Variação de comentário que escuto com frequência:
“Não sei o que o povo vê na Clarice/Guimarães Rosa/Machado/etc. Eu li e achei super chato!”
E respondo:
“Poxa, que incrível. São alguns dos maiores autores de todos os tempos. O que você leu dele?”
“Perto do Coração Selvagem/Tutaméia/Helena/etc.”
“Ah, tá explicado.”
Existem obras e obras.
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Pra começar, com raras e honrosas exceções, uma pessoa autora é maior que uma única obra.
Então, se você só leu uma obra de uma pessoa autora, então, você conhece uma obra daquela pessoa autora. Para podermos fazer afirmações abalizadas sobre “Machado é assim”, “Clarice é assado”, é preciso ler pelo menos algumas obras, de diferentes fases, etc.
(Senão, é como aquela pessoa que vai a Paris, não sai da Champs-Elysees, e volta dizendo que “amou a França!”. Amiga, você não conheceu nem Paris, quem dirá a França.)
Como regra pessoal minha, quando incluo um nome na minha lista de pessoas autoras favoritas, são sempre pessoas das quais li vários livros — senão eu não teria como saber se gosto realmente dela como autora ou se só gostei daquela obra.
Laclos e Lampedusa publicaram somente um romance cada um (As relações perigosas e O leopardo), obras brilhantes que resumem e representam toda uma época, mas eu não teria como dizer que são grandes autores, ou que são meus autores preferidos, porque a amostra é muito pequena.
(Outras grandes obras filhas-únicas: O morro dos ventos uivantes, A princesa de Cleves.)
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Vamos usar nossas três maiores pessoas autoras brasileiras como exemplo.
Quando nós, enquanto cultura, em conversa de bar e resenha de jornal, falamos de Guimarães Rosa, estamos falando fundamentalmente do Guimarães Rosa de Grande Sertão Veredas.
Por ser um livro intimidador, uma pessoa talvez prefira começar a ler a obra do Rosa por Tutaméia, livro de contos curtíssimos de cerca de três páginas.
O problema é:
1) Tutaméia é geralmente considerado um Rosa menor (eu acho chatérrimo; tem todas as dificuldades de Grande Sertão Veredas e nenhuma das facilidades);
2) Você vai estar entrando em uma conversa de surdos com sua própria cultura, pois, enquanto nós continuaremos falando do Rosa de Grande Sertão Veredas, você estará falando do Rosa de Tutaméia.
Não é que você não possa gostar mais das obras ditas menores de uma autora.
(Nas obras de Dostoievski e Turgeniev, por exemplo, me agradam muito mais livros ditos menores, como O jogador, Uma história lamentável, Memórias do subsolo, Primeiro amor, Asia, Cadernos de um caçador, Torrentes de primavera, do que as obras-primas mais badaladas Irmãos Karamazovi, Crime e Castigo e Pais e Filhos.)
Mas, por uma questão de método, para você não correr o risco de sentir antipatia por um grande autora só porque começou por uma obra notadamente inferior, recomendo pesquisar qual de suas obras é considerada sua obra-prima e começar por ela.
Na obra de Guimarães Rosa, por exemplo, Grande Sertão Veredas é único. As obras anteriores Sagarana e Corpo de Baile me parecem boas, mas basicamente boas enquanto treino pra Grande Sertão Veredas, e suas obras posteriores, Estas estórias e Tutaméia sinceramente me parecem anticlimáticas.
Vamos falar de Clarice. A hora da estrela e Água viva estão entre as coisas mais sublimes jamais escritas em português, com A paixão segundo G.H. só um pouquinho abaixo. Quando nós, enquanto cultura, falamos de Clarice, estamos falando desses livros — e também, em alguma medida, da Clarice dos contos de Felicidade Clandestina e Laços de Família.
Mas a verdade é que Clarice experimentou muito, e nem sempre deu certo. (Essa é uma marca das grandes autoras experimentais.) Apesar de amar A hora da estrela, Água viva e A paixão segundo G.H., entendo que não são livros para qualquer pessoa. Não existe nada, nada de convencional neles. (O primeiro é o mais normalzinho, mas não muito; o segundo é uma carta de término escrita por uma pintora, sem qualquer tipo de enredo e em uma linguagem única e quase indecifrável; no terceiro, de duzentas e tantas páginas, todo o enredo é uma mulher entrando no quarto da empregada, vendo uma barata morta no chão e — spoiler alert — comendo a barata.)
O problema é que, em minha sincera opinião, o resto da obra de Clarice, justamente por constar de experiências que nem sempre deram certo, é bastante inferior. Se você leu os primeiros romances de Clarice, Perto do coração selvagem, A maçã e A cidade sitiada, escritos quando ela ainda era muito jovem e estava encontrando sua voz, talvez até você tenha gostado (eu odiei, meu Deus) mas, de qualquer modo, inferiores ou não, quando falamos de Clarice, não é sobre a autora desses três romances que estamos falando.
Então, no caso de Clarice, se a pessoa leitora for aventureira, recomendaria começar pela Hora da Estrela; se não for, pelos contos de Felicidade Clandestina e Laços de Família, que, apesar de brilhantes, são a coisa mais convencional que Clarice escreveu.
Por fim, Machado.
Eu, como escritor e leitor voraz, já li a obra (quase) completa de muitas autoras. E posso atestar que em pouquíssimos casos vale a pena. Quase sempre, existem alguns livros brilhantes, mas o grosso são sempre trabalhos menores, da juventude ou da senilidade, que ou preparam o terreno para a grande obra ou a repetem sem o mesmo brilho.
(Kafka e Tchecov são minhas duas pessoas autoras favoritas. Como ambos morreram jovens, não deixaram obras da senilidade, mas seus primeiros trabalhos são fracos, fracos, e não chegam aos pés da sua obra posterior.)
Machado, para mim, é a exceção.
(Aviso que talvez seja bairrismo. Machado é o escritor mais carioca de todos os tempos, um homem que saiu da cidade somente uma vez na vida, e só para ir até ali a serra e voltar. Eu não sei se consigo separar meu amor pelo Rio com meu amor por Machado, mas vá lá.)
No caso do Machado, a divisão entre “obras boas” e “obras ruins” é a mais famosa. Mesmo quem nunca ouviu falar das distinções que fiz na obra de Rosa e Clarice provavelmente “sabe” que Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas são os romances realistas, bons, fodões do Machado, e que os seus primeiros romances, Helena, Iaiá Garcia, etc, são românticos, bobos, inferiores.
Eu discordo violentamente, mas o conselho se mantém. Quando nossa cultura fala de Machado, está falando do Machado de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. Então, se você nunca leu Machado, melhor começar por esses.
Ok, concordo que esses dois são os melhores e que, só eles, já bastariam para colocar o Brasil no mapa da literatura mundial, mas eu mantenho que toda a obra do Machado é brilhante. Romances geniais como A mão e a luva, por exemplo, só parecem inferiores se comparados a Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. Se Machado tivesse morrido na véspera de escrever Memórias póstumas de Brás Cubas, ainda assim seria nosso maior escritor.
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Enfim, esse é o conselho:
O melhor modo de entrar na obra de uma pessoa autora é por sua obra-prima.
Depois, se gostar, você vai explorando as obras ditas menores. Talvez uma ou outra até te agrade mais que a obra-prima, mas, na grande maioria dos casos, você provavelmente concordará com a opinião corrente das eras.