Categoria: textos
a entropia e o tempo
a entropia aumenta com o tempo ou a entropia É o tempo?
aprendemos na escola que o universo favorece à entropia (é mais fácil quebrar uma caneca do que fazer uma caneca) e que tudo caminha em direção à própria dissolução.
ou seja, aprendemos que a entropia aumenta com o tempo.
entretanto, existe outra maneira de ver a coisa: talvez a entropia SEJA o tempo.
pois, afinal, só conseguimos perceber ou medir o tempo através da entropia que percebemos no universo. não há como dissociar entropia do tempo.
em outras palavras, sabemos que o tempo está passando porque podemos ver a rosa progressivamente murchando dia a dia.
mas talvez não seja a entropia da rosa que aumenta com o tempo, mas sim que é o próprio tempo a entropia que destroi a rosa.
ficou claro? (se ficou, então você não entendeu nada.)
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sobre isso: four reasons you shouldn’t exist
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alguns textos entrópicos:
cajuína // eu, que vou morrer, os saúdo, que também vão morrer // você não tem tempo
história de uma caixa de farmácia
farmácia, tarde da noite.
vou até o balcão no fundo, onde o único atendente está conferindo a receita de um freguês. eu espero.
a senhora que estava no caixa percebe e vem correndo, ansiosa, como se me atender fosse a coisa mais legal do mundo, e pergunta o que estou procurando.
plasil, eu digo.
ela faz uma cara de que nunca ouviu falar daquele nome, mas vai procurar pela farmácia mesmo assim. daqui a pouco, ela retorna, dessa vez com uma nova expressão no rosto: sinto tanto, mas tanto por não ter podido ajudá-lo. jê suí dessolê!
e eu penso: plasil é um remédio muito comum, como pode não conhecer?
dentro de mim, sinto os primeiros tremores do velho alex acordando, o alex-godzilla, o alex-mr-hyde, o alex que dizia coisas como, “cara, eu aguento tudo, só não tolero gente incompetente!”
verdadeiro diabinho, o alex-que-eu-era sabe exatamente o que eu deveria dizer para a atendente da farmácia:
“a senhora poderia ir buscar alguém que saiba o que está fazendo, por favor?”
mas o velho alex era um babaca e eu não faço mais o que ele manda.
sorrio para a atendente e agradeço muito. continuo olhando coisas aleatórias pela farmácia até ela se afastar um pouco e, então, sem que ela escute, pergunto ao moço que está atrás do balcão:
por favor, plasil é aí dentro ou cá fora?
ocupado e ranzinza, ele faz um gesto impaciente na minha direção e grita:
dona maria, PLASIL!
ela se aproxima novamente:
eu já procurei, não tem.
ele aumenta o tom:
tem sim, caceta. tá ALI!
imperturbável e sorridente, dona maria se abaixa, encontra o plasil e entrega na minha mão:
aqui está, filho.
e ela me leva até o caixa, onde passa a minha compra.
* * *
aqui dentro de mim, no meu ó-tão-incrível ego, eu continuo sendo aquele horrível menino-criado-feito-um-reizinho cujo primeiro instinto teria sido destratar a dona maria.
quase sempre, consigo me controlar.
às vezes, falo coisas horríveis.
é como o alcoolismo: nunca se está realmente curado.
praticar ser a pessoa-que-queremos-ser nunca é fácil.
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na saída da farmácia, seguro as duas mãos de dona maria e digo:
obrigado, viu? a senhora foi muito, muito gentil.
quais comentários responder?
de repente, a Outra Significativa levanta a cabeça do seu latptop e pergunta:
“me diz se eu devo responder isso aqui.”
e eu, na lata: “não responde.”
“mas você nem viu.”
“não responde. vai por mim.”
mas ela veio e me mostrou. um babaca criticando uma foto linda só porque a modelo tinha cabelo nas pernas. e eu suspirei:
“ok, responde ao babaca. mas, por favor, da próxima vez, não me mostra o comentário. assim a minha opinião de “não responde” pode ser 100% isenta!”
nada pode ser mais mesquinho do que dizer “olha, tenho uma coisa legal aqui mas só te mostro se você pagar”.
e, na nossa sociedade capitalista, nada poderia ser mais tristemente comum.
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todos os meus textos estão disponíveis gratuitamente na internet, para quem quiser ler, reler, linkar, distribuir.
todos os meus livros circulam gratuitamente, na forma de ebooks.
na revista fórum, escrevo gratuitamente, sem ganhar nada, por ativismo e por militância, porque a revista é importante para as causas que apóio.
todos os meus encontros têm a opção de entrar gratuitamente: paga somente quem quer, quem gosta de mim, quem acompanha meu trabalho, quem deseja colaborar.
ninguém precisa pagar para usufruir dos frutos do meu trabalho.
para mim, isso é o mais importante. senão, não faria sentido.
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praticar arte de forma mais inclusiva e, ao mesmo tempo, ganhar a vida como artista é um dos grandes dilemas da arte contemporânea.
publicar minha literatura de graça na internet, sempre disponível para todos, e ganhar dinheiro vendendo esse mesmo conteúdo na forma de livros e encontros para quem pode e quer pagar… essa me parece ser uma das formas mais inclusivas de fazer literatura no brasil.
é o que posso fazer.
***
hoje, consigo ganhar a vida exclusivamente como escritor, graças à generosidade de cerca de 200 mecenas, entre elas 55 assinantes-pagantes, que contribuem com doações em dinheiro para a minha produção.
são elas que permitem que eu dê o meu trabalho de graça para quem deseja usufruir dele e não pode pagar.
muito, muito obrigado.
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se você gosta do meu trabalho, e se não for fazer falta no leitinho das crianças, por favor, considere fazer uma doação.
se quer só acompanhar os meus textos, ler prévias, saber das novidades, assine meu newsletter (não custa nada!)
uma camisa “100% branco” é de profundo mau-gosto, ao mostrar uma pessoa privilegiada celebrando seu privilégio.
uma camisa “100% negro”, por outro lado, é a celebração de uma identidade marginalizada tentando se afirmar contra todas as desvantagens inerentes no sistema.
existe uma enorme diferença.
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a partir de agora, quando alguém vier me falar de racismo reverso, vou mostrar esse vídeo. tem legendas em português.
eu: gargalhada feminina. batidas rápidas no han simbolizando o começo iminente do zazen. alho refogando. zíper abrindo. ondas quebrando. gemidos de gozo. criança brincando. zumbido de ar-condicionado começando a funcionar. dois sapatos caindo no chão, lentamente, um depois do outro. o apito do sorveteiro que passava pela minha casa. passos descalços no chão frio. “eu te amo, alexandre.” o rabo da capitu batendo na máquina de lavar enquanto estou abrindo a porta de casa. saltos altos estalando no mármore. máquina de escrever elétrica. “ó o biscoito globo, ó o mate leão.” pisada forte de mulher decidida. apito do recreio. pernas femininas, vestidas de couro ou látex, roçando uma contra a outra enquanto andam. o porteiro quando diz: “tem pacote pra você, seu alex.” suspiro saciado de prazer. gemidinhos da capitu sonhando. o sino do jikidô simbolizando o fim do zazen.
ela: não. eu quis dizer de música.
eu: ah.
aquele prazer em reclamar
festival de teatro. por coincidência, sento ao lado da mesma senhora duas vezes.
oi, você não estava ao meu lado na peça tal?
sim, meu filho. que coincidência!
começamos a conversar sobre a peça anterior. ela disse que gostou muito de tudo. o único problema foi o som.
não consegui ouvir nada! veja só você que absurdo!
sim, confesso que me incomodou um pouco no começo, mas rapidamente a gente acostuma o ouvido, né? além disso, — era um festival internacional e a peça tinha legendas — quando eu achava que tinha perdido algo, sempre dava pra conferir o texto. e a montagem, o que a senhora achou?
montagem primorosa, mas esse som, nossa senhora! tinha que ter uma acústica melhor!
bem, gostei muito dos atores…
eu também. são ótimos. pena que não consegui ouvir nada, né? uma peça dessas, de nível internacional, jamais poderia ser encenada numa tenda ao ar livre! o som vai reverberar onde?
sim, claro, mas a senhora reparou na qualidade do texto? as idas e vindas temporais foram muito bem costuradas…
essa companhia é primorosa, meu filho. é o melhor texto teatral do brasil. por isso é imperdoável serem tão levianos com o som. qualquer um saberia que não se pode encenar uma peça ao ar livre a cinquenta metros do cruzamento mais movimentado da cidade, às seis da tarde! a cada buzina que tocava, a cada ônibus que passava, eram diálogos e diálogos que a gente não ouvia.
a conversa foi me deixando tristíssimo. eu queria pegar aquela senhora no colo e, de algum modo, salvá-la de si mesma, mas já aprendi que não dá pra salvar ninguém. especialmente de si mesma.
felizmente, soou a campainha e começou mais uma peça. linda. sensacional. da qual só lembro coisas boas.
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tive uma namorada querida que se dizia cidadã consciente.
ligava pra fábrica do pãozinho e ficava meia hora descascando a moça do atendimento porque tinham vindo sete pães ao invés de oito. mandava sms pra administração do metrô pra avisar que o vagão tal fez uma parada muito brusca. chamava o gerente do mercado pra reclamar que depois das dez da noite nunca tinha ninguém pra cortar o presunto.
às vezes, apontava o dedo na minha cara, ressaltava minha dita passividade e acusava:
é por causa de gente como você que o brasil está assim!
e eu, na época, não dizia nada. porque a amava. porque evito brigar com gente que gosta de briga. e porque, no fundo, desconfiava que talvez pudesse ter razão.
hoje, muitos anos depois, e amando-a como ainda amo todo mundo que já amei, eu diria, com um pouco de tristeza, algum cansaço e um carinho imenso:
não, meu amor. é por causa de gente como você que o mundo está assim.
a boneca de sal
para quem está muito preocupada com sua própria individualidade, em não seguir os outros, em não ser só mais uma, em decifrar seus próprios dilemas existenciais, e em toda essa infindável masturbação mental, sempre recomendo a história da boneca de sal.

era uma vez uma boneca de sal. após peregrinar por terras áridas, descobriu o mar e não conseguiu comprendê-lo. perguntou ao mar: “quem é você?”
e o mar respondeu: “sou o mar.”
“mas o que é o mar?”
e o mar respondeu: “o mar sou eu.”
“não entendo”, disse a boneca de sal, “mas gostaria muito de entender. como faço?”
o mar respondeu: “encoste em mim.”
então, a boneca de sal timidamente encostou no mar com as pontas dos dedos do pé. sentiu que começava a entender mas também sentiu que acabara de perder o pé, dissolvido na água.
“mar, o que você fez?!”
e o mar respondeu:
“eu te dei um pouco de entendimento e você me deu um pouco de você. para entender tudo, é necessário dar tudo.”
ansiosa pelo conhecimento, mas também com medo, a boneca de sal começou a entrar no mar. quanto mais entrava, e quanto mais se dissolvia, mais compreendia a enormidade do mar e da natureza, mas ainda faltava alguma coisa:
“afinal, o que é o mar?”
então, foi coberta por uma onda. em seu último momento de consciência individual, antes de diluir-se completamente na água, a boneca ainda conseguiu dizer:
“o mar… o mar sou eu!”
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a história pode ter várias mensagens. uma delas é aprender a não fazer perguntas idiotas. outra, que todo conhecimento tem um custo. também outra, que a verdadeira compreensão só pode se dar de dentro. ou, melhor, que só saindo de si mesma, só através do desapego, é possível uma verdadeira compreensão do outro, do universo, de qualquer coisa.
meu texto acima foi adaptado das versões do frei leonardo boff e do padre jesuíta anthony de mello. apesar das duas fontes cristãs, a história me parece profundamente budista.
e me fez recordar a historinha abaixo.
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depois de um concerto, a fã aborda a pianista e diz:
“eu daria minha vida para tocar tão bem assim.”
e ela responde, simplesmente:
“eu dei.”
hoje de manhã, chorei
o encontro “as prisões”, em belém, foi com certeza o mais esquentado e exaltado, mas também o mais aberto e mais emocionante.
nunca vi tantas participantes a beira das lágrimas. nunca tantas participantes se abrirem tanto, se exporem tanto, se sentirem tão livres para compartilhar e contribuir.
hoje de manhã, lendo os depoimentos das pessoas participantes, agarrei a Outra Significativa pela cintura e comecei a chorar.
fui durante muito tempo uma pessoa muito ruim e muito egoísta. provavelmente ainda sou.
não sinto culpa dos pecados passados. culpa nao faz sentido. culpa nao resolve nada.
mas sinto sim uma obrigação de reequilibrar a balança. de devolver um pouco do que recebi. de passar adiante as graças que usufruí.
então, chorei ao ver o impacto das minhas palavras em vocês. ao ver que estou ajudando minimamente.
sem querer salvá-los. sem querer carregá-los. sem querer dar respostas.
só mostrando um jeito diferente de pensar. só dando uma pequena ajuda. como tantas pequenas ajudas que recebi e nunca agradeci.
e que, agora, passo adiante.
muito obrigado.
prisão narcisismo
no encontro as prisões, passamos o dia inteiro conversando sobre todas essas bolas de ferro mentais que arrastamos pela vida. as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido. enfim, as prisões.
a última, e a mais importante, a prisão sem a qual toda a discussão anterior não teria sentido, é a prisão narcisismo.
afinal, a maior de todas as prisões somos nós mesmos. nós e nosso imenso narcissismo. sempre só olhando para os nossos umbigos, para os nossos ó-tão-importantes problemas.
abaixo, alguns textos que desenvolvem o conteúdo da prisão narcisismo. são alguns de meus textos mais importantes:
eu não sei o que está acontecendo na líbia // zazen // uma caneca // somos todos fingidores // paradoxo de narciso // cajuína // vou mudar de vida… mas não hoje // o mal é a falta de atenção // a solidão de narciso
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para ajudar em nossos esforços para sermos menos narcissistas, eu proponho os exercícios de empatia:
1. praticar um olhar generoso // 2. dar-se conta das pessoas // 3. ver na sua totalidade // 4. ouvir com atenção plena // 5. cultivar o não-conhecimento // 6. exercer a não-opinião // 7. não ser a constante // 8. colocar-se em outra pessoa // 9. escolher agir com empatia // 10. visualizar o privilégio
como funciona o privilégio
um filme só sobre homens é um filme.
um filme só sobre mulheres é um filme feminino.
um ensaio fotográfico só de mulheres brancas é um ensaio de mulheres.
um ensaio fotográfico só de mulheres negras é um ensaio negro.
um romance sobre um casal hétero é um romance.
um romance sobre um casal homossexual é um romance gay.
quantas vezes não somos nós mesmas, na nossa fala e nas nossas ações, a perpetuar esse tipo de normatização tirânica?
Listinhas literárias
Pessoas autoras vivas favoritas:
Alexievich, Houellebecq, Lobo Antunes.
Autoras mulheres favoritas:
Alexievich, Brontë, Chopin, Morrison, Murdoch, Woolf, La Fayette, Weil, Lispector.
Livros preferidos de todos os tempos:
Bíblia, Declínio e queda do Império Romano, Ilíada
Melhores romances escritos nas Américas no século XIX:
Cecilia Valdés, Dom Casmurro, Moby Dick.
Livros para entender o Brasil:
Casa grande & senzala, Quarto de despejo, Os sertões.
Pessoas autoras russas fundamentais que não são nem Tolstoi, nem Dostoievski, nem Tchecov:
Turgeniev, Gorki, Gogol.
Melhores romances brasileiros:
Dom Casmurro, Grande sertão: veredas, Hora da estrela, Água viva.
Melhor romanção romântico do séc.XIX:
Os miseráveis, de Hugo.
Melhor romanção realista do séc.XIX:
Fortunata y Jacinta, de Galdós.
Romanções que ainda pretendo ler ou terminar de ler:
Ulisses, Montanha mágica, Homem sem qualidades, Em busca do tempo perdido, Tristam Shandy, Eneida, Ana Karenina, Fivina comédia.
Melhor best-seller internacional brasileiro que as pessoas brasileiras insistem em ignorar:
Quarto de despejo, Jesus.
Melhores pessoas historiadoras:
Fraginals, Freyre, Gibbon, Thompson.
Três pessoas poetas essenciais:
Whitman, Whitman, Whitman.
Melhores romances apesar do final frouxo:
Lord Jim, Morro dos ventos uivantes, Crônica da casa assassinada.
Melhores obras inacabadas:
O castelo, O processo, O romance da pedra do reino, Eneida, O cemitério dos vivos.
Melhor pessoa autora em língua portuguesa, todos os tempos:
Lispector.
Melhor grupo para ir tomar uns gorós em Viena:
Freud, Schnitzler, Zweig.
Melhores contistas:
Borges, Kafka, Machado, Maupassant, Tchecov.
Melhor romance pós-moderno escrito antes da pós-modernidade:
Manuscrito encontrado em Saragoça, de Potocki.
Melhor morte da literatura:
Capitu, em Dom Casmurro.
Melhores livros da Bíblia:
Gênesis, Samuel/Reis, Eclesiastes, Jó, Apocalipse de Esdras.
Melhores autores hermanos:
Borges, José Hernández, Sábato, Saer.
Melhores personagens de séries de literatura de entretenimento:
Alatriste, Fletch, Lupin, Wolfe.
Melhores autores claramente podólatras:
José de Alencar, Dostoievski, Kafka, Antonio Torres, Edmund Wilson.
Melhores obras nas quais rigorosamente nada acontece:
O jardim das cerejeiras, Princesa de cleves, Paixão segundo G. H.
Melhores mulheres malvadas da literatura:
Ayesha (Ela, de Haggard), Cathy (A leste do éden, de Steinbeck), Milady (Três mosqueteiros, de Dumas), Jadis, a feiticeira branca (Leão, feiticeira, guarda-roupa, Lewis), Marquesa de Merteuil (Relações perigosas, Laclos), Xenia (Noiva ladra, Atwood).
Melhor livro de não-ficção no qual não se pode confiar em nada:
Peregrinação, de Mendes Pinto.
Melhor final de romance:
As últimas sessenta páginas de Moby Dick.
Melhor romance chato:
Moby Dick.
Melhor livro sobre pessoas pobres escrito por burguesinho rico:
Memórias de um caçador, de Turgueniev.
Meu irmão de coração:
Agostinho de Hipona.
Livro que eu tenho mais vergonha de gostar:
A nascente, de Rand.
Minha deusa-guia mor:
Weil.
turismo na favela
de uns tempos pra cá, virou moda: turistas vêm ao rio e não querem mais conhecer o corcovado ou o pão de açúcar, mas sim a favela da rocinha e do vidigal. estão as pessoas gringas se aproveitando das faveladas? ou são as pessoas faveladas que estão cambalachando as gringas? o turismo estimula o progresso das favelas ou garante que nunca saiam da mesma estagnação?
o pós-turista
o turismo nas favelas é uma faceta no novo “pós-turismo”.
agora que pessoas de poder aquisitivo cada vez mais baixo já podem visitar os destinos turísticos tradicionais (a classe média sofre com esses pobretões na fila da disney!), as novas pós-turistas, para se distanciar da ralé e reestabelecer a distância original, precisam buscar novas experiências turísticas, mais inusitadas, mais interativas, mais aventureiras, indo a lugares que seriam a antítese do antigo turismo, localidades antes marginais e agora reinventadas e reapropriadas.
em outras palavras, com tantas pessoas pobres agora lotando gallerie laffayette, em paris, suas antigas frequentadoras hoje fazem safari tours em favelas.
a indústria do turismo classifica a pobreza como exótica, a transforma em mercadoria e a vende para turistas que queiram participar dessa “economia de sensações”, onde o que compram é justamente a sensação voyeurítica de poder vivenciar a pobreza e a miséria sem precisar, para isso, serem pobres e miseráveis.
o capitalismo celebra toda a diferença que seja capaz de mercantilizar.
turismo da miséria: prós e contras
eu sou do rio, morei por seis anos em nova orleans e faço pesquisas em havana. são três cidades turísticas (e lindas, diga-se de passagem) onde se faz esse “turismo da pobreza”.
no rio, são as favelas. em nova orleans, é a destruição causada pelo furacão katrina. em havana, são os prédios em ruínas. sempre cercados de belgas bem alimentados, calçando birkenstocks e tirando fotos com máquinas cujo valor alimentaria uma família local.
isso é bom?
para defensores da prática, ela tem as seguintes vantagens:
- melhorar o desenvolvimento econômico da região;
- conscientizar turistas;
- aumentar a autoestima da população;
- forjar lideranças locais;
- compartilhar recursos e conhecimento entre pessoas que não teriam se encontrado se não fosse o turismo.
para quem está contra, existiriam dois grandes problemas:
- os benefícios gerados vão em grande parte para as pessoas proprietárias das agências e não revertem em melhorias e investimentos nas comunidades;
- mais que conscientização e mobilização social, essas visitas gerariam um certo voyeurismo diante da pobreza e do sofrimento.
quem é a turista da miséria?
em seu livro gringo na laje, a socióloga bianca freire-medeiros traçou um interessante estudo do turismo na favela da rocinha, falando com moradoras, turistas, guias de passeio e proprietárias de agência.
segundo suas pesquisas, a principal característica dessa turista seria sua ansiedade de se diferenciar:
- das moradores; afinal, o turismo na favela não deixa de ser uma maneira de darem mais valor aos confortos materiais de casa.
- das turistas convencionais, que só vão aos pontos turísticos previsíveis e jamais teriam coragem de encarar uma favela.
- das turistas voyeurs e pouco engajadas, que visitam as favelas do jeito errado, como abutres, sem contribuir, sem ajudar, etc.
- da elite local, preconceituosa e com medo de conhecer sua própria cidade.
mais do que tudo, essas turistas estão buscando por uma mítica “experiência verdadeira”, uma certa “realidade nua e crua” a qual teoricamente não têm mais acesso em casa – como se suas vidas afluentes e confortáveis na europa fossem menos reais e menos verdadeiras do que as vidas dos favelados da rocinha.
e saem do passeio com a sensação de terem desfrutado de uma experiência completamente inalcançável e intransferível, seja aos turistas comuns, seja às elites locais.
essa busca ansiosa pela ilusória “mediação não mediada” baseia-se na crença de que existem experiências turísticas “autênticas” que podem acontecer sem a mediação da indústria do turismo, sem serem produtos culturais prontos e pré-fabricados.
ou seja, é a miragem de que o produto “passeio de um dia na favela da rocinha”, vendido por uma agência de turismo, é intrinsecamente mais autêntico do que o produto “passeio de um dia no corcovado”, vendido pela mesmíssima agência.
para que a visita à favela sirva seu objetivo, a turista precisa se convencer que a sua visita, ao contrário das das outras turistas voyeurs, é um ato ético e solidário.
a experiência não deixa de trazer consigo uma certa ansiedade: afinal, como uma praia deserta, se todas a visitarem, ela deixa de ser deserta.
nesse ponto, o valor da favela está em ser exclusiva e fora do mainstream; quanto mais turistas a visitarem, menos desejável ela se torna como fator de diferenciação.
fica claro que, nessa economia de sensações do turismo da miséria, o que está sendo vendido à turista é principalmente uma certa sensação de superioridade moral e intelectual.
o que pensam as moradoras das favelas
a principal ilusão das turistas é que seus passeios trazem algum benefício à comunidade.
de fato, as agências são operadas de fora da favela e os lucros vão para suas proprietárias. quando muito, comerciantes da favela tem um pequeno aumento de vendas, mas a maioria diz que turistas só querem saber de tirar fotos e comprar água.
em muitas ocasiões, fica claro que as turistas querem apenas uma confirmação de sua própria imagem mental da favela. conta uma moradora:
“uma vez, quando meu filho era mais novo, [algumas turistas] quiseram tirar foto dele, mas quando cheguei com ele [que é branco], eles não quiseram, porque eles queriam um neguinho.”
na verdade, como disse um comerciante, as turistas dão somente uma pequena ajuda nos lucros, mas seu maior valor está em tirar a impressão de lugar violento que a favela tem. por isso, grande parte das pessoas moradoras vê esse tipo de turismo de modo positivo.
para as moradoras, a questão não é nem tanto se o turismo na favela deveria existir ou não, mas de que maneira ele poderia beneficiar a comunidade. a maioria das turistas pensa estar ajudando a comunidade simplesmente ao participar do passeio, mas as moradoras têm outra ideia do que constituiria ajuda:
“os turistas … às vezes … só passam pelos lugares mais ricos… [s]e eles fossem lá… onde o pessoal é mais necessitado, talvez eles pudessem se inspirar em limpar o lugar, talvez alguém se interessasse em ajudar os moradores… alguém poderia trazer dinheiro, consertar um cano. isso iria beneficiar a galera lá, porque ia incentivar os moradores a consertar as casas, tirar a lama, tirar o lixo.”
a questão do cheiro
o cheiro ruim é essencialmente subversivo. ele não pode ser banido, controlado, pasteurizado, estetizado.
se a fotografia permite que a miséria mais degradante transforme-se em objeto estético (oi, sebastião salgado), o cheiro não se presta a isso.
a vala aberta, o esgoto imundo, o lixo ao sol, o rato morto, nenhum deles pode ser tão facilmente domesticado, empacotado, vendido e distribuído ao mundo como uma bela foto de uma menina pobre e remelenta.
o cheiro exige ser confrontado: ou você fala sobre ele, ou você fica calado. não existe meio termo.
e, não por acaso, os relatos sobre visitas às favelas abundam em fotos, mas contém muito poucas referências ao cheiro.
nós também fazemos parte do problema
essa história não tem mocinhas nem vilãs. as faveladas não são pobres coitadas incapazes de pensar criticamente sua situação. as estrangeiras não são babacas ou iludidas ou ingênuas. as guias de turismo e donas de agência não estão explorando a favela.
senão, podemos acabar falando coisas assim:
“cabe a nós, elite ilustrada não-favela, defender as pessoas faveladas dessas turistas desalmadas e voyeuristas que as veem como animais em jaulas.”
na verdade, nosso papel nessa história é outro.
quando as turistas se gabam de visitar a favela, um lugar onde a preconceituosa elite local se recusa a ir… é de nós que estão falando.
quando as moradoras dizem que o maior benefício do turismo é quebrar a invisibilidade social da favela e ajudar a refutar os estigmas de violência e miséria… é de nós que estão falando, nós que criamos essa invisibilidade, nós que perpetuamos esse estigma.
e então? o que nós vamos fazer?
* * *
o texto que você acabou de ler é um resumo e uma paráfrase do livro gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela turística, de bianca freire-medeiros, publicado pela editora fgv em 2009, e disponível em uma edição de bolso baratinha. recomendo com ênfase.
* * *
aviso sobre linguagem e gênero
o texto acima fez uma valente tentativa de ser unissex e usar uma linguagem de gênero sempre neutra. todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. por favor, avisem e vou corrigir. para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
esses textos que mudam nossas vidas
acontece muito: a pessoa me escreve efusivamente, agradece por um texto, diz que mudou sua vida, etc.
eu respondo agradecendo os elogios e pedindo que ela, se puder, se não for fazer falta, realize uma doação em dinheiro de um valor proporcional ao bem que o texto lhe fez. afinal, sou um artista independente, vivo disso e ela leu de graça o texto que mudou sua vida.
e a pessoa não responde nem nunca faz a doação.
ou seja, o texto que mudou sua vida não vale nada. ou vai ver vendem muito barato suas vidas.
* * *
eu trabalho duro para escrever os textos que vocês leem. não tenho outra atividade. só faço isso.
muita gente acha os textos blé. entendo, aceito e respeito.
mas, se você gosta, se repassa pras amigas, se cita os meus argumentos em conversas, se fica com as minhas palavras em sua cabeça, então, por favor, considere a possibilidade de remunerar a pessoa que trabalha duro para criar essas palavras.
um grande beijo em todas vocês.
* * *
para doar, visite minha página de mecenato.
* * *
esse é o último texto que vêm gerando esse tipo de elogio. talvez você goste: prisão trabalho.
livros em cuba
há quase dez anos, estudo e pesquiso e escrevo sobre cuba.
apesar do país ter um mercado editorial grande e vibrante, por causa do bloqueio americano, é difícil de encontrar livros cubanos fora da ilha.
resultado: voltei de um mês em cuba com 58kg de livros. cinquenta e oito. quilos. só de livros.
e não são livros capa-dura, não. são livros leves, de capa mole, em papel-jornal. (imaginem o volume que isso ocupou!)
mas valeu a pena. cuba é incrível. sua cultura, sua literatura, sua história, sua revolução.
em poucos meses, a editora hedra deve publicar, aqui no brasil, minha edição da autobiografia do poeta-escravo cubano juan francisco manzano, um documento fundamental para compreender a escravidão.
o livro não é editado em cuba desde 1972 e já está na hora de uma nova edição cubana também.
parece que vai ser a minha. com o texto original, e minha introdução e notas traduzidas ao espanhol.
se tudo der certo, a partir de 2015, serei um autor publicado em cuba.
seria um orgulho e uma felicidade enormes.
* * *
leia também: em cuba, atrás do poeta-escravo
* * *
na fotos, por claudia regina, a casa-grande do engenho los molinos, em matanzas, onde viveu e cresceu o poeta-escravo juan franscisco manzano.
primeiro de maio em cuba
estou trabalhando na biblioteca nacional josé martí, em havana, em plena praça da revolução, espécie de cinelândia cubana.
quinta-feira agora, 1º de maio, é a grande festa do dia do trabalho, apoteose do socialismo, maior celebração do ano.
já faz uma semana que estou acompanhando diariamente todos os preparativos na praça, os testes de som dos gigantescos alto-falantes, os ensaios, as decorações.

nos jornais, só se fala disso. quem vai desfilar por onde, quais ruas estarão fechadas, quais linhas especiais de ônibus farão o transporte para lá, etc.
mais de um milhão de pessoas devem vir.
e eu, idiota, marquei minha passagem de volta para o rio no dia 30 de abril.
em cuba, atrás do poeta-escravo
em poucos meses, será publicada pela editora hedra minha tradução anotada da autobiografia do poeta-escravo afrocubano juan francisco manzano, escrita em 1836.
agora, estamos em cuba, buscando pelos traços de sua existência.
em havana, na biblioteca nacional josé martí, pedimos permissão (ainda não concedida) para consultar o manuscrito original.
a casa onde o poeta viveu, em havana velha, na esquina de o’reilly com brasil, foi completamente reformada pela oficina do historiador de havana. desde 2008, é o “hotel marquês de prado ameno”, nome da família que foi proprietária do poeta. as suítes e aposentos do hotel tem muitos nomes derivados da vida do poeta. o salão de reuniões se chama “salão manzano”.
ainda em havana, um funcionário aposentado da empresa que administra o hotel, e que já havia escrito diversos estudos sobre a vida do poeta afrocubano, nos forneceu importantes mapas para nos ajudar a encontrar o engenho “el molino” ou “los molinos”, em matanzas, onde o poeta também viveu e onde mais sofreu.
em matanzas, graças à ajuda do historiador da cidade, toda a equipe do museu provincial palacio de junco nos abriu as portas do museu (que estava fechado) para vermos tanto a lápide da primeira proprietária de manzano (famosa por ser a primeira escritora de cuba) como também um “tronco”, original e autêntico, utilizado para punir os escravos de matanzas na mesma época em que o poeta viveu.
por feliz coincidência, a irmã de uma das seguranças do museu mora no terreno do engenho “los molinos”. ela havia chegado a viver em uma das casas-grandes, demolida em 1972. sua casa atual, e outras duas, repousam sobre as fundações da casa-grande.
da varanda, pode-se ver e ouvir os rios san juan e san agustín, em cujas margens o poeta pescava e compunha.
ao lado, ainda sobrevivem de pé as paredes, os muros e as fundações da antiga casa-grande, construída de pedra e provavelmente remanescente da época de manzano.
como em cuba tudo se reaproveita, a casa-grande onde aquela criança escravizada seguia sua senhora como um cachorrinho hoje é uma fábrica de gelo.
em todas nossas pesquisas em matanzas, contamos com a ajuda, com a companhia e com a amizade do historiador urbano martínez, autor de dezenas de livros — entre eles, uma biografia do literato cubano que promoveu a coleta que comprou a liberdade do poeta-escravo.
depois, passamos por bayamo, manzanillo, cabo cruz, pilón, marea del portillo e, agora, estamos em santiago, no outro extremo da ilha de havana, cidade mais caribenha de cuba.
daqui, passaremos por guantanamo, baracoa e, então, a longa volta até havana.
só faz sentido escrever para ser do contra
às vezes, me perguntam: você é sempre do contra?
não, claro que não. a maioria das minhas opiniões é igual à opinião da maioria das pessoas. mas de que serve escrever sobre isso? se saiu o filme x e ele é uma unanimidade de crítica e público, todo mundo adorando o filme, e eu também adorando o filme… de que adianta eu escrever mais um texto dizendo que o filme é lindo e reforçando o que todo mundo já sabe e já acha?
de que adianta escrever para confirmar as opiniões e afagar o ego das pessoas leitoras?
então, não é que sou sempre do contra, mas que acho que só faz sentido escrever se for para ser do contra. se for para mostrar à leitora um novo ângulo. se for para sacudir suas certezas. para questionar suas ideias.
tomo o maior cuidado para nunca criticar pessoas vivas, para nunca acusar ninguém de nada, para nunca apontar dedos, mas é natural que algumas pessoas se sintam atacadas.
nesse caso, digo a elas: o texto não era sobre você, mas se você vestiu a carapuça e se sentiu atacada… então, é porque era.