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Quem tem medo dos pêlos femininos?

O que nos assusta não são pêlos em axilas: é a sexualidade feminina.

Por que os pêlos corporais femininos incomodam tanto, são tão ofensivos, sujos, antihigiênicos, imorais, obscenos, pervertidos?

(Aliás, menos os pêlos do topo da cabeça, claro: esses são considerados importantíssimos, definidores de feminilidade, dignos de gastos enormes em produtos e serviços, ao ponto que, quando andava com uma amiga de cabeça raspada, ela causava mais surpresa e consternação do que se tivesse arrancado um braço e não apenas pêlos.)

O que nos assusta não são pêlos, é a sexualidade feminina.

Uma mulher com pêlos no corpo é uma primata adulta, madura, pronta para usar e dispor de sua própria sexualidade.

Naturalmente, nossa sociedade outrofóbica não pode tolerar uma liberdade dessas: metade das nossas leis e costumes ancestrais têm como objetivo explícito conter a sexualidade das mulheres.

Não queremos mulheres adultas e sim seres assexuais e impúberes, sem pelos justamente nas áreas onde a existência de pelos indica maturidade, para que possamos nos enganar que, na verdade, não têm sexualidade, não têm desejos, não cagam, não suam, não gozam.

(Naturalmente, quando esses seres impúberes, assexuais e angelicais se dignam a transar conosco, é porque somos a exceção, é porque somos especiais, como não?!)

O tabu dos pêlos corporais femininos só existe pois eles são um lembrete visual e concreto de que as mulheres adultas são primatas que fodem.

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Fim. O texto acabou.

Mas, como é um texto antigo, abaixo vem alguns pós-escritos que respondem a comentários que (tristemente) sempre surgem.

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A coisa mais engraçada de escrever textos claramente políticos e impessoais dizendo que todas mulheres têm direito de serem peludas (tanto quanto os homens, aliás!) é que as pessoas já começam a tirar conclusões sobre o meu gosto pessoal e dizer que eu tenho fetiche por pelos.

Claro! Afinal, as pessoas só legislam em causa própria, né? O que mais, além de uma louca tara por pêlos, poderia justificar que eu defendesse algo tão nojento?!

Meus gostos pessoais não tem, nem deveriam ter, nada a ver com essa questão e é triste que tenham que ser mencionados, mas vamos lá.

 

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Minha relação com os pêlos é a mesma que tenho com os cotovelos.

Tenho tesão em cotovelo? Não, mal reparo em cotovelos.

Tenho nojinho de cotovelo? Também não, motivos idem.

Mas o cotovelo é parte integral desse ser holístico chamado pessoa humana.

Eu, como tenho tesão em gente, gosto de cotovelo — porque cotovelo faz parte do pacote “gente”.

Se visse uma pessoa sem cotovelo, aquilo seria brochante ou eliminatório? Não, mas seria estranho.

Afinal, a pessoa humana é um bicho que naturalmente vem com cotovelo!

Não é preciso ter tesão por cotovelos para considerar estranho a falta deles.

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Mas não tem como dessassociar o hábito da depilação de uma certa pedofilia instituticional da nossa sociedade.

Pêlo corporal é uma parte integrante da pessoa humana adulta: simbolicamente, o nascimento desses pêlos corporais, especialmente os pubianos, indica que estamos deixando de ser crianças

Então, sempre que vemos uma parte do corpo que, em uma pessoa adulta, deveria estar peluda, mas que está depilada…

… é impossível não pensar, nem que em nível inconsciente, que estamos diante de uma criança.

Não tenho nenhum tesão especial em virilhas peludas, mas uma virilha depilada me parece uma virilha de criança e, Deus me livre, essa é uma associação mental completamente desconfortável e literalmente brochante.

Minha maior tara é em gente adulta.

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Sim, eu sei que, de acordo com a nova reforma ortográfica, “pêlos” não tem mais acento. Se você se sentiu impelido a comentar sobre isso, recomendo esse texto.

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Por fim, dentre os muitos tristes comentários que esse texto rotineiramente recebe, o mais triste foi o seguinte:

“O autor tem razão, mulher que não se depila parece uma primata mesmo!”

Fiquei sem graça de dizer que ele, ao fazer esses comentários, também parece um primata. E Einstein, ao criar a teoria da relatividade, Serena Williams, ao ganhar Roland Garros, Gandhi, ao conseguir a independência da Índia… todos fizeram isso parecendo (e, inclusive, sendo) primatas.

Uma resposta em “Quem tem medo dos pêlos femininos?”

Muito interessante a sua abordagem. Em uma sociedade que vive a síndrome de Peter pan, ter pelos pode sinaliza a nossa incapacidade de nos mantermos crianças para sempre. São lembretes concretos.

Não fiquei pensando no repúdio aos pelos dos outros, mas no movimento frenético que vemos, inclusive dos homens. A depilação é algo cada vez mais importante e ocupa espaços nos orçamentos das famílias. A depilação permanente, as técnicas que apresentam resultados mais duradouros…

“por uma questão estética”, “por uma questão prática”, “por questões de aerodinâmica”, …

motivações que cada vez mais usamos para perseguir a eliminação dos pelos.

Me pergunto se não estaríamos vivendo coletivamente a síndrome do Peter Pan…

Discutimos que a adolescência está mais longa, defendemos que é natura postergar o ingresso na vida adulta. Permanecemos mais tempo na casa de nossos pais e nos aventuramos a seguir a vida com posturas que denotam nossa imaturidade diante das responsabilidades exigidas das pessoas humanas adultas.

Acho que, de certa forma, repudiar os pelos alheios pode significar a negação ao direito do outro de ser adulto, o que poderia nos trazer a responsabilidade de sermos adultos também.

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