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aula 06: navegações grande conversa peregrinação

Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto

Tragicomédia histórica, antipoema fantástico, utopia picaresca, a Peregrinação faz de Fernão Mendes Pinto o mais revolucionário representante do universalismo humanista português e ocidental. (Guia de leituras para o curso Introdução à Grande Conversa.)

Fernão Mendes Pinto passou vinte anos peregrinando pela Ásia em meados do século XVI, no auge do poder marítimo português. Enquanto quase todos os outros autores escreveram sobre o lado oficial da conquista, ele deixou testemunho sobre a ralé que ia nos porões dos navios. Foi o primeiro ocidental a ver, registrar, testemunhar incontáveis países, povos, culturas, cerimônias asiáticas. Quase morreu várias vezes. Se salvava sempre por sua lábia e por suas mentiras, nunca pela força ou por proezas militares. É o nosso maior pícaro, precursor de Pedro Malasartes, malandro da gema.

Fernão mentia? Mentia. Mas que diferença faz? O importante é que tinha uma mensagem a comunicar e, como todo grande artista literário, comunicou essa mensagem através de palavras, diálogos, episódios que misturam realidade e ficção.

A Peregrinação é o quadro mais autêntico e mais completo da Ásia que o Ocidente teve durante muitos séculos, mas é um quadro pintado por um artista, não por um cronista. Não um documento, mas uma obra de arte. O livro traz uma tamanha quantidade de detalhes que somente a imaginação, nunca a memória, tornaria possível.

Tragicomédia histórica, antipoema fantástico, utopia picaresca, a Peregrinação, na verdade, são três: um romance picaresco narrando as aventuras de um pobre-coitado malandro; um romance satírico, usando o exotismo como espelho, para criticar a si mesmo e sua sociedade; um romance utópico, mostrando várias facetas do Oriente como sugestões para um novo tipo de sociedade.

Mendes Pinto, por seu transbordante interesse por povos, culturas, tradições, por sua assimilação humanizante do Outro, se revela o mais revolucionário representante do universalismo humanista português e ocidental.

Para Gilberto Freyre, era o maior escritor da língua portuguesa, maior que Camões.

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Antes de começar

A Peregrinação, infelizmente, não está em catálogo no Brasil. Existe somente uma boa edição anotada, portuguesa, da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, cara e difícil de encontrar.

A última edição brasileira, em português brasileiro e modernizado, em dois volumes, da Fundação Darcy Ribeiro/UnB, pode ser encontrada na Estante Virtual, ou baixada gratuitamente aqui: volume I e volume II. O texto original, em pdf, pode ser baixado aqui.

Nas citações abaixo, vou sempre citar primeiro a versão brasileira, mais fácil de ler e, depois, a versão original. Minha sugestão: tentem ler no original. É bem mais fácil do que parece e é, em si mesmo, uma aula sobre a nossa língua, onde estava no século XVI, tudo que mudou até hoje. (Lendo em voz alta fica sempre tudo mais fácil.)

Para quem quiser saber por onde começar a ler, no final desse texto recomendo alguns dos capítulos mais famosos e importantes.

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Camões, Gil Vicente, Mendes Pinto

Gil Vicente, Camões e Mendes Pinto são algumas das maiores figuras da literatura em língua portuguesa, e, certamente, do século XVI, testemunhas oculares do século de ouro português. Mas enquanto Gil Vicente, apesar de falar pelo povo, permaneceu sempre na corte, encenando peças para os reis e para os nobres, com todas as vantagens e privilégios de ser um artista-cortesão, Camões e Mendes Pinto viveram todas as agruras, incômodos, riscos de um longo exílio no Oriente. (Nenhum dos dois sai de Portugal por vontade própria, mas por força maior: Camões por comprar briga com quem não deveria e Mendes Pinto, por algum motivo tão sério ou bizarro que ele nem ousa contar.)

A biografia de Camões é parecida com a de Fernão Mendes Pinto: nascem na baixa nobreza; precisam sair do reino às pressas (Pinto em 1537, Camões em 1553); embarcam para as Índias; passam todo tipo de privação e pobreza (Camões é preso, Pinto escravizado);conseguem finalmente mal e mal voltar, completamente empobrecidos (Pinto em 1558, Camões em 1570); escrevem uma obra sobre a experiência, morrem.

As obras, entretanto, não poderiam ser mais diferentes. Uma diferença importante: Camões chega em 1570 com Os Lusíadas pronto ou quase, apresenta o poema ao Rei, publica em 1572, e já fica famoso. Mendes Pinto, por seu lado, escreveu a Peregrinação para os filhos, escolhe não publicar e ela sai apenas 30 anos depois de sua morte, em 1614.

Gil Vicente, homem medieval, parece estar em guerra eterna com os novos tempos que pressente estar chegando. Já Camões e Mendes Pinto parecem ser eles mesmos esse tempo: eles encarnam tudo de melhor e de pior, de belo e de horrível, do expansionismo português no Oriente. Dá pra sentir, na obra de ambos, uma aguda consciência do momento histórico único que estavam vivendo, de maravilhas nunca antes vistas e de feitos heróicos nunca antes realizados, e de o quanto esses ventos da história impactavam suas vidas. Mendes Pinto se apresente sempre como um pobre coitado, quase uma vítima desse processo histórico, mas mesmo Camões, que canta as majestades imperialistas de Portugal, também apresenta ele próprio, sua persona de poeta, como um poeta marginal, pobre, esquecido — também um pobre-coitado.

De certa maneira, a obra de cada um desses três autores pode ser considerada coletiva. Em Gil Vicente, criador de mais de cinqüenta peças, é impossível encontrar uma voz autoral fora da polifonia de centenas de personagens e tipos. Em Camões, apesar de haver uma voz autoral do poeta marginal, apesar do herói ser nominalmente Vasco da Gama, o poema já no título se revela como o épico coletivo do povo português, Os Lusíadas. E Mendes Pinto, se escreve ostensivamente uma autobiografia, é a autobiografia menos egocêntrica de todos os tempos, pois às vezes passamos capítulos e capítulos sem ler um único verbo na primeira pessoa do singular, tendo nosso autor sido absorvido pela coletividade do grupo onde está. (Cada episódio da Peregrinação, via de regra, pode ser dividido em três momentos: ambição, realização e decepção; quase sempre, Mendes Pinto só aparece no primeiro e no terceiro, deixando a efetiva realização da ação quase sempre para outros.)

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A sombra da Inquisição

Em uma época de fortalecimento da inquisição, é um livro que denuncia as instituições religiosas de Portugal; única obra que se conhece nessa época que condena enfaticamente a ideologia de cruzadas (que tanto Gil Vicente quanto Camões defendiam); que faz um apelo veemente à tolerância humana com outros povos, outros costumes, outras religiões. No desabrochar do imperialismo europeu, essa pequena obra-prima da literatura tem coragem de mostrar como todos esses belos discursos ocidentais, na prática, no dia a dia, não passam de reles atos de pirataria, um após o outro.

Não é à toa que Mendes Pinto volta para Portugal em 1558, escreve o livro, e morre somente em 1583, sem aparentemente nunca ter tentado publicá-lo. No próprio livro, diz que escreveu para seus filhos, para contar as aventuras que viveu. (Terá sido apenas esse o motivo?) Sabemos que, durante sua vida, o livro não foi publicado, mas já era conhecido e consultado: Francisco Xavier, famoso santo jesuíta que recrutara Mendes Pinto para a Ordem e muito citado na Peregrinação, teve duas biografias publicadas por padres jesuítas em 1588 e 1594 e que fazem menções ao manuscrito.

Quando Mendes Pinto deixa Portugal, em 1537, a Inquisição acabara de publicar, somente no ano anterior, sua lista de crimes puníveis por ela, e instava as pessoas a se apresentarem voluntariamente para confessá-los. O clima ainda estava ameno, ainda havia esperança de superar a Reforma, a Igreja e as classes dominantes ainda eram simpática aos ideais humanistas.

Quando retorna, em 1558, o clima já era outro: a Reforma era uma realidade insuperável, e a Igreja Católica trinca os dentes em sua contrarreforma. Ninguém sabia melhor que Mendes Pinto, um ex-jesuíta de impecável instinto de sobrevivência, que seu livro era completamente impublicável, para sua segurança e de seus filhos.

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O submundo do imperialismo português

Uma das invenções mais influentes de Portugal foi o conceito de “império naval”, ou seja, não mais um império construído pelo território conquistado, mas pelo domínio completo das vias marítimas e pela manutenção de algumas poucas bases estratégicas de onde gerenciar esse domínio: Goa, Ormuz, Málaca, Macau, etc.

É importante salientar isso para entender que o espaço físico português strito senso era limitadíssimo, algumas poucas praças-fortes e olhe lá. Fora disso, havia muito espaço vazio, e muito lucro, para ser obtido por portugueses inescrupulosos e empreendedores, tanto comerciando e dando suporte ao projeto imperial português, como subvertendo-o, roubando, saqueando, pirateando. A Peregrinação é o maior documento que temos desse vasto submundo do imperialismo português.

(Quando Mendes Pinto conhece Francisco Xavier, depois de dezessete anos na Ásia, ele está rico: o santo o descreve em uma carta como “um rico mercador da China”. Impressionado pelo santo e pela ordem dos jesuítas, Mendes Pinto se converte, entra para ordem como “irmão leigo” e lhes doa toda a sua fortuna. Ele realiza algumas missões como jesuíta mas, por motivos nunca explicados, abandona o jesuíta, sem nunca se incompatibilizar com eles — como vimos, muito mais tarde, em Portugal, ele chega a permitir que consultem o manuscrito da Peregrinação como fontes de informações sobre Francisco Xavier. Ou seja, ela volta pobre para Portugal, sim, mas por ter doado todo seu dinheiro.)

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O desmascaramento do heroísmo colonial

Se Antonio de Faria é o maior herói da Peregrinação, e parece, então o maior herói português no Oriente é um pirata sôfrego de ouro, limitado somente por sua audácia, deixando atrás de si uma trilha de crimes ignóbeis — destaque para o rapto da noiva chinesa, no capítulo 47, e o saque da ermida, nos capítulos 76 a 78. A mensagem de Mendes Pinto parece ser: eis aí o heroísmo, uma violência selvagem ao serviço da fome de ouro. Se o tom pícaro da Peregrinação é uma sátira aos valores da aristocracia portuguesa, o falso heroísmo de Antonio de Faria é o seu total desmascaramento.

Reparem que Mendes Pinto nunca critica o seu herói: basta descrevê-lo como o cume das virtudes heróicas portuguesas e, a seguir, mostrá-lo cometendo uma seqüência de crimes cada vez mais horríveis. Qualquer pessoa leitora que não esteja completamente absorvida pela pensamento hipócrita dominante e que saiba ler além da superfície vai captar a mensagem.

Mendes Pinto manifesta uma impressionante ausência de preconceitos e de amor-próprio nacional. Sua narração demonstra claramente, propositalmente, que os portugueses são mais bárbaros e mais violentos do que todos os povos ditos bárbaros que encontram: falam alto; não pensam no bem comum; discutem entre si; se esfaqueiam por motivos fúteis; e mentem sem parar. Reproduz também os piores preconceitos dos chineses contra eles, e, na sequência, mostra que estavam certos. Do capítulo 140, em versão adaptada:

“E a que título possuís tantas riquezas de sedas e peças, quantas o mar deu às nossas gentes, desse vosso junco? que segundo tenho sabido, valem mais de cem mil taéis, pelo que me parece incrível poderem homens adquirir bem tanta soma de riqueza, sem intervirem nisso roubos, os quais, pela ofensa grave que com eles se faz a Deus. … Pois qual foi a causa por que as vossas gentes no tempo passado, quando tomaram Malaca pela cobiça das suas riquezas, mataram os nossos tanto sem piedade, de que ainda agora há nesta terra algumas viúvas? … Pois que é isso que dizem de vós? Negareis que quem conquista, não rouba? Quem força, não mata? Quem senhoreia, não escandaliza? Quem cobiça, não furta? Quem oprime, não tiraniza? Pois todas essas coisas se dizem de vós, e se afirmam em lei de verdade, por onde parece que largar-vos assim Deus da sua mão, dando licença às ondas do mar que vos afogassem debaixo de si, muito mais foi inteireza de sua justiça, que sem razão que usasse convosco.”

No original:

“& de que titulo possuys tantas riquezas de sedas & peças quantas o mar deu ás nossas gentes desse vosso junco? que, segundo tenho sabido, valẽ mais de cem mil taeis, pelo que parece increiuel poderem homẽs aquirir bem tanta soma de riqueza sem intreuirem nisso roubos, os quais, pela offensa graue que com elles se faz a Deos … pois, qual foy a causa porque as vossas gẽtes no tempo passado quando tomarão Malaca pela cubiça das suas riquezas, mataraõ os nossos tanto sem piedade, de que ainda agora ha nesta terra algũas viuuas? … pois, que he isto que dizem de vos? negareis que quem conquista não rouba? quem força não mata? quem senhoreya não escandaliza? quem cubiça não furta? quem aprema não tyraniza? pois, todas estas cousas se dizem de vós, & se affirmão em ley de verdade, por onde parece que largaruos assi Deos da sua mão, dando licença âs ondas do mar que vos afogassem debaixo de sy, muyto mais foy inteireza da sua justiça que sem que vsasse com vosco.”

Mais tarde, no mesmo capítulo, quando o rei que tinha dito as duras palavras acima estava quase convencido a libertar os portugueses, aparece na cidade um corsário que, infelizmente, tem mais verdades a dizer sobre nossos lusitanos:

“E tendo já determinado de nos mandar soltar, …  chegou ao porto um chim corsário. … Este perro, quando soube da nossa prisão, e como El-Rei estava determinado a nos mandar soltar, … lhe disse que era nosso costume espiarmos uma terra sob a capa de mercancia, e depois a tomarmos como ladrões, matando e assolando toda a coisa que nela achávamos, a qual informação pode tanto com El-Rei que o fez tornar de todo atrás no que tinha determinado.”

No original:

“E tendo jâ determinado de nos mandar soltar,… chegou ao porto hum Chim cossayro. … Este perro quãdo soube da nossa prisaõ, & como el Rey estaua determinado de nos mãdar soltar, … lhe disse, que era nosso custume espiarmos hũa terra so color de mercãcia, & despois a tomarmos como ladroẽs, matãdo & assolãdo toda a cousa que nella achauamos, a qual informação pode tãto cõ el Rey que o fez tornar de todo atràs do que tinha determinado.”

Em outros momentos, Mendes Pinto retrata os pacíficos locais ativamente fugindo para o interior ao ver a chegada dos portugueses. Do capítulo 41, versão adaptada:

“Grande novidade deve ser essa com que nos Deus agora visita, e queira Ele por sua bondade que não seja esta nação barbada daqueles que por seu proveito e interesse espiam a terra como mercadores e depois a salteiam como ladrões. Acolhamo-nos ao mato, antes que as faíscas desses tições branqueados no rosto com a alvura da cinza que trazem por cima queimem as casas em que vivemos e abrasem os campos de nossas lavouras, como têm por costume nas terras alheias.”

E no original:

“Grande nouidade deue ser esta cõ que nos Deos agora visita, & queira elle por sua bondade que não seja esta nação barbada daquelles que por seu proueito & interesse espião a terra como mercadores, & despois a salteão como ladroẽs, acolhamonos ao mato, antes que as faiscas destes tiçoẽs branqueados no rosto com a aluura da cinza que trazem por cima, queimem as casas em que viuemos, & abrasem os cãpos de nossas lauouras, como tem por custume nas terras alheas.”

Os exemplos se multiplicam por toda a obra. E, ao mesmo tempo em que roubam e raptam, matam e saqueiam, em que se comportam de forma completamente alheia a qualquer noção de justiça e de moralidade, os portugueses trazem sempre o nome de Deus em seus lábios. É como se Mendes Pinto estivessem mostrando que, para eles, Deus é somente o chefe de seu bando, incapaz de distinguir entre o Bem e o Mal, mas somente entre os seus e os outros. Um Deus particularista e tribalista, o exato oposto do Deus universal do Novo Testamento.

Ao mesmo tempo em que denuncia os crimes dos portugueses, Mendes Pinto aproveita para criar algumas utopias na Ásia, fantasiando sociedades inexistentes que, mais uma vez, servem apenas para enfatizar os defeitos e limitações de sua própria sociedade. Thomas Morus publica sua Utopia em 1516 e, por todo o século, a medida que mais e mais descobertas, novas sociedades e novos mundos, atordoam os sentidos dos europeus, a utopia se torna todo um gênero literário. Nessa linha, a utopia mais famosa de Mendes Pinto é a descrição (completamente fantasiosa) de Pequim, no capítulo 107.

A Peregrinação é um grande catálogo da pior irracionalidade humana. Uma obra audaciosa e precursora, gigantesca e mal lapidada, soterrando seus leitores debaixo de uma quantidade irrazoável de episódios e eventos, histórias e anedotas, cujo caudaloso volume serve para disfarçar a enormidade e a profundidade de sua crítica feroz a todos os valores mais caros da sociedade portuguesa e do ocidente — tudo narrado no tom leve e ingênuo de quem não se dá conta da força e da potência, da seriedade e da violência, da denúncia corrosiva que está sendo feita.

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Um olhar amplo, tolerante, inclusivo

Surpreende a tolerância e aceitação no olhar de Fernão Mendes Pinto às práticas e costumes do Oriente. Ele está muito longe do racismo europeu, que chega ao seu ápice no século XIX, e que enxerga o Oriente sem nenhuma irmandade com seres humanos que enxerga como claramente inferiores. Não Mendes Pinto: para eles, os orientais são gente como ele, somente diferentes. Melhores em algumas coisas, piores em outras. Os portugueses têm muito a lhes ensinar, mas também muito o que aprender — especialmente em termos morais. Chama mais atenção em Mendes Pinto o sentido de familiaridade, de buscar aquilo que o irmana com esses povos tão distintos, do que o sentido de exótico, tão comum na literatura de viagens. Um dos temas da Peregrinação parece ser a unidade do mundo através de sua diversidade infinita.

Quase não há paisagem natural em Mendes Pinto. A infinita variedade natural das terras onde passou não lhe chamou atenção, nem lhe inspirou comentários. Quer dizer, somente comentários utilitaristas, com olho de negociante: se a terra é fértil, os frutos que dão nela, o tipo de gado. Ou então medições, quanto ouro e prata têm nas obras de arte, até a altura e a largura da Muralha da China.

Mas o que ele descreve incansavelmente são costumes, religiões, práticas. Tudo que é humano lhe é interessante. Na base de todas as suas histórias e episódios, existe sempre um confronto de mentalidades, e essas diferenças são sempre reveladas pela fala, pelo diálogo. Nesse aspecto, a capacidade inventiva polifônica de Fernão Mendes Pinto só tem paralelo na de Gil Vicente.

O que interessa a Fernão Mendes Pinto é o outro, e como ele se expressa, e se revela, através do discurso. Seu texto funciona como um espaço simbólico onde esse outro pode se instalar e se comunicar, um espaço se não verdadeiro, pelo menos, como toda grande obra de arte, verossímil.

A Peregrinação revela, antes de mais nada, uma estética permeável e sensível, que permitiu a Mendes Pinto enxergar a unidade do mundo em sua enorme diversidade e, nessa mesma mirada, ver com exatidão os limites e defeitos de seu próprio país.

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Um best seller ocidental

A obra somente é publicada em 1614, pela Casa Pia dos Penitentes de Lisboa, em prol de quem reverteram os lucros. Parece que a obra não sofreu modificações por conta dos padres, pois mesmo o seu primeiro editor relata dificuldades em entender a cronologia das muitas histórias: ele somente dividiu a obra em capítulos, escreveu as rubricas e corrigiu os erros mais evidentes de português. Menos de seis anos depois, a obra já é traduzida para o espanhol, em duas versões diferentes, com reedições em 1627, 1645 e 1664. A segunda edição portuguesa sairia em 1678. Só no século XVII, a Peregrinação teve 19 edições em 6 línguas européias: 2 em português, 7 em espanhol, 3 em francês, 2 em holandês, 2 em alemão e 3 em inglês. Ao longo desse século, Mendes Pinto seguramente foi o autor ibérico mais lido em toda Europa, bem mais que Cervantes. Nos séculos XVIII e XIX, entretanto, a medida que mais informações sobre a Ásia se tornavam acessíveis na Europa e graças à fama cada vez maior de mentiroso que Mendes Pinto vai angariando (embora já a primeira edição espanhola, de 1620, trouxesse na introdução uma “apologia” pelas evidentes mentiradas do autor), o livro vai perdendo popularidade: as novas edições da Peregrinação são progressivamente abreviadas, e voltadas para um público cada vez mais especializado: crianças, amantes de viagens, etc.

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Um pícaro

Antonio José Saraiva, e muito outros autores, defendem que a Peregrinação é uma obra pícara, que pertenceria à tradição do romance pícaro espanhol.

Mendes Pinto se apresenta não como um herói,valentão e dominador, mas como um pobre-coitado em busca de fortuna, sem vergonha, sem dinheiro, sem honra, tremendo de medo dos perigos, fazendo o que pode para enriquecer e sobreviver. Ao fazer isso, ele desafia todo o pudor e todas as convenções sociais e literárias do meio da baixa nobreza ao qual pertencia, mas, por outro lado, filia-se fortemente à tradição literária picaresca, que também era bem forte e influente nessa época.

O romance pícaro, via de regra, é autobiográfico e apresenta um personagem vagabundo, de baixa classe social, malandro, que faz de tudo para sobreviver em um mundo que lhe é hostil. Sua concepção de mundo é completamente despida de ilusões, a finalidade da vida é comer, se abrigar, sobreviver. Todo o resto, a honra e a virtude, seriam vaidades ou hipocrisias.

O apogeu da novela picaresca coincide com o apogeu dos romances de cavalaria: um é o oposto do outro. O contraste entre as ilusões cavalheirescas e o desengano pícaro é simbolizado perfeitamente pela dupla Dom Quixote e Sancho Pança. (O Brasil não tem muita tradição pícara, mas Pedro Malasartes é um herói pícaro e nosso romance Memórias de um Sargento de Milícias, de 1854, tem muito em comum com a tradição pícara.)

A persona narradora da Peregrinação, portanto, parece ter muitos atributos pícaros: não possui nada de seu; não tem outro propósito a não ser sobreviver e enriquecer; desconhece o preconceito da honra e não tem vergonha de se mostrar em comportamentos desonrosos; para salvar-se, não hesita em mentir; se refere a si mesmo como “pobre de mim”; até mesmo o estilo ingênuo e distraído como são narradas as piores atrocidades, como o rapto da noiva chinesa, no capítulo 47. O próprio primeiro capítulo, narrando sua infância pobre, suas muitas agruras e sua saída súbita de Portugal, é quase que um clássico primeiro capítulo de romance pícaro.

Como todo romance pícaro, ele não deixa de ter uma crítica implícita à ideologia senhorial; ao código dos grandes nobres que iam à guerra em defesa do Rei, da Lei e da Fé; aos pobres-coitados no reino que, assim que ultrapassavam o Cabo da Boa Esperança, já começavam a dar uma de Grandes Senhores.

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Um satirista

Rebecca Catz defende que Pinto, na verdade, é um mestre satirista e que, inclusive, inspirou Jonathan Swift e seu As viagens de Gulliver. Para ela, a moldura de “autobiografia” seria somente um pretexto para que Mendes Pinto criasse sua obra satírica ficcional, levemente inspirada em suas viagens reais.

Até hoje, muitos estudiosos tentam conciliar o fato de que Mendes Pinto é, ao mesmo tempo, muito preciso em seus números e medidas (a Muralha da China, diz ele, tem seis braças de altura e quarenta de largura, e muitos outros exemplos), mas, por outro lado, a cronologia dos episódios do livro é completamente obscura, confusa e impossível de destrinchar. Catz defende que a cronologia do livro é obscura de propósito, justamente uma tentativa de sinalizar que o livro é satírico, que não é para ser levado literalmente. Um homem da inteligência de Mendes Pinto não teria como não estar ciente da profusão de erros e contradições em sua obra, todas deliberadamente cometidas para simbolizar a nós, suas leitoras, exatamente que tipo de obra estávamos lendo.

A crítica social de Mendes Pinto é feita com extrema duplicidade. (Nesse ponto, ele é precursor também de Gibbon, como explico aqui.) Nominalmente, seu livro confirma a ortodoxia de seu tempo e está revestido da mesma hipocrisia que ele denuncia sem cessar. Mendes Pinto faz todas as concessões à forma correta de dizer e falar as ortodoxias do seu tempo, pois sabia viver em uma época onde pessoas eram queimadas vivas por mudar uma palavra em uma fórmula religiosa ancestral.

Por isso, seu cuidado de extremo de encobrir, sob formalizados e repetidos protestos de fé, suas críticas indiretas, sempre colocadas nas bocas de bonzos, meninos, tártaros — qualquer um menos ele, pio católico português Fernão Mendes Pinto.

O tema da Peregrinação é o verdadeiro assalto lançado pelo Ocidente contra o Oriente, para expandir a fé mas também para ganhar dinheiro. Mas Mendes Pinto, ao contrário de todos os seus contemporâneos, não glorifica esses objetivos: pelo contrário, ele se pergunta se os portugueses não estariam colocando suas almas em perigo ao cometer tamanhos crimes. Os portugueses da Peregrinação são apresentados sofrendo, não triunfando; perdendo, não ganhando, como se tivessem, de fato, perdido a graça de Deus. Como transmitir essa mensagem abertamente em época de Inquisição fortalecida? Impossível. Daí escrever uma sátira.

O que Mendes Pinto ataca não são as instituições em si, mas a forma dessas instituições; ele se preocupa não com ideologias, mas com ideais; não com política, mas com ética. Sua sátira e suas críticas parecem vir de uma profunda fé em Deus, mas em um Deus da justiça, da caridade, da compaixão, da tolerância, um Deus que transcende todas as mesquinharias criminosas que Mendes Pinto não cansa de denunciar.

Para Catz, a Peregrinação é uma sátira, pois o objetivo de toda sátira seria reformar e corrigir, mudar hábitos através de crítica social. Muitos autores consideram que Mendes Pinto é um pícaro, mas Catz discorda: o universo picaresco, segundo ela, seria isento de qualquer padrão moral normativo, um mundo regido pela força e pela esperteza, nunca pela virtude.

Como pode uma sátira tão corrosiva ter escapado à atenção das autoridades, para não dizer do público, que muitas vezes levou o livro literalmente? Pra começar, enumera Catz, a obra empilha fatos em cima de fatos, histórias em cima de histórias, um cabedal infinito de detalhes, enumerações, catalogações, com espantosa verossimilhança, que vão pouco a pouco soterrando nosso sentido de ceticismo, sobrecarregando nossa imaginação, até o ponto que não sabemos mais, não temos como saber, nunca soubemos o que é fato e o que é ficção, o que é verdade e o que é mentira. Existe um certo poder mágico dessa ambigüidade satírica que múltipla de tal maneiras possíveis caminhos, possíveis interpretações, que nos sentimos completamente soterrados por tantas possibilidades. (Para não falar, claro, do recurso quase óbvio, mas ainda assim poderoso, de sempre colocar as piores críticas na bocas de insuspeitos estrangeiros.)

A Peregrinação nos vence pelo cansaço. Só quando desistimos de ficar mesquinhamente questionando a veracidade de cada pequeno fato, podemos nos entregar à enormidade e à beleza da mensagem maior de Mendes Pinto.

Um dos temas principais da Peregrinação certamente é a hipocrisia dos ocidentais no Oriente. E, se as autoridades aceitaram calorosamente o livro, foi porque ele vinha impermeabilizado pela mesma hipocrisia que tanto denuncia. A própria persona do narrador da Peregrinação, esse “herói” que testemunhamos cometer inúmero atos de roubo e pirataria, esse “defensor da fé” que assistimos prestar culto à ortodoxia imperialista que é prontamente negado por todos os personagens positivos da trama, essa persona é ela mesmo um verdadeiro monumento à hipocrisia colonial e talvez a criação mais genial de Mendes Pinto. O próprio acolhimento caloroso da Peregrinação por parte das autoridades confirma as acusações do autor, pois se contentam com as formas exteriores da retórica imperial e da piedade cristã e parecem não perceber, nunca se dar conta, que praticamente todas as histórias narradas no livro minam, subvertem, questionam todos esses seus valores tão hipócritas.

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Um imperialista

A Peregrinação é, sobretudo, uma obra gigantesca, amorfa, polifônica. Se a crítica social de Mendes Pinto fosse tão obvia quanto defendem Saraiva e Catz, dois autores de esquerda, o livro jamais teria sido lido, republicado, canonizado, no século XVII. Então, não faltam exemplos onde Mendes Pinto abertamente se coloca partidário do projeto imperialista português, sem críticas e sem hipocrisias. Abaixo, alguns exemplos.

Do capítulo 143:

“Os habitadores de toda essa terra … são muito comedores, e dados às delícias da carne, pouco inclinados às armas, e muito faltos delas, por onde parece que será muito fácil conquistá-los. … Das mais excelências particulares que pudera dizer dessa ilha, não tratarei agora, porque me parece que isso só bastará para despertar e incitar os ânimos dos portugueses a uma empresa de tanto serviço de Nosso Senhor, e de tanta honra e proveito para eles.”

“Os habitadores de toda esta terra … são muyto comedores, & dados às delicias da carne, pouco inclinados às armas, & muyto faltos dellas, por onde parece que será muyto facil conquistallos. … Das mais excellencias particulares que pudera dizer desta ilha, não tratarey agora, porque me parece que isto só bastara para espertar & incitar os animos dos Portugueses a hũa empresa de tanto seruiço de nosso Senhor, & de tanta honra & proueyto para elles.”

Do capítulo 189:

“Parece-me que não virá fora de propósito tratar aqui, ainda que brevemente, do sítio, grandeza, abastança, riqueza, e fertilidade que vi nesse reino de Sião e império Sornau, e quanto mais proveitoso nos fora tê-lo antes senhoreado, que tudo quanto temos na Índia, e com muito menos custo do que até agora nos tem feito.”

“Pareceme que não virá fora de proposito tratar aquy, inda que breuemente, do sitio, grandeza, abastança, riqueza, & fertilidade que vy neste reyno de Sião & imperio Sornau, & quanto mais proueitoso nos fora telo antes senhoreado que tudo quanto temos na India, & com muyto menos custo do que ategora nos tem feito.”

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Uma sólida ficha corrida de decisões tragicamente erradas

Em 2011, eu voltei de Nova Orleans para o Rio de Janeiro. Somente nos doze meses seguintes, precisei sair da cidade às pressas não uma, mas duas vezes, por motivos que jamais poderei contar.

Na segunda vez, durante o mês que passei isolado na cidade do Rio Grande, um dos poucos livros que trouxe comigo foi a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, que nunca tinha conseguido acabar de ler. Logo no primeiro capítulo, eis como Mendes Pinto narra o começo de suas peregrinações:

“… havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava El-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo.”

Mendes Pinto conta tanta coisa em tanto detalhe… mas nunca disse o que foi que lhe fez embarcar em uma das mais famosas viagens da história. Os estudiosos especulam até hoje. Brigou com o homem errado? Flertou com a mulher errada? Não se sabe.

Mas, com certeza, não foi nada de bom. Só uma sólida ficha-corrida de decisões catastroficamente erradas pode levar alguém a abandonar sua cidade na calada da noite.

Tamo junto, Fernão.

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Os mercadores de esterco

Capítulo 98, por volta de 1543. Aprisionado pelos chineses, Mendes Pinto está sendo levado prisioneiro de Nanquim para Pequim. A viagem é feita de barco, por rios que atravessam o coração econômico da China. Pelo caminho, Mendes Pinto vai observando a impressionante riqueza do país e os costumes que mais lhes parecem dignos de nota. Abaixo, um trecho, em português modernizado:

“E já que a ocasião de que vou tratando me dá licença para falar de tudo, direi o que mais vimos e de que nos não espantamos pouco, por vermos de quão baixas e quão imundas coisas lança mão a cobiça dos homens para seu proveito; e isso é que vimos outra muita gente que trata de comprar e vender o esterco dos homens, o qual entre eles não é de tão má veniaga que não haja muitos mercadores dela, muito honrados e ricos, e esse esterco serve para estercar as sementeiras em terras alqueivadas de novo, porque acham que é melhor que o que com um ente se usa. E os que compram isso andam pelas ruas tangendo em umas tabuinhas como quem pede para São Lázaro, e assim declaram o que querem comprar, porque não deixam de reconhecer quão sujo é seu o nome próprio, e quão mau para se apregoar pelas ruas. E é tão boa essa veniaga entre eles que às vezes se vê num porto de mar entrarem numa maré duzentos e trezentos barcos a carregar dela, como nesta nossa terra entram urcas a carregar de sal, e ainda se lhes dá muitas vezes por repartição de almotaçaria, conforme a falta que dela há na terra, e por ser esse esterco tão excelente para as sementeiras, dá esta terra da China três novidades cada ano.”

Abaixo, no original. Aproveitem para reparar como a língua mudou muito pouco em quinhentos anos. O português de Mendes Pinto é muito mais próximo de nós que o inglês de Shakespeare, ou mesmo o espanhol de Cervantes, dos falantes contemporâneos dessas línguas. (Falo mais sobre isso aqui e aqui.) Nesse trecho, só uma palavra me fez ir ao dicionário [veniaga]; as poucas outras mais estranhas são ou facilmente compreensíveis pelo contexto [sementeyra, vrca, etc] ou claramente não-importantes [almotaçaria]. Em caso de dúvida, leia alto.

“E já que a occasião do que vou tratando me dâ licença para falar de tudo, direy o que mais vimos, & de que nos não espantamos pouco, por vermos de quão baixas & quão immundas cousas lança mão a cubiça dos homens para seu proueito, & isto he que vimos outra muyta gente que trata em comprar & vender o esterco dos homens, o qual entre elles, não he tão mà veniaga[1], que não aja muytos mercadores della muyto honrados & ricos, & este esterco serue para estercar as sementeyras em terras alquéuadas de novo[2], porque achão que he milhor que o de que comummente se vsa. E os que comprão isto andão pelas ruas tangendo em humas taboinhas como quem pede para São Lázaro, & assi declarão o que querem comprar, porque não deixão de entender quão çujo he o seu nome proprio, & quão mao para se apregoar pelas ruas. E he tão boa esta veniaga entre elles, que às vezes se vé num porto de mar entrarem numa maré duzentas & trezentas vellas a carregar della, como nesta nossa terra entrão vrcas[3], a carregar de sal, & ainda se lhe dà muytas vezes por repartição de almotaçaria[4], conforme a falta que ha della na terra, & por ser este esterco tão excellente para as sementeyras, dà esta terra da China tres nouidades[5] cada anno.”

1. Negócio, mercadoria. Essa foi a única que fez ir ao dicionário.

2. Em português de hoje, sementeira e alqueivar. Ou seja, o esterco seria usado na semeadura das terras onde se fazia rodízio de colheitas, para não esgotá-las. Os chineses estão entre os primeiros povos tanto a usar esterco quanto a fazer rodízio de terras. Essas técnicas faziam que essa região do baixo Yangtzé tivesse três colheitas anuais, algo bastante impressionante pra época.

3. Dá pra deduzir que se trata de um tipo de barco para transporte de carga.

4. Em Portugal, “almotacé”, termo de óbvia origem árabe, era o burocrata que fazia inspeção dos pesos e medidas das mercadorias. Logo, deduzi que “almotaçaria” era o trabalho que ele realizava. Como claramente não parece importante na narrativa, não valeu uma viagem ao dicionário para confirmar.

5. Nunca tinha visto a palavra usada assim, mas é claro que ele quer dizer “colheitas”.

* * *

Somos mesmo filhos dos portugueses

Norte da China, 1544. Mendes Pinto e outros oito portugueses estão prisioneiros dos chineses. Na verdade, não exatamente prisioneiros: estavam cumprindo oito meses de exílio em uma cidade perto da Muralha da China, antes de serem libertados. De repente, aparece um vasto exército mongol, conquistando, pilhando, matando. Ao verem nove prisioneiros claramente não-chineses, lhes oferecem a liberdade caso se juntem a eles.

A decisão é difícil: os portugueses em breve poderão voltar pra casa; se escolherem o lado errado, podem acabar mortos. Um deles, Jorge Mendes, quer se unir aos mongóis, mas os outros não tem tanta certeza. Começam a discutir entre si, para espanto dos asiáticos:

Um trecho do capítulo 118, em versão adaptada:

“Nós então, vendo em que o Jorge Mendes se queria meter, e da maneira que se penhorava no que prometia, e que os tártaros lançavam mão disso, o repreendemos todos dizendo que se não metesse em coisa que nos desse trabalho e nos pusesse em risco de perdermos as vidas, a que ele respondeu algum tanto agastado:

– Bofé, senhores, que quanto à minha eu a estimo agora tão pouco que se alguns desses bárbaros ma quisesse jogar à primeira, vos certifico que com quaisquer duas sotas a meteria logo no primeiro invite, porque bem entendido está que não é essa a gente que nos há-de dar a vida pelo resgate que pretendia de nós, como fazem os mouros de África, e já que assim é, tanto monta hoje como amanhã. E lembre-vos o que lhes viste fazer em Quansi, e por aí julgareis o que vos podem fazer a vós.

Os tártaros ficaram algum tanto espantados de nos verem altercar uns com os outros e falarmos alto, que é coisa que eles entre si não costumam, e nos repreenderam com boas palavras, dizendo que mais próprio era das mulheres falarem alto e desentoado, pois não têm freio na boca, que de homens que cingem espadas e atiram com frechas na furiosa tormenta da guerra…”

Versão original:

“Nos então vendo o em que o Iorge Mendez se queria meter, & da maneyra que se penhoraua no que prometia, & que os Tartaros lançauão mão disso, o reprendemos todos dizendo, que se não metesse em cousa que nos desse trabalho, & nos pusesse em risco de perdermos as vidas, a que elle respondeo algum tanto agastado, bofé senhores, que quanto a minha, eu a estimo agora tão pouco, que se algum destes barbaros ma quisesse jugar à primeyra, vos certifico que cõ quaisquer duas sotas a metesse logo no primeyro inuite, porque bem entendido està que não he esta a gente que nos ha de dar a vida pelo resgate que pretenda de nos, como fazẽ os Mouros de Africa, & ja que assi he tanto monta oje como a menham. E lembreuos o que lhe vistes fazer em Quansy, & por ahy julgareis o que vos podem fazer a vòs. Os Tartaros ficaraõ algum tanto espantados de nos verem altercar hũs cos outros, & falarmos alto, que he cousa que elles entre sy não custumão, & nos reprenderão com boas palauras, dizendo, que mais proprio era das molheres fallarem alto & desentoado, pois não tem freyo na lingoa, nem chaue na boca, que de homens que cingem espadas, & tiraõ com frechas na furiosa tormenta da guerra, …”

Somos mesmos filhos dos portugueses. Me lembro de pegar o Path, trem urbano entre Manhattan e New Jersey, e a língua que mais se escuta é o português. E não só porque existem muitos brasileiros e portugueses em New Jersey, claro, mas porque falamos mais alto que todo mundo.

Jorge Mendes ganha a discussão, aproveita para dar várias sugestões bélicas aos mongóis e acaba naturalmente se sobressaindo dentro do grupo, o que gera ainda mais conflitos e invejinhas:

Um trecho do capítulo 119, na versão original:

“… & sempre o Iorge Mẽdez andou a cauallo junto co Mitaquer, & muyto fauorecido delle, com que todos enxergamos logo nelle, hum nouo esprito & oufania, tão differente dos dias atras, que espantados nós desta nouidade que viamos nelle, não faltaraõ algũs que mouidos desta nossa mâ natureza que sofre muyto mal estas differenças, viessem a murmurar delle dizendo a modo de donayre & torcendo os fucinhos, que vos parece deste perro? ou nôs por seu respeito auemos todos a menham de ser feitos em quartos, ou elle, se lhe este negocio socede como imagina, ha de ter tamanha valia cõ estes barbaros, que nos auemos de auer por honrados de o seruirmos toda nossa vida.”

Mais tarde, os portugueses são levados para se encontrar com o rei dos mongóis, que lhes pergunta quem são e de onde vem.

É interessante pois é a primeira vez em todo o livro que Fernão Mendes Pinto responde a essa pergunta… com a verdade. Até então, os portugueses sempre se apresentavam como sendo do Sião (nome antigo da Tailândia); Portugal não se encaixaria na visão sinocêntrica de mundo dos chineses.

Reparem como, mesmo os mongóis, os maiores conquistadores de todos os tempos (nenhum homem dominou tanto território quanto Gengis Khan), em meio a uma conquista sangrenta pela China, mesmo essas pessoas vêem os portugueses de modo negativo e não conseguem imaginar nenhum bom motivo que justificasse eles virem de tão longe. Só a cobiça e a pobreza justificam.

Como todo grande livro, a Peregrinação contem em si o seu próprio contra-discurso. Mendes Pinto frequentemente aproveitava seus personagens estrangeiros para fazer críticas nada sutis ao projeto colonialista português.

Um trecho do capítulo 122, em versão adaptada:

“– Pergunta a essa gente do cabo do mundo se tem rei e como se chama a sua terra, e que distância haverá dela a esta do chim em que agora estou. A que um da nossa companhia em nome de todos respondeu que a nossa terra se chamava Portugal, cujo rei era muito grande e poderoso, e rico, e que dela àquela cidade de Pequim haveria distância de quase três anos de caminho. El-rei fez muito espanto como homem que não tinha esta máquina do mundo por tamanha. Batendo três vezes na coxa com uma varinha que tinha na mão, e os olhos postos no céu como quem dava graças a Deus, disse alto, que todos ouviram: “Ó Criador, ó Criador de todas as coisas, qual de nós outros, pobres formigas da terra, poderá compreender as maravilhas da tua grandeza?”. Acenando com a mão fez-nos chegar até aos primeiros degraus da tribuna onde os catorze reis estavam sentados, e perguntou-nos porque não vínhamos antes por terra. A que se respondeu que por a terra ser muito grande e haver nela reis de diversas nações que o não consentiriam. E ele insistiu: “Que é o que vindes a buscar a essa outra, por que vos aventurais a tamanhos trabalhos?”. E declarando-lhe então a razão disto, pelas melhores e mais bem enfeitadas palavras que então ocorreram, esteve um pouco suspenso, e bulindo três ou quatro vezes com a cabeça, disse para um homem velho que estava junto dele: – Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça. A que o velho respondeu: – Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu; ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais.”

Versão original:

“El Rey mandou então que cessasse a musica dos estromentos, & disse ao Mitaquer, pregunta a essa gente do cabo do mundo se tem Rey, & como se chama a sua terra, & que distancia auerá della a esta do Chim em que agora estou, a que hum da nossa companhia em nome de todos respondeo, que a nossa terra se chamaua Portugal, cujo Rey era muyto grande, poderoso, & rico, & que della a aquella cidade do Pequim aueria distancia de quasi tres annos de caminho, de que elle fez hum grande espanto como homem que não tinha esta maquina do mundo por tamanha, & batendo tres vezes na coxa com hũa varinha que tinha na mão, & os olhos postos no Ceo como que daua graças a Deos, disse alto que todos o ouuirão, Iulicauão julicauão minaydotoreu pisinão himacor dauulquitaroo xinapoco nifando hoperau vuxido vultanitirau companoo foragrem hupuchiday purpuponi hincau, que quer dizer, ò criador, ò criador de todas as cousas qual de nós outros pobres formigas da terra poderâ comprender as marauilhas da tua grandeza? fuxiquidane, fuxiquidane, venhão cà, venhão câ, & acenando com a mão nos fez chegar até os primeyros degraos da tribuna onde os quatorze Reys estauão assentados, & nos tornou a preguntar como homẽ espantado do que tinha ouuido, pucau, pucau? que quer dizer quanto? quanto? a que respondemos o mesmo de antes, que quasi tres annos de caminho, a que elle tornou a dizer, que porque não vinhamos antes por terra que auenturarmonos aos trabalhos do mar? a que se respondeo que por a terra ser muyto grande, & auer nella Reys de diuersas naçoẽs que o não consintirião, a que elle tornou, que he o que vindes buscar a essoutra, porque vos auenturais a tamanhos trabalhos? & declarandolhe então a razão disto pelas melhores & melhor enfeitadas palauras que então o correrão, esteue hum pouco suspenso, & bulindo tres ou quatro vezes com a cabeça disse, para hũ homem velho que estaua junto delle, conquistar esta gẽte terra tão alongada da sua patria, dâ claramente a entender que deue de auer entre elles muyta cubiça & pouca justiça, a que o velho, que se chamaua Raja Benão, respondeo, assi parece que deue ser, porque homẽs que por industria & engenho voão por cima das agoas todas, por aquirirem o que Deos lhes não deu, ou a pobreza nelles he tanta que de todo lhes faz esquecer a sua patria, ou a vaydade, & a cegueyra que lhes causa a sua cobiça he tamanha que por ella negão a Deos, & a seus pays.”

Em tempo: Mendes Pinto de fato visitou a China e foi dos poucos ocidentais a entrar em Pequim, mas suas descrições dos mongóis (que ele chama tártaros) não tem nada a ver com os mongóis de verdade. Provavelmente, todo esse trecho é pura ficção.

* * *

Monges budistas que bebiam merda

Um trecho do capítulo 160 da Peregrinação, descrevendo um festival religioso budista que Mendes Pinto teria testemunhado em Burma, em 1545. Talvez.

“Vinhão tambem outros que se chamauaõ Nucaramoẽs, muyto feyos & mal assombrados, vestidos de pelles de tigres com hũas panellas de cobre debaixo dos braços, cheyas de hũa certa confeiçaõ de ourina podre, misturada com esterco de homẽs, taõ peçonhenta & de fedor taõ incomportauel, que por nenhum modo se podia sofrer nos narizes, & pedindo esmolla ao pouo dezião, dame esmola logo nessa hora, & se não comerey disto que come o diabo & borrifarteey com que fiques maldito como elle; a que logo todos acudião a lhe darem esmolla muyto depressa, & se tardaua mais hum momento do que elle queria punha a panella à boca, & bebendo hum grande trago daquella fedorenta confeyção, borrifaua com ela aos que queria fazer mal, porque toda a outra gente que os via borrifados, auendoos já por malditos, saltaua nelles, lhes daua tão mao trato, que os tristes naõ sabiaõ parte de sy, porque nenhũa pessoa cataua cortesia que o naõ deshonrasse, & lhe desse muytas bofetadas & arrepeloẽs, dizendo que erão escomungados por serem causa de aquelle homem santo comer aquella çugidade como os diabos, & ficar sempre fedorento diante de Deos, para não poder yr ao parayso, nem ninguem o ver mais neste mundo.”

* * *

Como ler a Peregrinação

Como o livro é muito longo, chamo atenção abaixo para alguns dos capítulos mais famosos, interessantes, engraçados. (Todos são muito curtos, cerca de duas, três páginas cada um.) Para facilitar, incluí a rubrica do capítulo e, entre parênteses, um comentário meu.

* * *

I (1)

Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia

A saída de Portugal e o começo das aventuras.

X (10)

Como o capitão-mor tentou queimar a galé dos turcos, e do que então se passou

Uma rara participação bélica do nosso narrador.

XIX (19)

Do que passei até chegar ao reino de Quedá, na costa da terra firme de Malaca, e do que aí me aconteceu

Um caso de parricídio, incesto e diplomacia.

XXX (30)

Como essa rainha de Aaru se partiu de Malaca para Bintão, e do que se passou com El-Rei do Jantana

Um exemplo de mulher forte.

XLVII (47)

Como estando nós surtos na ponta de Tilaumera, vieram por acaso ter conosco quatro lanteias de remo em que vinha uma noiva

Um dos crimes mais chocantes e horrendos dos portugueses: o rapto de uma noiva chinesa no dia de seu casamento.

LV (55)

Como nos partimos desta ilha dos ladrões para o porto de Liampó, e do que passamos até chegar a um rio a que chamavam Xingrau

Um dos episódios satíricos mais famosos: Fernão coloca na boca de um menino chinês várias críticas aos portugueses que ele não podia fazer ele mesmo.

LXXVI (76)

Como Antônio de Faria chegou a essa ermida e do que se passou nela

LXXVII (77)

Do mais que Antônio de Faria passou nessa ermida até se embarcar

LXXVIII (78)

Como esta primeira noite fomos sentidos, e por que causa, e do mais que sucedeu sobre isso

Essa sequência de três capítulos é considerada um dos pontos altos da sátira mendesiana, um episódio que demonstra que nada está a salvo da ambição portuguesa.

XCI (91)

Como chegamos a uma cidade a que chamavam Sampitai, e do que passamos com uma mulher cristã que achamos nela

Já havia uma pequena e inesperada diáspora portuguesa na Ásia na época de Mendes Pinto.

XCVIII (98)

De outras muitas diversidades de coisas que vimos e da ordem que se tem nas cidades movediças que se fazem nos rios, em embarcações

Nesse painel da vida nos grandes rios, gosto especialmente da figura dos mercadores de esterco.

CVII (107)

De algumas coisas particulares notáveis que há na cidade de Pequim

Mendes Pinto de fato esteve na China, mas essa sua famosa descrição de Pequim é uma bela utopia renascentista na linha da de Thomas Morus.

CXVI (116)

Como acaso achei nesta cidade um português, e o que com ele passamos

Outro português perdido encontrado por Mendes Pinto e as histórias que conta.

CXVIII (118)

Do assalto que o nauticor de Lançame deu ao castelo de Nixiancó, do sucesso que teve, e do mais que sucedeu daí por diante

Portugueses debatem se entram ou não em uma guerra, e os tártaros se espantam de ver como falam alto!

CXIX (119)

Do ardil que Jorge Mendes deu para se tomar o castelo, e do assalto que se lhe deu, e do sucesso deles

Nessa pequena epopéia militar, Mendes Pinto canta um Ulisses português.

CXXII (122)

Do mais que vimos até chegarmos onde El-Rei dos tártaros estava, e do que passamos com ele

Assim como o menino do capítulo 55, aqui também o rei dos tártaros critica a ganância dos portugueses, com palavras seguramente de Mendes Pinto.

CXL (140)

Das perguntas que nos fizeram e do que a elas respondemos, e do mais que então sucedeu

Uma das mais impressionantes condenações da cobiça: “Quem conquista não rouba? Quem força não mata?”

CXXXIV (134)

Da honra que o nautaquim fez a um dos nossos por o ver atirar com uma espingarda, e do que daí sucedeu

A chegada das primeiras armas de fogo ao Japão: Mendes Pinto diz que estava lá, é provavelmente mentira, mas a história é excelente.

CLII (152)

De que maneira se executou a justiça nas cento e quarenta padecentes, no chaubainhá, na Nhay Canató e nos seus quatro filhinhos

Uma denúncia da tirania das monarquias asiáticas: os portugueses não eram piores em tudo!

CLX (160)

Da grande e suntuosa procissão que se faz neste pagode, e dos sacrifícios que se fazem nela

Uma das primeiras descrições das religiões asiáticas: confesso que amo os monges que bebiam merda!

CXCVIII (198)

Da maneira com que tiraram a padecer o xemindó, e da morte que lhe deram

Outro episódio de tirania asiática.

CCXXIII (223)

Como chegamos ao reino do Bungo, e do que lá passamos com El-Rei

Mais um episódio farsesco no Japão.

CCXXVI (226)

Do que passei depois que partimos deste porto de Xeque até chegar à Índia, e daí a este reino

A volta pra casa e o fim do livro.

* * *

(Referências: Rebecca Catz, A sátira social em Fernão Mendes Pinto; João David Pinto Correia, Autobiografia e aventura na literatura de viagens: A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; Antonio Moniz, Para uma leitura de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; Antonio José Saraiva, Fernão Mendes Pinto.)

* * *

Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a sexta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 12 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/peregrinacao-de-fernao-mendes-pinto // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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