Não tenho como exagerar a importância de ler poesia em voz alta.
A poesia é um meio eminentemente oral: o som das palavras, a cadência, o ritmo, é tão importante quanto o conteúdo do texto.
Não tenho como exagerar a importância de ler poesia em voz alta.
A poesia é um meio eminentemente oral: o som das palavras, a cadência, o ritmo, é tão importante quanto o conteúdo do texto.
Quando uma participante do curso Introdução à Grande Conversa perguntou “de onde veio a expressão calcanhar de Aquiles?“, fiz uma distinção importante: esse mito está registrado em tal livro, mas esse livro não é a fonte do mito; a fonte do mito é a própria mitologia. (O texto completo está aqui.)
Outra pessoa perguntou leu o texto e perguntou:
“Entendi que o livro não é a fonte do mito, mas que a gente conhece o mito por causa do livro, certo?”
Na verdade, não. Essa é precisamente a diferença.
Se esse livro desaparecer, se nunca tivesse existido, provavelmente teríamos a expressão “calcanhar de Aquiles” do mesmo jeito.
Em literatura, não existe separação entre forma e conteúdo. A forma não é um meio de nos transmitir o conteúdo. A forma é o conteúdo. O meio é a mensagem.
Um pouco sobre o contexto histórico das leituras de nossas três primeiras aulas.
Algumas dicas para entender melhor a Ilíada: comprem um bom dicionário de mitologia, evitem séries.
Na próxima quinta, 23 de julho, às 19h, acontece a segunda aula do meu curso Introdução à Grande Conversa, sobre os Gregos. A narrativa da aula será a seguinte:
Um curso sobre o cânone ocidental é pedante por definição?
Pergunta de uma das participante do curso Introdução à Grande Conversa:
“Os gregos conheciam mesmo todas essas pessoas citadas na Ilíada?”
Não é a mitologia que vem da literatura, mas a literatura que vem da mitologia.
Podemos ler literatura como quisermos. Mas sim, existem leituras mais e menos superficiais.
* * *
Na Internet, abundam discussões sobre se Jack cabia ou não na porta onde Rose estava flutuando depois do naufrágio do Titanic. Pessoas fazem gráficos, cálculos, experimentos para provar que, sim, ele de fato caberia na porta. Respondeu James Cameron:
“Jack tinha que morrer. A história só faz sentido com a morte de Jack. Se por acaso caberiam os dois em cima da porta, então foi erro do carpinteiro que deveria ter feito uma porta menor.”
Jack, assim como Aquiles, tinha que morrer. Senão não tinha história. Ser mortal é parte integrante da persona de Aquiles. Se Tétis tivesse conseguido torná-lo imortal, ele seria outra pessoa, a Ilíada seria outro poema, nossa conversa aqui seria outra conversa. Tudo seria diferente.
Até meados do século XIX, nunca tinha passado pela cabeça de ninguém que o Gênese poderia ser uma narrativa literal da criação do mundo. Pelo contrário, desde cedo temeu-se que colocar esses textos sagrados por escrito estimularia certezas estridentes, inflexíveis, irrealistas. (Como, aliás, Jeremias sugere em 8, 8-9)
Como um texto alegórico como a Bíblia passou a ser lido de forma literal justo na época mais científica da humanidade? Não é coincidência.
Abaixo, uma pequena história dos diversos significados possíveis da Bíblia ao longo dos milênios.
O Livro de Samuel e a Orestéia, ambos intensamente políticos e intensamente religiosos, contam a mesma história de maneiras bem diferentes.
Jerusalém está cercada pelos babilônios de Nabucodonosor e parece não haver esperança para os israelitas. O próprio rei implora a Jeremias por boas notícias (Jer 38), mas infelizmente todos os oráculos são negativos: o reino será mesmo conquistado e seus habitantes, exilados. Felizmente, contudo, o inimigo está a serviço do Deus dos israelitas:
O Livro de Jó talvez seja o ponto alto literário da Bíblia. Ele é dialógico e poético, trágico e racional, místico e rebelde. Infinitamente complexo, estranhamente consolador. Um mistério que já dura milênios e não parece perto de ser solucionado.
Como jovem ateu, o Livro de Jó me foi imensamente importante. Demorei muito para entender porque teriam decidido colocar na Bíblia um livro que, para mim, provava ou que Deus não existia ou que, se existisse, era um canalha caprichoso que não valia a pena adorar, seguir, obedecer; e, em ambos os casos, que nada nada fazia nenhum sentido.
O francês René Girard (1923-2015), partindo da crítica literária e transitando por áreas tão diversas quanto a psicologia e a religião, a antropologia e a filosofia, foi o último pensador a tentar uma grande teoria explicativa da humanidade. Como toda grande teoria explicativa generalista, ela é polêmica e combativa, soa óbvia e tautológica quando resumida, é vulnerável a críticas por especialistas de todos os lados, não consegue explicar tudo com a amplitude que talvez seu autor desejasse, mas é rica o suficiente para nos permitir enxergar os mesmos fatos, os mesmos fenômenos, a mesma realidade de maneiras diferentes, subversivas, inovadoras.
Para muitas de nós, é difícil, quase impossível, ler a Bíblia como literatura.
Literatura, quase que por definição, é inofensiva: podemos gostar ou não gostar, mas ela não nos humilha, oprime, exclui.
A Bíblia faz tudo isso. Muitas de nós foram expulsas de casa, sofreram agressões, não puderam casar com quem queriam, diretamente por causa de palavras escritas nesse livro que, agora, queremos estudar como se fosse literatura.
E é? A Bíblia é literatura?
No Livro de Samuel, Davi e Jônatas têm uma das amizades mais famosas, celebradas e controversas da Bíblia. Mais de um comentador interpreta que, na verdade, eram amantes homossexuais.
Os profetas eram aquelas pessoas chamadas por Deus para profetizar em Israel, ou seja, para denunciar os abusos e pecados da população, para pregar que mudassem seus maus hábitos e para ameaçá-la com os castigos do Senhor.
Era um trabalho duro, duríssimo: precisavam profetizar horrores sem fim para as pessoas que amavam e, naturalmente, sofrer a terrível reação.
São talvez as figuras mais trágicas, mais atormentadas da Bíblia.
No meio de um ano ruim, um ano que infelizmente prometia ser o prelúdio de anos muito piores, o profeta Jeremias ousou ser otimista diante da tragédia.