No meio de um ano ruim, um ano que infelizmente prometia ser o prelúdio de anos muito piores, o profeta Jeremias ousou ser otimista diante da tragédia.
Categoria: grande conversa
Alguns dos momentos mais belos, mais humanos, mais surpreendentes da Bíblia são quando humanos tem a temeridade de interpelar a Deus, de questionar sua justiça, de barganhar com ele pelas vidas e pelas almas de seus irmãos.
Talvez a faceta mais importante de Deus, personagem do Gênese, é o quanto que ele não nos parece em nada moralmente ou espiritualmente superior aos personagens.
Durante a Segunda Guerra Mundial, preso em uma cadeia turca, o alemão Erich Auerbach escreveu uma das mais importantes obras de crítica literária do século: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Em seu primeiro capítulo, “A cicatriz de Ulisses”, Auerbach contrasta os diferentes estilos literários da Odisséia e do Gênese, uma comparação que vai manter e desenvolver ao longo da obra, estudando a literatura ocidental até o século XX.
Como intérprete de sonhos, Freud se via como José; como líder de um movimento, se via como Moisés, libertando seu povo da ignorância e, como filho que renunciou a autoridade dos pais, se via como assassino de Moisés.
Para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura, estamos lendo o Livro do Gênese. Já escrevi sobre os autores do Gênese, seu contexto histórico, etc: leia todos os textos sobre o Gênese. Abaixo, algumas notas esparsas sobre diversos episódios.
Uma chave de leitura frutífera para o Gênese é considerá-lo um livro etiológico, ou seja, cujo objetivo é explicar o mundo como ele é “hoje” — no hoje de quando foi escrito, naturalmente.
O Gênese é quase darwinista em sua ênfase na fecundidade: claramente, a maior vitória possível é deixar o máximo de descendentes, povoar o mundo, encher a terra. Abaixo, algumas notas de leitura.
A Bíblia é meu livro preferido e, dentro dela, um de meus favoritos é o Livro de Samuel. A história de Faltiel é um dos motivos.
Como ler a Bíblia? Como ler qualquer texto distante, produzido em outra época por uma civilização que já não é mais a nossa?
Todo texto (especialmente os grandes clássicos com tradição crítica e literária) já contem em si mesmo os elementos que sabotam, fraturam o seu próprio sentido: fios soltos que a crítica literária pode puxar e, ao fazer isso, desmontar (ou desconstruir) o texto. Essa possibilidade deve estar sempre em nossa mente ao ler todas as obras de nosso curso. Alguns fios soltos são mais óbvios (como o Velho no Restelo, em Os Lusíadas, nossa leitura da sexta aula), outros menos, mas sempre existem, e podemos encontrá-los.
A Hipótese Documental (que apresento aqui) explica o fato de algumas histórias do Gênese, e de todo o Pentateuco, serem contadas duas vezes: Noé, em sua Arca, leva dois (6,9) ou sete (7,2) de cada animal? O poço de Bersebá é batizado por Abraão (21, 31) ou por Isaac (26, 33)? José é vendido aos ismaelitas ou medianitas? etc (Gabel, 88-89) Naturalmente, mesmo antes da Hipótese Documental ser elaborada, essas duplicações não escaparam à atenção dos leitores do Gênese ao longo dos séculos.
Os dois relatos da Criação, por exemplo, não podem ambos verdade, pois se contradizem. Como explicar essa contradição?
O Livro do Gênese é, em grande parte, mitológico mas algumas de nossas leituras seguintes, como Samuel e Jeremias, já estão associadas a alguns fatos reais da história israelita. Abaixo, o contexto histórico de algumas das leituras da primeira aula, Antigo Testamento, do curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura.
O livro do Gênese, o primeiro livro da Bíblia, foi escrito por pândegos e editado por derrotados. Por isso, é tão bom.
No sexto dia, Deus criou o homem e a mulher e lhes deu como alimento as plantas:
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas” e assim se fez. (Gen 1, 27-30)
Ou seja, ninguém morria para que outro ser precisasse se alimentar.
Quando Adão e Eva comem o fruto proibido e percebem que estão nus, Deus lhes faz roupas de pele:
“Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu.” (Gen 3, 21)
Na tradição, esse gesto é visto como um carinho de Deus para com os caídos, mas uma coisa importante não é dita: pele de quem?
Algum ser vivo acabou de morrer para vestir Adão e Eva. Por tudo o que se sabe, foi a primeira de todas as mortes. A primeira morte da Criação.
Um velho truque de romancistas e poetas: ler em voz alta revela a força e a potência de qualquer texto. E, quando o texto é capenga e mal-escrito, revela suas deficiências também. Por isso, a melhor maneira de revisar um texto é lendo-o em voz alta.
Vale para qualquer texto, mas é absolutamente obrigatório para textos escritos antes da invenção da imprensa (que tendem a ser mais orais) e para poesia (que, com algumas exceções, é oral por definição).
Para ler a Bíblia como literatura, qual edição escolher?
Minha recomendação rápida, para quem não quiser ler o texto inteiro: Bíblia do Peregrino (BP) ou Bíblia de Jerusalém (BJ).
São duas das mais populares, fáceis de encontrar, em diversos tamanhos. São maravilhosas: traduções lindas, poéticas, literárias; as notas são perfeitas, embasadas, acadêmicas, incorporando as últimas pesquisas; a de Jerusalém é ecumênica, tendo sido produzida por uma equipe de pessoas católicas, protestantes, judias.
(Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começa no dia 2 de julho de 2020 e ainda dá tempo de se inscrever.)
Em julho, começo a ensinar o curso online “Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura“. A primeira aula, que acontece no dia 2 de julho, será sobre o Antigo Testamento. Abaixo, a descrição da aula. Nos próximos dias, vou publicar vários textos em preparação para essa aula, produzidos especialmente para as pessoas alunas, mas, como acredito que o conhecimento deve ser público, compartilho também com todas minhas leitoras aqui no site. Para saber todos os detalhes do curso e se inscrever, clique aqui.
“O que sabe aquele que não foi tentado?”
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O Eclesiástico é o livro mais recente do Antigo Testamento e o único cujo autor conhecemos. Ele foi escrito pelo sábio e escriba Jesus ben Sirá, por volta de 180 antes da Era Comum, em hebraico e provavelmente em Jerusalém.
Os monges foram os primeiros revolucionários e os monastérios, as primeiras utopias.
Os Padres do Deserto
Foram talvez os últimos cristãos verdadeiros, os últimos iconoclastas que escolheram seguir os ensinamentos da pessoa Jesus em detrimento das ordens da instituição criada por Paulo.