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Rio e São Paulo, duas arrogantes

Tanto São Paulo quanto o Rio são cidades muito arrogantes. Mas arrogâncias completamente diferentes.

Tanto São Paulo quanto o Rio são cidades muito arrogantes. Mas arrogâncias completamente diferentes.

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A arrogância provinciana paulista

A arrogância de São Paulo é uma arrogância provinciana. É a arrogância isolacionista, às vezes separatista, do self-made man que se basta e não precisa de mais ninguém. É a arrogância da província isolada que se virou sempre sozinha, habitada por uma gente dura que não contava com ajuda dos janotas da Corte.

Por isso, São Paulo tende a olhar mais pra dentro do que pra fora.

Basta ver os títulos provincianos de seus jornais: Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo, Diário de S.Paulo, etc.

Basta ver alguns de seus canais de TV aberta onde todos os programas parecem ser sobre o estado, em sotaque paulista, com apresentadores apavorantes falando sobre crimes infindáveis — sempre cometidos em São Paulo, sem o menor esforço de cobrir, noticiar ou se comunicar com o resto do país. (Eu, carioca, me sentia um intruso só de estar assistindo.)

Um movimento anti-imigrantista como o “São Paulo para os paulistas”, nostálgico por um passado de paulistanidade imaculada que nunca existiu, só poderia nascer em uma terra de cultura provinciana, isolacionista e autossuficiente como São Paulo.

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A arrogância imperial carioca

Já a arrogância do Rio de Janeiro é uma arrogância imperial. É a arrogância do príncipe, do nobre, do playboy. É a arrogância de quem se vê como o exemplo, como o criador de tendências, como o infuenciador de costumes. É a arrogância de quem tem orgulho não do que fez, mas do que é. (O Rio tem muitos feitos científicos, empresariais, industriais, mas orgulhar-se deles não faz parte da cultura local.)

A arrogância carioca tem origem em ser uma cidade europeia e imperial, capital do Império Português e, depois, do Brasil, porto de entrada do continente, cidade brasileira mais conhecida no mundo, blá blá blá. Enquanto ninguém olhou para São Paulo durante os 400 anos em que se viraram sozinhos, o carioca se deleitava na atenção de ter todos os olhos do Império sobre si, de se sentir ditando a moda, as gírias, os costumes de todo o Brasil.

Um movimento “Rio de Janeiro para os cariocas” seria completamente inconcebível — não porque o carioca é mais bonzinho que o paulista, mas porque a própria identidade cultural carioca depende desse olhar do outro. (Escuto falar em “Rio para cariocas” e a primeira coisa que penso é na cidade antes da chegada de Dom João em 1808. Quem quer voltar pra lá? Parte da arrogância imperial do Rio é pensar em si mesmo como um dom para a humanidade. “O Rio é do mundo!”, etc.)

Não é coincidência que, enquanto os principais jornais paulistas se voltam para dentro, os cariocas se voltam para fora: O Dia, Jornal do Brasil, O Globo. Esses títulos, bolados em épocas distantes, são reflexos de aspirações culturais profundas e reveladoras, cujos efeitos continuam sendo sentidos até hoje.

Enquanto algumas emissoras de TV aberta se voltavam quase que exclusivamente para São Paulo, a Rede Globo se voltou sempre para fora. Perfeito exemplo da arrogância imperial carioca, a Globo unificou o país como poucas outras instituições da segunda metade do século XX, mas fez isso exportando as gírias e os costumes, o jeito e a moda dos cariocas. (Somente há pouco tempo, a Globo começou a ambientar novelas, gravar alguns telejornais nacionais e filmar o Jô, entre outros, em São Paulo, e foi uma mudança impactante, coisa de sair no jornal.)

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Não conhecer Paris

Existe outra diferença fascinante: Rio e São Paulo são duas das cidades mais interessantes do mundo, mas…

Não conheço nenhum carioca classe média que nunca tenha ido a São Paulo. Todos foram, ao menos na infância, para o Simba Safári, Playcenter, Cidade da Criança. Depois, sempre teve aquela reunião de trabalho, aquela entrevista de emprego ou, no mínimo, aquele show imperdível. Alguns poucos odeiam São Paulo, quase todos dizem que não morariam lá (apesar de muitos acabarem morando), mas a maioria acha que é uma cidade muito legal de visitar, passar o fim de semana, curtir vida noturna, ir ao teatro, etc.

Por outro lado, conheço muitos paulistas que nunca foram ao Rio e nem querem ir. Não tem vivência alguma da cidade, mas acham que é suja, perigosa, decadente. Aliás, é sim. E também é uma das cidades mais lindas do mundo e um dos principais berços da cultura brasileira, de Machado de Assis à Garota de Ipanema, passando pela Rede Globo.

Como disse uma amiga paulistana, é como um francês passar a vida morando a 400 km de Paris e, mesmo que odeie Paris com todos os bons motivos que podem fazer alguém odiar Paris, nunca ter tido a curiosidade de ir lá e ver como é Paris.

Paris vale uma ida à Paris.

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Rio e São Paulo, hoje

Essas tendências históricas que moldam a nossa identidade não têm necessariamente nada a ver (aliás, quase nunca) com o mundo atual.

A provinciana São Paulo de 2018 é uma cidade muito mais cosmopolita do que o imperial Rio de Janeiro. Na heterogênea Sampa, eu vejo tribos e subculturas. Já no homogêneo Rio, todos parecem ser da mesma tribo, com pequenas diferenças entre subúrbio e zona sul ou morro e asfalto. Pequenas mesmo: em São Paulo, dá pra saber o bairro de uma pessoa só pelo sotaque; no Rio, morro e asfalto fazem questão de usar as mesmas gírias.

Hoje, as pessoas vão para São Paulo para ser aquilo que querem ser, punks, barbies ou hipsters. Quando vão pro Rio, é porque querem ser cariocas.

Não é à toa que São Paulo tem a Liberdade e o Bixiga, e o Rio não tem, nem nunca teve, nenhuma comunidade étnica. (O mais próximo disso, como não poderia deixar de ser, é o Portugal Pequeno, mas é um bairro de Niterói, fundado em uma época quando o outro lado da baía era muito mais distante do que hoje.)

São Paulo é uma mescla de cultura e sotaques que contam sua história e definem sua identidade. Se os paulistas deixam cair o “s” plural mais do que a maioria dos brasileiros é provavelmente por causa da forte influência italiano, com seus plurais sem “s”.

Já o Rio é a mais lusitana das cidades brasileiras, ex-capital do Império Português, completamente impermeável a qualquer influência externa de peso, e a que fala o português mais próximo da matriz, chiados e tudo. (Não que isso queira dizer que seja o melhor português, o mais bem falado, etc, mas é, com certeza, ao lado de alguns outros, como o paraense, o português que se mostrou menos suscetível a todas as influências locais e nativas que foram gradualmente distanciando a língua brasileira da lusitana.)

São Paulo já não é mais provinciana e nem autossuficiente (o que seria de São Paulo sem o resto do Brasil?), mas essa identidade ainda molda a visão que a cidade tem de si mesmo e, às vezes, explode em movimentos como “São Paulo para os Paulistas”.

O Rio de Janeiro não é mais imperial, e nem dita mais as modas e as gírias do Brasil, mas continua sendo o porto de entrada no país, sua cidade mais famosa e anfitriã dos Jogos Olímpicos. (Moro em Copacabana e gosto de brincar com os amigos paulistas: “meu bairro é mais conhecido do que sua cidade, mermão!”)

De certo modo, hoje tudo se inverteu: o Rio, quanto mais vai se tornando uma cidade portuguesa provinciana, mais sente a necessidade de ostentar sua antiga arrogância imperial; São Paulo, quanto mais imigrantes recebe e quanto mais cosmopolita se torna, mais sente a necessidade de preservar sua arrogância provinciana autossuficiente.

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“São Paulo é como a morte….”

Nada disso pode ser separado da história recente de ambas as cidades.

São Paulo está em dinâmico processo de expansão há mais de um século, sem dar mostras de parar. Já o Rio vai na contramão e vive um declínio que já dura cinquenta anos.

Por isso, uma das principais características da vida cultural carioca das últimas décadas é uma atração irresistível por São Paulo.

Quando eu era pequeno, todos os filmes, novelas e telejornais eram filmados no Rio. Os voos internacionais chegavam somente por aqui e os pobres paulistas muitas vezes tinham que esperar horas ou trocar de avião para conseguir chegar em casa. Até mesmo o Concorde pousava no Galeão, e o síndico do meu prédio tinha uma estátua em casa, prêmio por ser o passageiro mais frequente do voo Paris-Rio. A Bolsa de Valores do Rio, onde meu pai fez a fortuna que lhe permitiu ser vizinho desse cara, era a maior do país — e hoje nem existe mais. Nem o Concorde, aliás. E nem meu vizinho, que morreu assassinado.

Nas décadas de 80 e 90, poderia ter havido uma coluna no Globo: “empresas que saíram do Rio essa semana”. Perdi a conta de quantos amigos foram morar em São Paulo, felizes ou a contragosto, seja porque suas empresas se mudaram ou porque só lá encontraram bons empregos.

Uma anedota ilustra bem a cooptação:

Eu gostava de dizer que a principal diferença entre São Paulo e Rio era que paulista achava graça no José Simão (rá rá vapt vupt!) da Folha de S.Paulo e o carioca, eu incluso, não conseguia ver qualquer valor nesse homem; já o carioca achava graça no Tutty Vasques, do Jornal do Brasil e da Veja Rio, cujo humor costumava ser impermeável aos paulistas.

Mas aí o tempo passou: o Jornal do Brasil faliu e foi escorraçado pra internet, onde vegeta; o Zé Simão virou articulista da Folha, simbolizando a decadência do jornal; a Veja surtou e virou extrema-direita histérica; e o Tutty, quem diria, assim como a Greta em Irajá, acabou no mais-paulista-impossível Estadão — incrivelmente o único, dentre os grandes veículos, que não passou por sérios transtornos de personalidade nos últimos anos.

E, assim, lá se foi minha analogia que tantos bons serviços me prestou ao longo de vinte anos.

Ou, como vaticinou uma amiga que perdeu o emprego de dez anos porque não quis sair do Rio com sua empresa:

“São Paulo é como a morte, um dia chega.”

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Amor por São Paulo

Muita gente acha que elogiar o Rio significa necessariamente desmerecer São Paulo.

Adoro São Paulo. Ela é tudo que uma grande cidade tem que ser. Ela é o motivo pelo qual nos juntamos em metrópoles. Ela é eclética, livre, louca, hospitaleira. Já morei e trabalhei em São Paulo, onde namorei uma linda paulistana. O lugar onde me sinto melhor no mundo é em São Paulo (Praça Roosevelt, não pergunte, sou de teatro, fazer o quê?). Teve época em que até pensei: meus lançamentos fazem mais sucesso, tenho mais amigos, fiz mais consultorias, ganhei mais dinheiro, transei com mais mulheres, vendi mais livros, tudo mais em São Paulo do que no Rio. O que é mesmo que estou fazendo aqui?

(Aí dei uma volta pela Lagoa e lembrei.)

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Escolher o Rio

Cresci cercado de cariocas por adoção e por adoração. Um professor que veio do Arizona de ônibus, se apaixonou e ficou. Um sueco que passou um carnaval e nunca nem voltou, mandou o pai encaixotar o quarto. Um executivo italiano que preferiu se demitir quando a empresa queria mandá-lo de volta à matriz.

Eu invejava um pouco essas histórias, sabe? Porque essas pessoas puderam fazer uma coisa que eu nunca pude.

Então, em 2005, recém-saído do meu casamento e meio perdido, surgiu a chance de morar em Nova Orleans, uma das cidades mais interessantes do mundo, e eu fui. Mil aventuras depois, em 2011, finalmente pude fazer o que tanto invejava. Quando todas as forças da vida e caminhos da carreira me impeliam a ficar nos Estados Unidos, eu voltei.

Rio, minha cidade querida, nesse dia em que completa 453 anos, saiba que não estou mais aqui por um mero acaso do destino, mas porque te escolhi.

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Originalmente publicado no PapodeHomem em 2012.

Publicado em forma de livro no The Routledge Intermediate Brazilian Portuguese Reader, editado pro John Whitlam. Londres: Routledge, 2014.

Revisado, 2018.

Ilustração: Felipe Branco.

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