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O que a vida dos outros nos ensina

Só temos uma única vida para apostar na roleta dos nossos sonhos. As nossas dores e alegrias só quem vai sentir somos nós.

* * *

Karine odiava seu emprego.

Não podia largá-lo, dizia ela, porque era o único jeito de pagar o caríssimo aluguel de seu apartamento.

E eu perguntei:

“Por que você mora nesse apartamento específico e não em outro?”

“Porque é perto do trabalho.”

* * *

Conheço duas pessoas que decidiram “largar tudo”, se arrependeram amargamente… e “pegaram tudo” de novo.

Um moço percebeu que dava pra curtir Ubatuba muito mais veraneando lá enquanto diretor de criação de agência na Vila Madalena do que como ajudante em escuna para turista, aturando belgas bêbados todos os dias.

Uma moça percebeu que dava para curtir literatura muito mais sendo engenheira em multinacional e lendo Clarice Lispector a noite toda do que estudando Letras e sobrevivendo às custas de traduções e revisões.

Por outro lado, conheço várias e várias outras pessoas que largaram tudo e não se arrependeram.

Ou vai ver se convenceram que não tinham se arrependido, porque não tinha mais volta.

* * *

As lições das vidas de outras pessoas podem ser interessantes, podem ampliar nossos horizontes e indicar caminhos, mas têm utilidade limitada.

A decisão que se provou a mais acertada para Pedro foi a mesma que fudeu a vida de Paulo.

E aí?

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Como ensino Literatura

Uma aula de literatura é a aula mais democrática que existe.

Pela própria natureza da disciplina, não se trata de uma aula onde você tem uma mestra lá em cima magnanimamente distribuindo conhecimento e um grupo de pessoas alunas lá embaixo sorvendo tudo silenciosamente. Comparado com uma professora de História ou Química, tenho de fato muito pouco pra ensinar. Minha leitura de qualquer obra literária vale tanto quanto a de qualquer aluna.

A principal força-motriz que me arrasta pra sala de aula é a curiosidade sincera de saber o que as alunas vão falar sobre aquela obra que estamos lendo. Quase um terapeuta freudiano, eu estou em sala mais pra ouvir e guiar a discussão (e iluminar aqui e ali) do que de fato pra falar.

Em ordem decrescente de importância, eis aqui as minhas tarefas como professor de literatura:

1) Iluminar tudo o que já estaria iluminado para uma leitora contemporânea da obra. Pela distância temporal e espacial, muitas vezes a leitora não sabe coisas que o texto não diz porque presume que seriam óbvias. (Por isso, é impossível estudar literatura sem contextualizar a obra em sua cultura e época.)

2) Ensinar um certo tipo de raciocínio literário, como abordar a obra, como lhe fazer perguntas, como formular hipóteses, como ler as entrelinhas, etc, técnicas que são úteis por toda a vida.

3) Corrigir as hipóteses mais absurdas, que em geral estão erradas ou por anacronismo ou ignorância cultural (ver 1), ou por não estarem baseadas em evidências textuais (ver 2).

4) Conhecer a fortuna crítica para poder oferecer às pessoas alunas outras interpretações e leituras daquela obra ao longo dos anos e em outras culturas e, assim, enriquecer a discussão e estimular o debate.

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Prioridades, prioridades

Nossas ações revelam nossas prioridades.

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O Uber, a exploração, o livre-arbítrio

Devemos usar o Uber? As motoristas do Uber estão sendo exploradas? Temos efetivamente livre-arbítrio?

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Como começar a ler uma pessoa autora

Variação de comentário que escuto com frequência:

“Não sei o que o povo vê na Clarice/Guimarães Rosa/Machado/etc. Eu li e achei super chato!”

E respondo:

“Poxa, que incrível. São alguns dos maiores autores de todos os tempos. O que você leu dele?”

Perto do Coração Selvagem/Tutaméia/Helena/etc.”

“Ah, tá explicado.”

Existem obras e obras.

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Como lidar com pessoas-na-fúria

Na medida do possível, tento nunca interagir com pessoas-que-estão-na-fúria.

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O que significa ser um país livre?

Há muito tempo atrás, quando eu ensinava Cultura Brasileira em uma universidade norte-americana, parte da aula incluía explicar como funcionava nosso sistema político.

E comentei que, apesar do mito local de que “os Estados Unidos eram a nação mais livre do mundo”, a partir de um certo nível de liberdade, todas as nações livres eram igualmente livres.

A Austrália é mais livre que a França? A Argentina que o Japão?

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O que é raça?

“Alex, você se acha branco? Negro? Qual é a sua raça?”

Respondo que não me acho nada.

Na maior parte do Brasil, acham que sou branco. No sul, acham que sou negro, mulato. Nos Estados Unidos, acham que sou latino ou hispânico. Na Europa, acham que sou árabe.

Então, o que eu sou depende de onde estou e de quem vê.

O que importa é que, no Sudeste do Brasil, sou tratado como pessoa branca e, por isso, desfruto dos privilégios outorgados às pessoas brancas. Nos Estados Unidos, sou tratado como pessoa latina/hispânica e, por isso, compartilho do tratamento preconceituoso que essa cultura dispensa às pessoas latinas/hispânicas, etc.

E eu, o que eu sou?

Dado que raça, biologicamente falando, de fato, no gene, no DNA, não existe…

Dado que raça é um fenômeno totalmente político, cultural, social, econômico…

Então, eu sou rigorosamente tão branco quanto sou negro, tão hispânico quanto sou árabe.

Não existe isso de “ser uma pessoa branca”, mas existe, e é bem real, ser tratada, vista, percebida e, principalmente, valorizada como pessoa branca.

“Ser uma pessoa branca” é uma ilusão biológica. “Ser tratada como uma pessoa branca” é uma realidade social, politica, econômica.

Então, a resposta é que eu não me acho nada.

Na cidade onde nasci, cresci e moro, no Rio de Janeiro, sou percebido como branco e desfruto dos privilégios de branco.

Então, na prática, para todos os fins e efeitos, sou branco.

Mas se você me pergunta se eu me acho branco, a minha única resposta precisa e sincera é que não me acho nada.

O discurso essencialista (“sou X”) muitas vezes serve apenas para desviar a discussão da realidade como ela é: o que importa é como somos tratadas na entrevista de emprego ou na blitz policial, nessa nossa sociedade tão incrivelmente racista.

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Toda caneca já está quebrada

Foi bom enquanto durou. Tudo é bom enquanto dura. Nada dura.

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O privilégio de ouvir histórias de horror

Ouvir histórias de horror — ao invés de vivê-las — é um baita privilégio.

Não passa um dia sem que eu escute não uma, não duas, mas várias mulheres pedindo ajuda, chorando dores, compartilhando agressões: violências sempre cometidas por homens.

E tem muito, muito pouco que eu possa fazer além de ouvir, abraçar, acolher.

Com o tempo, as histórias de horror vão pesando na minha alma.

Sempre que tenho vontade de puxar a tomada, desligar tudo, sair do Facebook, parar de ler os emails desesperados, penso que o simples fato de eu poder fazer tudo isso é um baita privilégio masculino.

As mulheres que sofrem essas violências que me pesam na alma não têm como desligar o mundo que as oprime.

Então, engulo o meu desespero e vou ver o que posso fazer pra ajudar.

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Quanto custa não pagar contas?

Diz a imagem que ficar adulto é como se perder da mãe no supermercado… pra sempre.

Eu diria que as pessoas que hoje preferem ser adultas são justamente aquelas que aproveitavam o supermercado para fugir da mãe.

Ser criança é querer se perder da mãe no supermercado…. e algum filho duma égua sempre te trazer de volta.

* * *

Todo dia, vejo pessoas reclamando das suas contas a pagar.

E penso que devo ser mesmo todo ao contrário.

Porque eu lembro bem da época em que eu não tinha nenhuma conta no meu nome. Da época em que eu também não tinha nenhuma autonomia sobre meu corpo, minha vida, minha privacidade. Da época em que eu também não tinha nenhuma independência de ir e vir, de decidir o que fazer com meu tempo. Da época em que eu não também não tinha nenhuma liberdade de viajar quando desse vontade, de abrir uma empresa, de casar com a pessoa que eu amava.

Então, cada novo boleto que entra por debaixo da minha porta é um lembrete de que essa época acabou, uma afirmação de que sou uma pessoa humana adulta, uma verdadeira celebração da minha autonomia, da minha independência, da minha liberdade.

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A opressão da higiene

Por que acreditamos em quem nos chama de fedidas e então nos vende sabonete?

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Quem tem medo dos pêlos femininos?

Por que os pêlos corporais femininos incomodam tanto, são tão ofensivos, sujos, antihigiênicos, imorais, obscenos, pervertidos?

(Aliás, menos os pêlos do topo da cabeça, claro: esses são considerados importantíssimos, definidores de feminilidade, dignos de gastos enormes em produtos e serviços, ao ponto que, quando andava com uma amiga de cabeça raspada, ela causava mais surpresa e consternação do que se tivesse arrancado um braço e não apenas pêlos.)

O que nos assusta não são pêlos, é a sexualidade feminina.

Uma mulher com pêlos no corpo é uma primata adulta, madura, pronta para usar e dispor de sua própria sexualidade.

Naturalmente, nossa sociedade outrofóbica não pode tolerar uma liberdade dessas: metade das nossas leis e costumes ancestrais têm como objetivo explícito conter a sexualidade das mulheres.

Não queremos mulheres adultas e sim seres assexuais e impúberes, sem pelos justamente nas áreas onde a existência de pelos indica maturidade, para que possamos nos enganar que, na verdade, não têm sexualidade, não têm desejos, não cagam, não suam, não gozam.

(Naturalmente, quando esses seres impúberes, assexuais e angelicais se dignam a transar conosco, é porque somos a exceção, é porque somos especiais, como não?!)

O tabu dos pêlos corporais femininos só existe pois eles são um lembrete visual e concreto de que as mulheres adultas são primatas que fodem.

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Jesus sem-teto

Homeless Jesus (“Jesus sem-teto”) foi esculpida pelo artista canadense Timothy Schmalz em 2013. (Desde então, vários moldes já foram instalados pelo mundo.)

A estátua representa um mendigo, de cabeça coberta, dormindo em um banco de praça. Dá pra ver que é Jesus pelos estigmas da cruz em seus pés.

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O que merecem as pessoas mentirosas?

Se só as pessoas que não mentem merecessem ajuda… quem sobraria?

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História de um síndico e de um subsíndico

moro em copacabana, em um prédio de dez andares e quarenta quitinetes por andar, construído em 1957.

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Rio e São Paulo, duas arrogantes

Tanto São Paulo quanto o Rio são cidades muito arrogantes. Mas arrogâncias completamente diferentes.

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Espátula

hoje, faleceu o morador do 307. talvez tenha sido ontem. na verdade, foi há três dias.

michelle, que mora no 807, disse que o cheiro de podre estava chegando até lá em cima, subindo pela coluna do banheiro junto com as brigas de casal e o alho refogando.

a polícia chegou mas ninguém queria a responsabilidade de arrombar a porta.

finalmente, arrombaram.

joão, o segurança do prédio, ficou impressionado: disse que tiveram que tirar o corpo do chão com uma enorme espátula: “se tentassem levantar pelos braços, se esfarelava tudo.”

meu prédio tem dez andares, quarenta conjugados por andar, muitas pessoas idosas que moram sozinhas.

joão, o segurança do prédio, é novo aqui: mês que vem, já estará calejado.

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“O Senhor é minha fechadura e ninguém entrará”

Lojinha de produtos católicos.

Rua das Laranjeiras, hoje cedo.

Tento entrar mas porta está trancada.

Moça vem correndo abrir.

Pergunto:

“Estão fechados?”

Ela:

“Deixamos a porta sempre trancada.”

Não resisti:

“Tenha fé em Deus, moça!”

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Camuflagem

Centro do Rio de Janeiro, joalheria.

Uma amiga paulistana acaba de comprar um caríssimo relógio.

Em um delicado ritual, com gestos lentos e compenetrados, a vendedora coloca o relógio em uma caixa de couro, acolchoada por dentro, e, então, em uma belíssima bolsa de papel, com o elegante logotipo da joalheria impresso em alto relevo.