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Ser pedante

Um curso sobre o cânone ocidental é pedante por definição? (Guia de leitura para o curso “Introdução à Grande Conversa”.)

Um curso sobre o cânone ocidental é pedante por definição?

No grupo de Whatsapp do nosso curso Introdução à Grande Conversa, tivemos um rápido arranca-rabo sobre pedantismo, mostrando que o assunto é um nervo exposto, talvez uma preocupação de todas nós (“será que sou?”), talvez uma aspiração secreta (“será que não deveria querer ser?”).

É um dos temas mais importantes do nosso curso, e de qualquer discussão sobre arte, e vai surgir repetidas vezes na leitura de muitas das nossas obras, especialmente quanto mais chegarmos perto do presente.

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Conheço várias pessoas que dizem que funk não é música, que Paulo Coelho não é literatura, que Romero Britto não é arte, etc.

Ser pedante, pra mim, é estabelecer escalas de valor de modo a invalidar a expressão, produção e consumo artístico do Outro.

Reconhecer que o diferente é diferente não é pedante.

Clarice Lispector, por exemplo, escrevia conto, romance, reportagem, coluna de conselho, fazia até tradução.

Reconhecer que cada um desses gêneros é diferente, tem regras internas próprias, é escrito de uma maneira bem específica, e pede uma leitura bem específica, não é ser pedante: é literalmente o material de estudo e de análise da crítica literária.

Se a gente interdita essa conversa dizendo que é “pedante”, estamos jogando toda a disciplina no lixo.

A própria Clarice distinguia entre sua produção: a coluna de conselhos sentimentais para mulheres, por exemplo, ela escrevia por dinheiro, não assinava, nunca quis publicar em forma de livro e só saíram agora com o nome dela porque ela virou uma máquina de fazer dinheiro.

Não dá pra dizer que ela escrevia da mesma maneira uma coluna sentimental, feita para ler lida de manhã e colocada na gaiola do passarinho à noite, e o romance A Hora da Estrela, que escreveu escritora consagrada e já com um diagnóstico de câncer terminal, escrevendo para o futuro e para a posteridade, nem sem saber se veria ser publicado, com diversas camadas de sentido diferentes que só é possível começar a apreender numa terceira, quarta leitura. (Já perdi a conta de quantas vezes reli.)

Assim como ela não escreveu ambas da mesma maneira, não faz sentido lê-las da mesma maneira: quem faz isso com certeza não aproveitou direito uma delas.

Nosso curso não é para estabelecer uma escala de “valor literário”, ou para dizer que é bom e o que ruim, o que tem valor e o que não tem.

Nosso curso tem dois objetivos, ambos bem práticos:

O primeiro objetivo prático do nosso curso é falar das obras que, para bem ou para mal, boas ou ruins, arte ou não arte, foram influentes ao longo dos milênios, responderam às obras anteriores, foram respondidas pelas que vieram depois, e participaram assim da Grande Conversa. Ou seja, das obras que foram historicamente relevantes. A maioria delas não foi considerada arte ou literatura na época em que foi produzida, ou até muito depois: o Decameron foi considerado simplório, simplista e, ainda por cima, imoral; Os miseráveis, produzido como literatura de entretenimento e publicado em capítulos nos jornais, era criticado pela “elite pensante” do mesmo modo como hoje se criticam as telenovelas; já Martín Fierro recebia as críticas que hoje recebem o funk ou rap, de “exaltar e dar voz à bandidos antissociais”, etc etc.

A autobiografia de Agostinho é a história de um pedante, professor de retórica e gramática, com todos os clássicos grecolatinos na ponta da língua, que julgava os Evangelhos incapazes de conter qualquer significado importante por terem sido escritos em um estilo tão simplório e simplista, e como ele lentamente, dolorosamente venceu esses preconceitos. Para ele, o processo levou à sua conversão ao cristianismo. Para nós, se somente nos ajudar a sermos menos pedantes, esse curso já terá cumprido seu objetivo.

Falar sobre o pedantismo de como essas obras foram recebidas é rigorosamente o assunto do nosso curso. Toda pessoa, hoje, que acha sinceramente que rap é “música de bandido” ou que funk “não é música”, etc, gosta de estilos musicais que já foram igualmente, universalmente considerados “música de bandido” ou “não música”, como samba, chorinho, rock, jazz, tango, até valsa e polca.

Meu maior esforço, como artista e professor, é para desnaturalizar o mundo. Para ajudá-las a ver que o mundo é maior, mais estranho, mais diferente, do que parecia à primeira vista. Para ajudá-las, justamente, a superar pequenos pedantismos como esse: de achar que o estilo musical do Outro não é música, que o estilo de leitura do Outro não é música.

O segundo objetivo prático do nosso curso é ajudar vocês, pessoas participantes, a ler aquelas obras, mais complexas e mais difíceis, que não teriam condições de aproveitar tão bem por conta própria.

Essa, aliás, é a justificativa social da crítica literária: as pessoas estudam literatura, como estudei, para serem treinadas a ajudar pessoas como vocês, que não estudaram literatura, a melhor aproveitarem as grandes obras da nossa tradição cultural compartilhada.

Existem obras que são mais fáceis de serem entendidas e apreciadas por conta própria, já são escritas com menos camadas de complexidade, prevendo e antecipando uma leitora cansada, distraída ou querendo somente se distrair. Essas obras, via de regra, não escondem seu significado: tudo o que têm a dizer já está na superfície, porque não querem impor à leitora o trabalho de mergulhar nelas e minerar sentidos.

Não leremos essas obras aqui não porque esse é um curso pedante que acha que são subliteratura, mas porque, na prática, concretamente, vocês não precisam da ajuda profissional de um professor de literatura para ler, entender, apreciar, curtir esses textos. (E, por favor, leiam de tudo! Quem acompanha minhas listas de leituras sabe que eu leio!)

Leremos aqui no curso aqueles textos que, como ficou claro nos casos da Bíblia e da Ilíada, não se revelam facilmente. Que numa primeira leitura parecem chatos ou difíceis ou duros ou estéreis, mas que, se soubermos abordá-los com cuidado e com carinho, se revelam belos, sensíveis, profundos, impactantes.

Não vou dizer que não dá um trabalho, viu? Eu acho que vale a pena, porque dediquei minha vida a isso. Vocês também, imagino, ou não estariam aqui.

E muito, muito obrigado por estarem.

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Esse texto faz parte dos guias de leitura para o meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

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Ser pedante é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 15 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/ser-pedante // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

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