O conto “Às vezes, morro” faz parte do meu livro Mentiras reunidas, já em pré-venda. Abaixo, o conto completo.
Autor: alexcastro
Sentimos o nacionalismo como algo tão forte e tão sólido que nem parece que foi inventado menos de duzentos anos atrás. Curiosamente, uma de suas características definidoras é justamente se fazer de eterno.
Porque mentir
Meu novo livro, Mentiras Reunidas, está em pré-venda. Durante esse mês de divulgação e lançamento, muita gente me pergunta:
Mas por que mentir? Por que tanta mentira?
Abaixo, a resposta, do prefácio do livro.
A religião, a sociedade, a natureza seriam, segundo Hugo, as três lutas, as três guerras, as três soluções, as três necessidades, as três fatalidades do homem. Para denunciar a religião, escreveu O corcunda de Notre-Dame; a sociedade, Os Miseráveis, e a natureza, Os trabalhadores do mar.
O texto acima é uma paráfrase da nota introdutória a esse último romance. Em outra nota introdutória, dessa vez a Os Miseráveis, Hugo afirma:
“Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século — a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância — não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.”
E um outro trechinho de Os Miseráveis:
“Respeitamos o passado aqui e ali e, se ele concordar em permanecer morto, podemos até preservá-lo, mas se insistir em continuar vivo, vamos atacá-lo e matá-lo.”
Diante de notas programáticas tão brilhantes, tão concisas, tão contundentes, como não querer mergulhar na obra desse homem?
Mas, afinal, é um livro de direita ou de esquerda? Não pode ser um livro de esquerda, pois cuidadosamente evita todas as oportunidades de enfatizar a luta de classes, ou mesmo de condenar o empreendedorismo, a indústria, os ricos, a riqueza. Apesar disso, foi um best-seller durante toda a existência da União Soviética, rivalizando somente com Puchkin. O livro parece ter sido criado para ser igualmente irritante para ambos os lados. De que outra maneira poderia construir a conciliação que tanto busca?
Os Miseráveis é um dos romances mais longos de todos os tempos. E, em minha opinião, o melhor.
Naturalmente, vários outros romances têm qualidades técnicas e literárias equivalentes. Os meus finalistas seriam Guerra e Paz (Tolstoi, 1867, russo), Moby Dick (Melville, 1850, inglês), Cem anos de solidão (Garcia Márquez, 1967, espanhol), Manuscrito encontrado em Saragoça (Potocki, 1814, francês): todos possuem um interesse profundo, sincero, empático por cada personagem, até os menores — que, na prática, não são menores, pois explodem na página com profundidade e concretude inesquecíveis.
Mas, se o que me faz amar Homero é sua dureza, o que me faz amar Hugo (e colocar Os Miseráveis um nariz à frente de todos os outros romances que já li) é o seu olhar amoroso.
A Revolução Francesa
Um dia, em uma pequena ilha do Caribe, as pessoas escravizadas ouviram que seus senhores, do outro lado do mar, tinham proclamado que todos os homens tinham direito à liberdade, à igualdade, à fraternidade. Quando descobriram, no navio seguinte, que isso não se aplicava a eles, já era tarde: se rebelaram, tomaram controle de suas vidas e o mundo nunca mais foi o mesmo. A segunda independência das Américas determinou todo o curso do século XIX: tudo o que se fez ou deixou de se fazer no continente foi sempre em função de ou repetir o Haiti ou impedir que o Haiti se repetisse. O livro Os jacobinos negros, escrito por um intelectual marxista de Trinidad e Tobago, coloca a Revolução Haitiana no contexto da Francesa, um exemplo de todas as suas potencialidades e limites, todas as suas virtudes e paradoxos.
Essa mesma Revolução Francesa, à qual os haitianos primeiro tentam aderir e da qual depois precisam se defender, logo é traída, cooptada por um caudilho e derrotada definitivamente. Nesse momento, começa a ação de Os Miseráveis, que vai de Waterloo até a eclosão da primeira das muitas Revoluções urbanas e populares que abalariam a França e toda Europa ao longo do século XIX. Seu tema principal, nas palavras do autor, é “a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância”.
Nenhum clássico é tão acessível, envolvente, revoltante, generoso. Ao longo de infinitas opressões, a narrativa nunca é dura ou distante, fria ou condescendente. Em um século onde o cinismo já é quase obrigatório, Os Miseráveis nunca cede, nem uma única vez, em seu projeto de denunciar a estrutura, não as pessoas: ataca a maldade, mas sem malvados; critica a opressão, mas sem opressores. O Inspetor Javert, implacável perseguidor do herói Jean Valjean, é o mais duro de todos os homens, mas Hugo nos transmite sua dureza sem nunca ser duro com ele: Hugo ama Javert tanto quanto ama Valjean, tanto quanto ama cada uma de suas centenas de personagens. Dotado de transbordante empatia, Hugo entende porque são como são e as absolve a todas, sem nunca perdoar a sociedade que as criou, as deformou, as oprimiu.
Em abril, começa o meu novo curso A Grande Conversa Brasileira, a ideia de Brasil na literatura. Nossa primeira aula, no dia 1º de abril, às 19h, será sobre indianistas & inconfidentes e vamos conversar sobre José de Alencar, Gonçalves Dias e Cecília Meireles.
Paraíso Perdido é a história de uma revolta: Satã se levanta contra a tirania de Deus, tenta derrubá-lo, perde e é lançado aos abismos do inferno, depois de cair por nove dias e nove noites. Ainda revoltado, decide arruinar a Criação e oferece o fruto proibido a Eva.
O poema, que começa com a queda de Satã do Céu e termina com a Queda de toda a humanidade, no momento em que Adão e Eva são expulsos do Éden, poderia ser uma simples história carola, um fanfic da Bíblia, se não fosse contada pelo mais radical dos poetas.
A Revolução Francesa eclipsou a radicalidade da Revolução Inglesa, mas, um século antes, os ingleses já tinham feito o impensável: derrubaram e executaram seu rei e proclamaram uma República. John Milton, poeta radical, defensor da liberdade, apologista do divórcio, se tornou o principal propagandista no novo regime, encarregado de defendê-lo intelectualmente perante uma Europa de reis e rainhas horrorizados. A república teve duração efêmera, o filho do rei executado logo voltou ao trono e comandou um sangrento expurgo. Milton, velho e cego, escapou por pouco de uma execução humilhante, mas viu todos os seus sonhos, ambições e projetos serem destruídos. Nesse momento, escreve Paraíso Perdido.
Como nos velhos tempos, conto
“Como nos velhos tempos” é um dos contos inéditos do meu novo livro Mentiras reunidas. Abaixo, o comecinho.
A ideia de Brasil na literatura. (compre agora.)
(O curso anterior está aqui: Introdução à Grande Conversa.)
A “Canção de mim mesmo”, de Walt Whitman, é o grande poema nacional dos Estados Unidos e uma das maiores celebrações do indivíduo de todos os tempos. Ela será uma das leituras da nona aula, Nações, de nosso curso Introdução à Grande Conversa. Mas existem várias versões desse poema. Qual ler?
Enquanto policiais militares empobrecidos continuarem invadindo favelas para executar outras pessoas mais pobres ainda, o Martín Fierro continuará relevante: é o grande poema americano, o que nos canta, o que nos define, o que nos acusa.
O que é “ser canônico”
A próxima obra que leremos no curso Introdução à Grande Conversa será o Martín Fierro, de José Hernandez, obra máxima da literatura argentina.
Um dos alunos procurou pela tradução inglesa da obra e só encontrou uma. E perguntou:
“O Martín Fierro é tão canônico quanto as outras obras? É tão canônico quanto um Os Miseráveis?”
Depende.
Porque não existe simplesmente “ser canônico”. Toda canonicidade é marcada por um recorte temporal.
Leituras 2020, comentadas
Não por acaso, o primeiro ano da grande pandemia também foi o ano em que mais li. Abaixo, alguns comentários sobre as minhas leituras em 2020. Antes, alguns avisos. Para quem tiver pressa, a lista está no fim do texto.
A Tempestade (nem tragédia, nem comédia, mas um “romance”, termo vago que caracteriza as últimas peças de Shakespeare) é uma obra onírica e indistinta, esfumaçada e sonolenta, de enredo solto e elíptico, onde ninguém morre nem se machuca.
Paraíso Perdido é a história de uma revolta: Satã se levanta contra a tirania de Deus, tenta derrubá-lo, perde e é lançado aos abismos do inferno, depois de cair por nove dias e nove noites. Ainda revoltado, decide arruinar a Criação e oferece o fruto proibido a Eva.
O poema, que começa com a queda de Satã do Céu e termina com a Queda de toda a humanidade, no momento em que Adão e Eva são expulsos do Éden, poderia ser uma simples história carola, um fanfic da Bíblia, se não fosse contada pelo mais radical dos poetas.
Cada obra de arte só pode ser julgada e fruida em relação a si mesma, suas premissas, seus objetivos.
Fernão Mendes Pinto passou vinte anos peregrinando pela Ásia em meados do século XVI, no auge do poder marítimo português. Enquanto quase todos os outros autores escreveram sobre o lado oficial da conquista, ele deixou testemunho sobre a ralé que ia nos porões dos navios. Foi o primeiro ocidental a ver, registrar, testemunhar incontáveis países, povos, culturas, cerimônias asiáticas. Quase morreu várias vezes. Se salvava sempre por sua lábia e por suas mentiras, nunca pela força ou por proezas militares. É o nosso maior pícaro, precursor de Pedro Malasartes, malandro da gema.
Fernão mentia? Mentia. Mas que diferença faz? O importante é que tinha uma mensagem a comunicar e, como todo grande artista literário, comunicou essa mensagem através de palavras, diálogos, episódios que misturam realidade e ficção.
Impedidos de comerciar com o Oriente pelo Mediterrâneo e buscando novos caminhos pelo Atlântico, os europeus começam o caminho que os levará a fundar “novas Europa fora da Europa”, ou seja, a ampliar de maneira global o conceito de Ocidente.