher põe outra em seu lugar na cama; o marido corta as tranças dessa outra e depois vai procurar os cunhados, que, achando que aquilo não era verdade, lhe dizem muitos impropérios.”

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Oitavo dia, Primeira novela (VIII.1)

“Gulfardo toma dinheiro emprestado de Guasparruolo e acerta com a mulher deste que dormirá com ela em troca do dinheiro; depois, em presença da mulher, diz a Guasparruolo que deu o dinheiro a ela, e ela diz que é verdade.”

Essa história até hoje circula como piada.

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Oitavo dia, Oitava novela (VIII.8)

“Dois moços de Siena, Spinellochio e Zeppa, eram amigos, vizinhos e ambos casados com belas esposas. Spinellochio visitava freqüentemente Zeppa e familiarizou-se com a esposa do amigo, a ponto de deitar-se com ela. Um dia, Zeppa voltou para casa antes da mulher, que chegou e não o viu. E logo chegou Spinellochio e a mulher disse que Zeppa não estava, começaram a se beijar e foram para a cama. Zeppa assistiu tudo em silêncio, tramando a vingança. Quando Spinelocchio saiu, Zeppa prometeu não castigar a esposa se ela cumprisse suas ordens: que chamasse Spinellochio a sua casa na tarde seguinte. E que quando Zeppa chegasse ela fizesse Spinellochio esconder-se num baú, que ela fecharia por fora. Sem escolha, a mulher aceitou. Com Spinellochio trancado na caixa, Zeppa mandou sua mulher convidar a mulher do vizinho, já que Spinellochio não voltaria para o almoço. Mandando que sua esposa saísse, Zeppa revelou à vizinha a traição de que estavam sendo vítimas, e convidou-a a se vingar do marido. Ela aceitou e a vingança se consumou sobre o baú, com Spinellochio a tudo ouvindo, sem reagir. Terminada a vingança, Zeppa chamou a mulher e abriu o baú, revelando a presença de Spinellochio. Acabaram concordando que o melhor seria continuarem em paz e, a partir de então, cada um dos maridos teve duas esposas, e cada esposa, dois maridos.”

O resumo (dessa vez, tirado da tradução Torrieri/Pollillo) já conta tudo dessa deliciosa história de troca de casais. Acrescento apenas a moral da história, já dada no começo:

“[S]e alguém se põe a vingar uma injúria recebida, deve bastar-lhe … Não injuriar além daquilo que seja adequado à vingança.”

E o delicioso final:

[Diz Spinellochio] “‘[U]ma vez que entre nós dois tudo é compartilhado, menos as mulheres, que agora passemos a compartilhá-las também.’ … [N]a maior paz do mundo, os quatro almoçaram juntos. E a partir de então cada uma daquelas mulheres teve dois maridos, e cada um dos amigos teve duas mulheres, sem que jamais ocorresse nenhuma discussão ou briga por esse motivo.”

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Nono dia, Segunda novela (IX.2)

“Uma abadessa levanta-se no escuro às pressas para surpreender na cama, com o amante, uma freira que lhe fora delatada; e, como com ela estava um padre, acreditando pôr na cabeça a touca, na verdade pôs as bragas do padre; a acusada, vendo aquilo e chamando a sua atenção, foi liberada do castigo e ficou à vontade com o amante..”

O final da história traz uma frase que parece resumir a opinião do autor:

[A abadessa] “concluindo afinal que era impossível defender-se dos estímulos da carne; por isso, tal como fora feito até aquele dia, disse que cada uma se divertisse como pudesse, discretamente.”

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Nono dia, Terceira novela (IX.3)

“Mestre Simone, a pedido de Bruno, Buffalmacco e Nello, faz Calandrino acreditar que está prenhe; este, para ter remédios, lhes dá capões e dinheiro, e se cura da prenhez sem parir.”

Ao “saber” que está grávido, Calandrino se volta para a esposa e solta esse comentário memorável:

“Ai, Tessa, a culpa é sua, que só quer vir por cima: eu bem que dizia.” (trad. Benedetii)

“Ai de mim, Tessa, isso é obra sua, que só queria ficar por cima: eu bem que lhe avisei!” (trad. Dias)

* * *

Nono dia, Sexta novela (IX.6)

“Dois jovens se hospedam em casa de um homem: um vai deitar-se com a filha dele, e com o outro a mulher se deita inadvertidamente. Aquele que estava com a filha deita-se ao lado do pai dela e conta-lhe tudo, acreditando estar falando com o companheiro. Fazem um grande escarcéu. A mulher, percebendo tudo, entra na cama da filha e, depois, com algumas palavras, apazigua os ânimos.”

Mais uma história de todo mundo dorme com todo mundo e, no final, tudo fica bem.

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Por fim, o livro termina com uma breve defesa do próprio livro, sem deixar de conter uma certa dose de pornochanchada:

“E quem pode duvidar de que haja também aquelas [damas] segundo as quais minha língua é má e venenosa … Admito … Que as coisas deste mundo não têm estabilidade alguma, que estão sempre mudando, e é isso que poderia ter acontecido com a minha língua; pois … Há não muito tempo uma vizinha me disse que a minha língua é a melhor e a mais doce do mundo.”

E assim termina o Decameron, de Boccaccio.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Idade Média, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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O Decameron, de Boccaccio, é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 17 de outubro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/decameron-boccaccio // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: NewsletterInstagramFacebookTwitterGoodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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