de uns tempos pra cá, virou moda: turistas vêm ao rio e não querem mais conhecer o corcovado ou o pão de açúcar, mas sim a favela da rocinha e do vidigal. estão as pessoas gringas se aproveitando das faveladas? ou são as pessoas faveladas que estão cambalachando as gringas? o turismo estimula o progresso das favelas ou garante que nunca saiam da mesma estagnação?
o pós-turista
o turismo nas favelas é uma faceta no novo “pós-turismo”.
agora que pessoas de poder aquisitivo cada vez mais baixo já podem visitar os destinos turísticos tradicionais (a classe média sofre com esses pobretões na fila da disney!), as novas pós-turistas, para se distanciar da ralé e reestabelecer a distância original, precisam buscar novas experiências turísticas, mais inusitadas, mais interativas, mais aventureiras, indo a lugares que seriam a antítese do antigo turismo, localidades antes marginais e agora reinventadas e reapropriadas.
em outras palavras, com tantas pessoas pobres agora lotando gallerie laffayette, em paris, suas antigas frequentadoras hoje fazem safari tours em favelas.
a indústria do turismo classifica a pobreza como exótica, a transforma em mercadoria e a vende para turistas que queiram participar dessa “economia de sensações”, onde o que compram é justamente a sensação voyeurítica de poder vivenciar a pobreza e a miséria sem precisar, para isso, serem pobres e miseráveis.
o capitalismo celebra toda a diferença que seja capaz de mercantilizar.
turismo da miséria: prós e contras
eu sou do rio, morei por seis anos em nova orleans e faço pesquisas em havana. são três cidades turísticas (e lindas, diga-se de passagem) onde se faz esse “turismo da pobreza”.
no rio, são as favelas. em nova orleans, é a destruição causada pelo furacão katrina. em havana, são os prédios em ruínas. sempre cercados de belgas bem alimentados, calçando birkenstocks e tirando fotos com máquinas cujo valor alimentaria uma família local.
isso é bom?
para defensores da prática, ela tem as seguintes vantagens:
- melhorar o desenvolvimento econômico da região;
- conscientizar turistas;
- aumentar a autoestima da população;
- forjar lideranças locais;
- compartilhar recursos e conhecimento entre pessoas que não teriam se encontrado se não fosse o turismo.
para quem está contra, existiriam dois grandes problemas:
- os benefícios gerados vão em grande parte para as pessoas proprietárias das agências e não revertem em melhorias e investimentos nas comunidades;
- mais que conscientização e mobilização social, essas visitas gerariam um certo voyeurismo diante da pobreza e do sofrimento.
quem é a turista da miséria?
em seu livro gringo na laje, a socióloga bianca freire-medeiros traçou um interessante estudo do turismo na favela da rocinha, falando com moradoras, turistas, guias de passeio e proprietárias de agência.
segundo suas pesquisas, a principal característica dessa turista seria sua ansiedade de se diferenciar:
- das moradores; afinal, o turismo na favela não deixa de ser uma maneira de darem mais valor aos confortos materiais de casa.
- das turistas convencionais, que só vão aos pontos turísticos previsíveis e jamais teriam coragem de encarar uma favela.
- das turistas voyeurs e pouco engajadas, que visitam as favelas do jeito errado, como abutres, sem contribuir, sem ajudar, etc.
- da elite local, preconceituosa e com medo de conhecer sua própria cidade.
mais do que tudo, essas turistas estão buscando por uma mítica “experiência verdadeira”, uma certa “realidade nua e crua” a qual teoricamente não têm mais acesso em casa – como se suas vidas afluentes e confortáveis na europa fossem menos reais e menos verdadeiras do que as vidas dos favelados da rocinha.
e saem do passeio com a sensação de terem desfrutado de uma experiência completamente inalcançável e intransferível, seja aos turistas comuns, seja às elites locais.
essa busca ansiosa pela ilusória “mediação não mediada” baseia-se na crença de que existem experiências turísticas “autênticas” que podem acontecer sem a mediação da indústria do turismo, sem serem produtos culturais prontos e pré-fabricados.
ou seja, é a miragem de que o produto “passeio de um dia na favela da rocinha”, vendido por uma agência de turismo, é intrinsecamente mais autêntico do que o produto “passeio de um dia no corcovado”, vendido pela mesmíssima agência.
para que a visita à favela sirva seu objetivo, a turista precisa se convencer que a sua visita, ao contrário das das outras turistas voyeurs, é um ato ético e solidário.
a experiência não deixa de trazer consigo uma certa ansiedade: afinal, como uma praia deserta, se todas a visitarem, ela deixa de ser deserta.
nesse ponto, o valor da favela está em ser exclusiva e fora do mainstream; quanto mais turistas a visitarem, menos desejável ela se torna como fator de diferenciação.
fica claro que, nessa economia de sensações do turismo da miséria, o que está sendo vendido à turista é principalmente uma certa sensação de superioridade moral e intelectual.
o que pensam as moradoras das favelas
a principal ilusão das turistas é que seus passeios trazem algum benefício à comunidade.
de fato, as agências são operadas de fora da favela e os lucros vão para suas proprietárias. quando muito, comerciantes da favela tem um pequeno aumento de vendas, mas a maioria diz que turistas só querem saber de tirar fotos e comprar água.
em muitas ocasiões, fica claro que as turistas querem apenas uma confirmação de sua própria imagem mental da favela. conta uma moradora:
“uma vez, quando meu filho era mais novo, [algumas turistas] quiseram tirar foto dele, mas quando cheguei com ele [que é branco], eles não quiseram, porque eles queriam um neguinho.”
na verdade, como disse um comerciante, as turistas dão somente uma pequena ajuda nos lucros, mas seu maior valor está em tirar a impressão de lugar violento que a favela tem. por isso, grande parte das pessoas moradoras vê esse tipo de turismo de modo positivo.
para as moradoras, a questão não é nem tanto se o turismo na favela deveria existir ou não, mas de que maneira ele poderia beneficiar a comunidade. a maioria das turistas pensa estar ajudando a comunidade simplesmente ao participar do passeio, mas as moradoras têm outra ideia do que constituiria ajuda:
“os turistas … às vezes … só passam pelos lugares mais ricos… [s]e eles fossem lá… onde o pessoal é mais necessitado, talvez eles pudessem se inspirar em limpar o lugar, talvez alguém se interessasse em ajudar os moradores… alguém poderia trazer dinheiro, consertar um cano. isso iria beneficiar a galera lá, porque ia incentivar os moradores a consertar as casas, tirar a lama, tirar o lixo.”
a questão do cheiro
o cheiro ruim é essencialmente subversivo. ele não pode ser banido, controlado, pasteurizado, estetizado.
se a fotografia permite que a miséria mais degradante transforme-se em objeto estético (oi, sebastião salgado), o cheiro não se presta a isso.
a vala aberta, o esgoto imundo, o lixo ao sol, o rato morto, nenhum deles pode ser tão facilmente domesticado, empacotado, vendido e distribuído ao mundo como uma bela foto de uma menina pobre e remelenta.
o cheiro exige ser confrontado: ou você fala sobre ele, ou você fica calado. não existe meio termo.
e, não por acaso, os relatos sobre visitas às favelas abundam em fotos, mas contém muito poucas referências ao cheiro.
nós também fazemos parte do problema
essa história não tem mocinhas nem vilãs. as faveladas não são pobres coitadas incapazes de pensar criticamente sua situação. as estrangeiras não são babacas ou iludidas ou ingênuas. as guias de turismo e donas de agência não estão explorando a favela.
senão, podemos acabar falando coisas assim:
“cabe a nós, elite ilustrada não-favela, defender as pessoas faveladas dessas turistas desalmadas e voyeuristas que as veem como animais em jaulas.”
na verdade, nosso papel nessa história é outro.
quando as turistas se gabam de visitar a favela, um lugar onde a preconceituosa elite local se recusa a ir… é de nós que estão falando.
quando as moradoras dizem que o maior benefício do turismo é quebrar a invisibilidade social da favela e ajudar a refutar os estigmas de violência e miséria… é de nós que estão falando, nós que criamos essa invisibilidade, nós que perpetuamos esse estigma.
e então? o que nós vamos fazer?
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o texto que você acabou de ler é um resumo e uma paráfrase do livro gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela turística, de bianca freire-medeiros, publicado pela editora fgv em 2009, e disponível em uma edição de bolso baratinha. recomendo com ênfase.
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aviso sobre linguagem e gênero
o texto acima fez uma valente tentativa de ser unissex e usar uma linguagem de gênero sempre neutra. todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. por favor, avisem e vou corrigir. para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
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