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copacabana rio de janeiro

hora marcada

copacabana. consultório de clínica ortopédica. lotado. quase todos velhinhos.

uma senhora estrangeira, forte sotaque, começa a dar escândalo com a recepcionista. grita que é um absurdo. que já está esperando há mais de uma hora. que se não for atendida em dez minutos vai embora!

com toda a educação e paciência do mundo, a recepcionista aponta que a senhora tinha chegado sem hora marcada e que precisava esperar pela possibilidade de um encaixe.

então, a senhora se volta para a sala de espera e diz:

e você quer me convencer que essa gente toda tinha hora marcada? hein? hein?

* * *

leia meu texto gentileza em copacabana.

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entrevistas raça

O Brasil das Minorias

O Brasil das minorias from Cinese on Vimeo.

Eu, falando sobre racismo e privilégio, no evento “O Brasil das Minorias”, parte da Semana Cinética.

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textos

aforismo (VII)

tudo pode aquele que não está levando essa merda a sério.

 

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teatro

dario fo no rio

dario fo. dramaturgo italiano. maluco. comunista. improvisador. pícaro. legítimo herdeiro de brecht. por lapso do sistema, ganhou o nobel de literatura de 1997.

duas peças em cartaz no rio.

no serrador, ali na cinelândia, em excelente ocupação pela companhia alfândega 88, júlio adrião no monólogo a descoberta da américa. sobre um marinheiro da frota de colombo abandonado no novo mundo. simplesmente excelente. humano. enorme. engraçado.

(as próximas apresentações são entre os dias 28 de novembro e 2 de dezembro, às 19 horas.)

no cândido mendes, em ipanema, ali do lado da praça nossa senhora da paz, outro monólogo: il primo miracolo. ou seja, o primeiro milagre. (será que acharam que, se colocassem o título em português, pareceria uma peça evangélica?) é a história da infância do menino jesus, contada através dos evangelhos apócrifos, e do seu controverso primeiro milagre. poucas vezes vi uma performance tão linda, tão humana, tão forte, tão carismática quanto a de roberto birindelli. ali, sozinho no palco. sem nenhum adereço ou parafernália. só ele, nós e a luz. belíssimo.

(às terças e quartas, às 21 horas, até 19 de dezembro.)

ao final da peça, uma fala de birindelli me ficou na memória: esse espaço só é teatro nessa breve hora enquanto estamos todos aqui juntos; antes e depois disso, é apenas um chão de tábuas sujas.

il primo miracolo

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copacabana rio de janeiro

pontos turísticos

dou meu endereço, e o taxista:

“ah, o prédio das putas?”

é bom morar em um edifício icônico de copacabana.

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textos

iconoclasta cum laudae

amigo comunista, pessoa mais interessante que conheci em nova orleans, brilhante, intenso, artístico, complexo, iconoclasta, católico, vegano, capaz de falar horas e horas contra tudo e todos do sistema vigente. já fez créditos suficientes para se formar em quatro cursos e obter dois mestrados, não se sente desafiado pela universade, tudo pra ele é fácil.

agora está se desesperando pra acabar o seu honor’s thesis, “tese de honra” opcional que alunos da graduação podem escolher fazer. e eu pergunto: pq está escrevendo isso? e ele: preciso ter escrito a tese para poder me formar summa cum laudae!

as se ele dizia que a universidade não o desafiava, então não deveria aceitar os desafios propostos pela universidade, deveria procurar dentro de si mesmo novos projetos pessoais que de fato o desafiassem.

nada é mais profundamente establishment do que aceitar os desafios oferecidos pelo sistema, se esforçar para ganhar o jogo dentro das regras estabelecidas, conseguir ganhar apesar de tudo e, pior ainda, se deixar exibir como a prova de que, olha só, o sistema funciona!

verdadeiros iconoclastas anti-establishment não viram a noite tentando ser summa cum laudae.

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textos zen

nem todos vão te amar

existem poucas atitudes mais vaidosas do que autorizar sua própria biografia.

são sempre pessoas públicas que já enfrentaram escândalos, ataques e polêmicas. e parecem pensar: ah, fulano me odiava porque não me conhecia; fulana fez campanha pra me destruir porque não entendeu minha mensagem. pois, acreditam, ninguém que realmente as conheça, ninguém que realmente as entenda poderia odiá-las, confrontá-las, atacá-las.

só essa certeza tão vaidosa justifica autorizar uma biografia e entregar todos seus arquivos ao escrutínio de um terceiro.

a vaidade está em acreditar que se o biógrafo ler todas as cartas, consultar todos os documentos, falar com todos os amigos, então, será impossível não amar o biografado.

a vaidade está em não perceber que ninguém está ou esteve ou estará a altura dessa presunção. que ninguém é ou foi ou será amado por todos.

que as pessoas não nos entendem e talvez nos odeiem não porque não nos conhecem direito ou porque não ouviram com cuidado nossa mensagem, e nem mesmo porque são escrotas, cretinas ou mal-intencionadas, mas sim porque são outras pessoas, que fizeram outras escolhas, que tem outras prioridades, que viveram outras vidas.

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arte

classe média sofre

classe média sofre

o tumblr Classe Média Sofre foi criado por mim e por um amigo, em março de 2011. mais tarde, meu amigo abandonou o projeto. em outubro de 2011, assumi publicamente a co-criação e a curadoria do site, que até então era anônimo. não sou o autor nem o dono: o Classe Média Sofre é um projeto coletivo.

tenho um certo orgulhinho bobo do Classe Média Sofre. se não conhece, te convido a uma visita:

classe média sofre

abaixo, as “letrinhas miúdas” do projeto:

As Letrinhas Miúdas

O tumblr Classe Média Sofre é uma instalação artística e literária, virtual e colaborativa, mantida por centenas de colaboradores diários.

O tumblr Classe Média Sofre é humorístico e sarcástico. As opiniões emitidas por nós, as criadoras, seja na barra da direita, nos posts, nos comentários aos posts, etc, são 100% irônicas e não refletem de modo algum nossas verdadeiras opiniões. Caso você não tenha percebido o sarcasmo, por favor, visite esse link. Outro link que pode lhe ajudar: Poe’s Law. Ou leia esses dois artigos.

O tumblr é sarcástico e irônico, mas tomamos cuidado para somente reproduzir manifestações e desabafos sinceros. Não faria sentido reproduzirmos de forma sarcástica e irônica algo que  foi dito de forma sarcástica e irônica. Algumas vezes, porém, bobeamos. Podem avisar. Por esse motivo, muitos comentários com a tag #classemédiasofre jamais serão utilizados – por já serem autorreferentes.

Não mostramos nomes, rostos e identificações por uma questão estética e política. O tumblr Classe Média Sofre não tem como objetivo expor ou ridicularizar ou promover nenhuma pessoa em específico, mas fazer um comentário geral sobre nossa sociedade e sobre todos nós. Protegeremos sempre a identidade de todos, tanto das pessoas citadas quanto dos colaboradores que enviam submissões. Pelo mesmo motivo, não mantemos registros de qualquer tipo, então não temos como dar crédito por eventuais colaborações.

Não perseguimos ninguém. Se você apareceu várias vezes, é capaz de nem termos notado – muitas colaborações já chegam borradas até nós. Por esse mesmo motivo, não podemos garantir que você não vá aparecer de novo. Se você apareceu no Classe Média Sofre e não gostaria de ter aparecido, avise e retiramos do ar.

O tumblr Classe Média Sofre não tem filiações partidárias ou ideológicas. Para fins desse tumblr, a expressão “classe média” é definida de maneira mais ampla possível como “todos os brasileiros, menos os mais nababescamente ricos e os mais abjetamente miseráveis”. O blog poderia igualmente se chamar“Geração Mimimi” ou “Brasileiro Sofre” e seria exatamente igual. Só para constar, segundo o IBGE, a classe média (faixas de renda C1 e C2) corresponde a 43% da população brasileira, com renda familiar mensal entre R$2.905,04 e R$ 8.050,68. (Fonte)

Os autores, aliás, se enquadram, se colocam, se veem, se reconhecem na classe média brasileira. Dessa forma, o tumblr não pode ser visto como crítica, mas autocrítica; um retrato da própria classe média brasileira se olhando no espelho e refletindo sobre si mesma.

O tumblr Classe Média Sofre é, por definição, coletivo e só pode se manter com a participação dos leitores. Não apenas as criadoras tem empregos e precisam ganhar a vida, como também o tumblr não faria sentido se fosse apenas uma seleção dos comentários dos nossos conhecidos pessoais. Quanto mais amplo o espectro de colaboradores, maior e mais precisa será nossa reflexão no espelho.

Aceitamos colaborações de qualquer maneira ou estilo. Como somos preguiçosas, temos uma leve preferência por colaborações enviadas pelo formulário do site, em forma de imagens e com a identificação já borrada.

O tumblr Classe Média Sofre não esconde que se inspirou no tumblr norte-americano White Whine.

Nas suas primeiras quatro semanas, o tumblr Classe Média Sofre obteve mais de 100 mil visitas, 250 mil pageviews, 1.500 seguidores no Tumblr, 400 no Twitter, 300 membros em sua página no Facebook e 500 assinantes do feed RSS. 69 leitoras mulheres quiseram dar pra nós, se fôssemos homens, mas nenhum leitor homem se ofereceu querendo nos comer se fôssemos mulheres. Reflitam.

Temos prazer em falar com a imprensa e em responder a todas suas perguntas, mas nosso prazer em larga medida é derivado do fato que vamos mentir pra você. classemediasofre@gmail.com

Para fins de processos judiciais, saibam que moramos fora do Brasil e que o site está hospedado na Eslovênia, onde divide um servidor com o Cocadaboa. Boa sorte.

As autoras. Ou autores. Ou ambos.

Paris/Curitiba, primavera de 2011.

Repercussão na Imprensa

Matéria “Olhem só o que eu vi agora,” de Rafael Barifouse. Revista Época. Edição 720, 5 de março de 2012.

– Um dos dez tumblrs do ano de 2011 da Revista Superinteressante.

– Exemplo de internet moleque brasileira no Yahoo Notícias.

– Um dos dez tumblrs que bombaram em 2011 da Revista Info.

– Um dos cinco novos tumblrs que você precisa conhecer da Revista Info.

– Um dos dez melhores tumblrs do ano de 2011 do Youpix.

– Um dos memes do ano de 2011 do jornal O Globo.

– Citado por dois repórteres como tumblr do ano de 2011 da Folha de São Paulo.

– Matéria A delícia e a dor de ser classe média – Site aborda com sarcasmo o conservadorismo típico dessa classe social, Jornal do Commércio, 24 de abril de 2011.

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zen

ao léu

estou na casa de uma amiga faz uma semana e estou há uma semana sem sair de casa.

acordamos, ela sai pra trabalhar, fico escrevendo, ela volta, ficamos juntos, dormimos. no dia seguinte, bis.

quase tudo que gosto realmente de fazer, faço em casa: ler, escrever, cozinhar, transar, fumar, tomar vinho, meditar, ver os amigos, usar a internet.

na prática, só saio de casa pra fazer três coisas: ir ao teatro, remar, levar o oliver no banheiro.

aqui, não tem teatro, não tem onde remar e estou sem o oliver – que ficou na casa de uma amiga.

resultado: sem nem perceber, passei uma semana inteira dentro de casa. completamente feliz.

minha inércia é cósmica.

quando estou fora, minha tendência é ficar fora pra sempre. preciso de muito pouco, tenho excelentes amigos, vou pulando de casa em casa, lavando a louça alheia, dormindo onde caio, trabalhando do meu laptop. então, vou ficando fora… (não visito meu próprio apartamento há mais de um mês.)

quando estou dentro, minha tendência é ficar dentro pra sempre. preciso de muito pouco, tenho tudo em casa, os amigos sempre aparecem pra visitar. então, vou ficando dentro….

percebo que a função do oliver em minha vida é justamente quebrar esse círculo.

quando estou fora, nunca posso ficar fora por muito tempo, porque o oliver está lá dentro sozinho, coitado, tem que sair pra passear, etc.

quando estou dentro, nunca posso ficar dentro por muito tempo, porque o oliver tem que sair pra ir no banheiro, tem que passear, etc.

sem o oliver, sou um ser que se movimenta completamente de acordo com as marés. ao léu.

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entropia

temos tempo

quando alguém diz, “não se preocupe, temos tempo”, meus pelos da nuca logo se eriçam. porque nunca, nunca temos tempo. tempo é tudo que não temos. quem diz isso ou está se auto-enganando ou está enganando você.

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entropia

causa mortis: incompetência

antigamente, morria-se.

a morte, as doenças, a decadência do corpo eram simplesmente inimigos poderosos demais. morrer não era uma derrota ou um azar: era triste, era terrível, era algo a ser evitado a todo custo, mas também era parte da vida.

hoje, não mais. você é que não comeu alimentos orgânicos o suficiente, não se exercitou a contento, não parou de fumar antes dos trinta, se estressou demais. a culpa é nossa: se tivéssemos somente feito tudo o que nos mandam as revistas de saúde (menos ovo nos anos pares, mais ovo nos ímpares) iríamos viver para sempre — como tem de ser! mas fomos fracas, ó vida ó azar, e por isso estamos aqui nessa cama de hospital, ao pé da morte.

pior ainda, a miragem do progresso eterno e irresistível nos promete sempre a solução de todos os problemas, logo ali, na próxima esquina, basta a gente conseguir chegar lá. então, pegar um câncer terminal é não apenas culpa do seu estilo de vida irresponsável mas também, coitado de você, bad timing! que azar! a pfizer está testando agora, hoje mesmo, a droga que poderia te salvar, mas só chega no mercado ano que vem! deu na superinteressante que cientistas de harvard garantem que esse seu tipo de câncer estará erradicado em dez anos, pôxa! se você tivesse comido mais alfafa, caramba, teria aguentado chegar até lá e aí então, claro, não morreria nunca!

afe!

tive a melhor vida que poderia desejar. fiz tudo o que quis na hora que quis. não tenho arrependimentos. não tenho nenhuma palavra por dizer a ninguém.

meu maior medo não é morrer, pois sei que existência tem começo, meio e fim, mas fraquejar e morrer como um bebê chorão. lamentando não ter comido mais anti-oxidantes.

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textos

personas

rita hayworth dizia que a grande maldição de sua vida era que os homens se apaixonavam por gilda, mas acordavam com a margarita.

entendo como se sentia.

é muito fácil amar o alex castro. alex castro sempre fala a coisa certa. tudo o q ele diz é elaborado e revisado. alex castro nunca fica nervoso, nunca fala sem pensar, nunca levanta a voz. alex castro não tem momentos de fraqueza e de insegurança. alex castro é incorpóreo: ele não sua, ele não ronca, não tem pelo crescendo nas orelhas.

o desafio é amar o alexandre moraes de castro e silva, esse… esse… corpo!

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textos

vítimas

quanto mais a gente tenta fazer a coisa certa, mais vítimas vamos deixando pelo caminho.

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zen

antizen

amiga: “ah, alex, se você soubesse o quanto sou antizen, nem falaria mais comigo.”

eu: “mas o zen também é antizen.”

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copacabana rio de janeiro

a história deixa marcas

durante os séculos 16 e 17, o rio de janeiro foi um dos principais entrepostos da prata de potosí, na bolívia — uma atividade comercial importante que impulsionou os primeiros anos da cidade.

os navios vindos da europa ou da áfrica aportavam no rio de janeiro, desciam a costa até buenos aires, trocavam de embarcações, e subiam, de barco e de mula, até potosí.

o rio de janeiro mandava tabaco, cachaça, farinha de mandioca, açúcar, tecidos, e recebia doses fartas de prata. mais importante, o rio enviava infindáveis escravos — em média, a vida útil de um escravo nas minas de potosí era de somente oito meses.

hoje, a memória do comércio da prata no rio de janeiro praticamente se perdeu, mas deixou uma marca importante.

(a história não gosta de ser esquecida.)

no século 16, às margens do lago titicaca, perto da localidade de “kota kahuana” (ou “vista do lago” em aymará), surgiu um culto à nossa senhora que se tornou bastante popular em todos os andes. no século seguinte, alguns devotos bolivianos e peruanos que passavam sempre pelo rio no comércio da prata trouxeram uma imagem da santa e construíram para ela uma pequena capelinha na praia de sacopenã, na época bem afastada e de acesso muito difícil.

a capelinha foi demolida no começo do século 20, para construção do que era então “a mais moderna praça de guerra da América do Sul e um marco para a engenharia militar de seu tempo”.

nessa época, entretanto, o nome latinizado da santa já havia rebatizado a praia, e dado nome ao bairro e à sua principal avenida: nossa senhora de copacabana.

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textos

Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala: historiografia & recepção

Quase oitenta anos após sua publicação, Casa Grande & Senzala continua sendo, ao mesmo tempo, um livro fácil e um livro dificílimo: fácil pelo estilo leve e coloquial de Freyre, que o coloca ao alcance de qualquer leitor médio em busca do prazer da leitura; difícil, dificílimo, pois a própria oralidade da linguagem, e a tendência freyreana de pensar em termos de “antagonismos em equilíbrio”, tornam Casa Grande & Senzala uma obra repleta de ambiguidades que, a todo momento, traem e enganam um leitor acadêmico que tente “isolar” os pensamentos e opiniões de Freyre. Em Casa Grande & Senzala, muitas vezes a afirmação vem seguida da sua negação, e vice-versa, e assim sucessivamente, “fazendo com que a cada avaliação positiva possa se suceder uma crítica … que acaba por dar um caráter antinômico à sua argumentação.” (Benzaquen)

No momento do seu lançamento, diz Antonio Candido, é difícil de se avaliar a enormidade do impacto da obra: “sacudiu uma geração inteira, provocando nela um deslumbramento como deve ter havido poucos na história mental do Brasil.” Monteiro Lobato compara sua publicação à chegada do cometa Halley – que foi muito mais impressionante em 1910 do que em 1986, cabe dizer, ou não se entenderá a comparação. Freyre oferece uma versão totalmente nova da História do Brasil, varre do pensamento brasileiro a noção de racismo científico e interpreta positivamente tanto a contribuição negra quanto a mestiçagem.

Em breve, porém, acadêmicos marxistas ligados à USP, como Florestan Fernandes, Caio Prado Jr, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Antonio Candido, começam uma crítica sistemática às idéias de Freyre. Nas palavras de Gabriel Cohn, em oposição à visão patriarcal, “de cima”, mais culturalista e antropológica, de Freyre, propõem uma perspectiva plebéia, “de baixo”, mais sociológica e econômica. À leitura de Freyre, focada na singularidade cultural e racial do Brasil, Florestan Fernandes contrapõe uma leitura que enfatiza a participação do país nas grandes correntes históricas ligadas à expansão do capitalismo mundial. Ainda segundo Cohn, apesar da rivalidade entre elas, essas visões seriam mais complementares do que propriamente excludentes.

Entretanto, para debater ou refutar Freyre, primeiro era necessário defini-lo e enquadrá-lo, uma tarefa dificílima em se tratando de um autor tão ambíguo e escorregadio, sem afiliações acadêmicas, e capaz de chamar para si quase todos os rótulos sem jamais colar-se a eles. Carlos Guilherme Mota, por exemplo, em quase desabafo, nota que Freyre desenvolveu uma série de “mecanismos e artifícios” para não ser facilmente localizável: se colocar como sociológo ao mesmo tempo em que diz fazer anti-ciência; se definir como liberal, mas criticar os liberais; se afirmar um revolucionário, mas um revolucionário conservador; e por fim, se classificar simplesmente como “escritor”, o que, de acordo com Antonio Candido, é uma “teima” que serve apenas para indefinir suas verdadeiras coordenadas. Já pode-se ver o enorme incômodo que Freyre causava em uma parcela da academia: Mota, ao usar a palavra “desenvolver”, e Cândido, “teima”, praticamente sugerem que o estilo sincrético, paradoxal e iconoclasta de Gilberto Freyre seria não um reflexo legítimo de sua personalidade, mas somente “mecanismos e artifícios”, nas palavras de Mota, propositalmente criados para ludibriar seus adversários. Começa aqui a história das desleituras da obra de Freyre.

Com o passar dos anos, Freyre realmente sofre uma guinada conservadora: na década de sessenta, manifesta seu apoio às ditaduras do Brasil e de Portugal e começa, enfim, a utilizar o termo “democracia racial” – originalmente criado por Roger Bastide e que jamais aparece em Casa Grande & Senzala ou Sobrados & Mucambos. Entretanto, as posições conservadoras posteriores de Freyre são progressivamente projetadas em seus trabalhos anteriores, até o ponto de ser praticamente um truísmo (falso) que “Casa Grande & Senzala é o livro que defende/começa/define/promove/apresenta/etc a tese da democracia racial”.

Entre as décadas de sessenta e oitenta, quanto mais conservador Freyre se afirma, mais a crítica marxista a ele torna-se compreensivelmente feroz. Pode-se dizer que, durante esses anos, seu prestígio acadêmico esteve no nível mais baixo: quando Stuart Schwartz escreve seu seminal Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, seu objetivo original era simplesmente provar que “visão doce” que Freyre tinha da escravidão estava equivocada. Dante Moreira Leite parece fazer o epitáfio intelectual de Freyre quando afirma que sua posição parecia então [1969] inevitavelmente datada e anacrônica, identificando-o com os grupos mais conservadores e afastando-o dos intelectuais mais criadores. E conclui: Casa Grande & Senzala entretém mas não explica e, na verdade, por sua fórmula ensaística e universalista, encobre o problema real das relações de dominação no Brasil. Antonio Candido, como que curado do impacto que sofreu com a obra, desdenha: Casa Grande & Senzala não é uma interpretação do Brasil, mas uma autobiografia. Com a morte de Freyre em 1987 e a queda do muro de Berlim em 1989, entretanto, os ânimos começam a esfriar e Freyre pôde ser lentamente apropriado pela academia.

Em 1995, estudando História do Brasil, na PUC-RJ, recordo-me perfeitamente do professor que nos apresentou a Casa Grande & Senzala como um livro que há algum tempo não era ensinado e que “agora estava voltando”, pois era importante para a evolução do pensamento brasileiro, embora reacionário, conservador, ultrapassado, etc. É possível que a súbita popularidade de Freyre nessa universidade tenha se dado graças ao lançamento, no ano anterior, de Guerra e Paz. Casa Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30, por um professor da casa, Ricardo Benzaquen de Araújo, provavelmente o melhor livro acadêmico sobre Freyre. Voltaremos ao livro de Ricardo ao final desse ensaio; basta dizer que a década de noventa marca a “retomada freyreana”, na feliz colocação de Christopher Dunn.

Uma vasta gama de pensadores, personalidades e pesquisadores tem redescoberto e reutilizado Gilberto Freyre, desde o ex-ministro da cultura Gilberto Gil, tentando aumentar a mestiça auto-estima nacional, até a antropóloga Yvonne Maggie, uma das faces mais visíveis da luta contra a adoção de cotas raciais no Brasil. Apesar disso, a produção brasileira mais recente, em livro, não parece estar à altura do tema. Gilberto Freyre e a Invenção do Brasil (2000) e Gilberto Freyre e o Idéario Brasileiro (2005), de Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Odilon Ribeiro Coutinho, são somente panegíricos freirianos, listagens dos elogios que ele recebeu e respostas aos seus críticos. Pelo menos, não escondem suas lealdades: no primeiro, o autor já afirma na orelha que foi amigo de Freyre por 30 anos e o segundo apresenta uma foto de Freyre com o autor na contracapa. A Construção da Brasilidade. Gilberto Freyre e sua Geração (2001), pelo respeitado historiador Vamireh Chacon, fala pouco sobre “a construção da brasilidade” mencionada no título, e contém pouca ou nenhuma análise sobre a obra freyriana: trata-se de um estudo documental sobre o impacto e as leituras de Casa Grande & Senzala, antologizando resenhas, correspondência e controvérsias: decepciona como trabalho acadêmico, mas pode tornar-se uma boa fonte primária. Gilberto Freyre, Um Vitoriano nos Trópicos (2005), de Maria Lúcia Pallares-Burke, é um trabalho acadêmico de peso mas talvez com um recorte excessivamente estreito: a influência de autores ingleses na formação intelectual de Gilberto Freyre até Casa Grande & Senzala. Por fim, mais interessantes, três coleções de artigos trazem contribuições inovadoras à pesquisa freyriana no século XXI: Gilberto Freyre e os Estudos Latino-Americanos (2006), organizado por Joshua Lund e Malcolm McNee, O Imperador das Idéias. Gilberto Freyre em Questão (2001), organizado por Joaquim Falcão e Rosa Maria Barbosa de Araújo, e a edição crítica de Casa Grande & Senzala da Coleção Archivos (2002), organizada por Guillermo Giucci, Enrique Rodriguez Larreta e Edson Nery da Fonseca.

Também no exterior, acadêmicos têm se debruçado sobre Gilberto Freyre, em novos livros como Colonialism and Race in Luso-Hispanic Literature (2006), de Jerome Branche, White Negritude. Race, Writing and Brazilian Cultural Identity (2008), de Alessandra Isfahani-Hammond e a coletânea de artigos The Masters and the Slaves. Plantation Relations and Mestizaje in American Imaginaries (2005), editado pela mesma autora. Essa mais recente produção norte-americana tem feito fortíssimas críticas a Freyre, partindo não mais de bases marxistas ou materialistas históricas, mas dos estudos culturais, pós-coloniais e afro-americanos.

O livro de Branche exemplifica bem essa nova variação de uma antiga maneira de desler a obra de Freyre: é uma análise de raça enquanto narrativa no cânone luso-hispânico, desde o século XV até o presente, buscando por instâncias de traços racistas, mesmo que atenuados e suavizados, no discurso dominante. Naturalmente, Branche também se debruçou sobre Freyre: ele aponta que o próprio título Casa Grande & Senzala, com sugestões de inerentes hierarquias sociais, raciais e sexuais, desmente as teorias freyrianas de relações sociais e raciais harmoniosas. Continua Branche: as referências à casa-grande e à senzala já remeteriam a um espaço de dominação econômica e política, com potencial inerente de coerção e brutalidade; além disso, a referência ao patriarcado no subtítulo (“Formação da Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal”) também evocaria toda a dominação patriarcal masculina branca do senhor de engenho sobre suas escravas, filhas e esposas.

Naturalmente, a explicação verdadeira pode ser rigorosamente oposta: dado que o próprio título Casa Grande & Senzala enfatiza as hierarquias sociais, raciais e sexuais do Brasil Colônia, então talvez seja Branche quem fez uma leitura equivocada do livro, ao atribuir a ele idéias que o próprio Branche reconhece que são desmentidas pelo título! Talvez, ao contrário do que Branche parece apressadamente concluir, colocar a palavra “patriarcado” no subtítulo de um trabalho de História não signifique necessariamente celebrar esse patriarcado, mas denunciá-lo, entendê-lo, estudá-lo. A precariedade da leitura de Branche, que ao mesmo tempo registra em Freyre a presença das ausências que aponta, é explicitada no seguinte trecho, sintomático de uma des-leitura bem comum de Casa Grande & Senzala. Vale a pena a citação longa, pois é flagrante como uma frase desmente rigorosamente a frase anterior:

“Freyre’s authorial ambivalence emerges again as he identifies slave children as indispensable playmates of the off-spring of the slave-owning class, while they are also seen as a source of moral and physical corruption for them. Slave boys teach their young masters obscene language, and the slave girls introduce them to sex and often to syphilis. The repeated image of interracial childhood interaction in Masters and the Slaves, as putative metaphor for racial democracy among the young by way of the effect of affect, is by no means watertight. Its purported sincerity is exploded by the sadism that often characterizes the relationship between the young slave owner’s son and his black slave companion and in his ininhibited sexual access to black and mulatto girls at the onset of puberty. In fact, the unenvenness of such relationships is vividly depicted by Freyre’s nonchalant reference to the belief among diseased young males of the slave-holding class that having sex with a twelve- or thirteen-year-old virgin would cure their syphilis.”

O trecho é tão contraditório que quase poderia ter sido escrito por Freyre e ser um exemplo do seu estilo de “antagonismos em oposição”. Nas primeiras duas frases, Branche chama a atenção para as várias descrições de exploração sexual de crianças brancas sobre negras e mulatas em Casa Grande & Senzala, algo que não se esperaria em um livro que, como ele parece acreditar, promove a “democracia racial”, mas Branche não vê a contradição em seu próprio argumento. Na terceira frase, o autor comenta que essa interação sexual infantil forçada “não funciona como metáfora da democracia racial” – mas não se sabe de onde ele tira que essas relações de estupro e dominação poderiam jamais ser consideradas metáforas de qualquer tipo de democracia racial. Aparentemente, ele acredita que Freyre diz isso, mas não cita onde. Por fim, na quarta e quinta frases, Branche se contradiz de novo e lista várias ocasiões em que Freyre, mais uma vez, descreve os crimes sádicos das relações sexuais entre senhores e escravos, sem jamais parecer compreender que são essas descrições, entre outras coisas, que comprovam que Casa Grande & Senzala não defende que o Brasil Colônia fosse um paraíso racial.

Poderíamos nos perguntar: se o livro descreve tantos horrores da relação entre senhores e escravos, como pode promover a democracia racial? Se promove a democracia racial, por que incluir tantos e longos trechos sobre sadismos, torturas, estupros? A leitura de Branche, que já escreve buscando o racismo disfarçado do discurso oficial, é sintomática da forma mais comum de desleitura freyreana: é impressionante a quantidade de atrocidades, torturas e estupros que um leitor precisa relevar ou esquecer para fechar Casa Grande & Senzala e tachá-lo de livro “promotor da democracia racial”.

Também não está se tentando aqui glorificar ou defender Gilberto Freyre – pecado de parte da bibliografia atual. Naturalmente, se Branche buscava pelo racismo subjacente ao discurso oficial, mesmo se atenuado ou suavizado, ele poderia encontrar muitos exemplos em Casa Grande & Senzala – somente não os que ele cita – e não apenas aí, mas em toda a produção literária brasileira até então. Por exemplo, quando Gilberto Freyre escreve que todo brasileiro,

“mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo … a sombra … principalmente do negro. … Em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer…”,

não há dúvida de que se trata de uma operação de exclusão, ainda que presumivelmente bem-intencionada. O negro, apesar de tão valorizado no texto, é claramente excluído da categoria “todo brasileiro” ou mesmo do “nós”. Ele é quem está fora, ele é a “sombra”. Ele “nos” dá de mamar, justamente por não ser parte desse “nós”: é externo a ele, está fora de nós. Aliás, a primeira pessoa do plural é sempre complexa na prosa freyriana, mais um exemplo da ambiguidade que dificulta sua assimilação pela academia: para Gilberto Freyre, “nós” pode ser desde “brasileiros brancos descendentes de senhores de engenho nordestinos” até “brasileiros brancos, mas sem incluir negros e índios”, passando inclusive por “todos os cidadãos brasileiros”. É a proliferação do primeiro “nós” que permite que Antonio Cândido, não sem alguma razão, classifique Casa Grande & Senzala como autobiografia.

O que muitas vezes falta aos autores que embarcam em críticas semelhantes contra Freyre é a contextualização de quão pouco racista o seu discurso era, em comparação ao discurso contemporâneo e anterior. Aos nossos ouvidos politicamente corretos de começos do século XXI, um autor dizer que todo brasileiro mamou em tetas negras pode parecer somente uma operação de exclusão. Em 1933, “sacudiu uma geração inteira”, nas palavras de Cândido. Pinçar racismos aqui e ali na prosa ambígua de Gilberto Freyre é muito fácil; fazê-lo sem contextualizar o impacto de sua obra na atmosfera racista de então é má-fé acadêmica.

Recentemente, alguns intelectuais brasileiros têm revalorizado a contribuição de Freyre, especialmente no sentido de superar o racismo científico e estabelecer a democracia de raças como um ideal a ser atingido. Hermano Vianna ataca o “mito do mito da democracia racial”, muito em voga entre brazilianistas, segundo ele, e que teria se originado de “uma leitura apressada, tendenciosa e burra” de Casa Grande & Senzala:

“como dizer que CG&S criou uma imagem idílica da sociedade colonial se, logo no prefácio de sua primeira edição, aprendemos que os senhores mandavam ‘queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas’…?”

Vianna também considera que o melhor do Brasil seja nossa valorização da mestiçagem, que não seria sinônimo de defender a idéia de vivermos em uma democracia racial.

Já em A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (2007), de Antonio Risério, a presença de Gilberto Freyre é sentida em cada página, mesmo quando não mencionado. Em muitos trechos, Risério parece literalmente incorporar Freyre:

“Quando falo de sociedade urbana convivial, não estou me referindo a uma sociedade harmônica, sossegada, entregue à sua própria placidez. Não me refiro sequer a um espaço social onde os conflitos se apresentassem de forma atenuada. Em outras circunstâncias, estes esclarecimentos seriam dispensáveis, mas o ambiente brasileiro não se encontra hoje, mentalmente, em condições normais de temperatura e pressão. Parece até que as pessoas estão fazendo questão de parecer burras. Daí o didatismo e a redundância a que somos obrigados.”

Neste livro, Risério busca entender dois fenômenos fundamentais do Brasil: a mestiçagem e o sincretismo, resgatando-os e valorizando-os. Sobre a democracia racial, ele aponta que o próprio impacto e recepção de Casa Grande & Senzala provaram não ser o Brasil uma democracia racial, mas essa tornou-se uma das grandes aspirações nacionais. De certo modo, à sua maneira, mesmo sem inventar a expressão “democracia racial” ou usá-la em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre deu ao país o seu “Brazilian Dream”. E, desde que não seja usada conservadora e reacionariamente, como uma desculpa para alienação política, como uma realidade que o Brasil já alcançou, qual é o problema da “democracia racial” como projeto, como sonho, como aspiração? Será algo tão ruim assim? Não será essa, talvez, a maior contribuição do Brasil à cultura mundial? E fecha o livro com a frase: “Cumpre, portanto, fazer com que o mito se encarne na história.”

Por fim, como já foi dito, talvez o melhor livro acadêmico sobre Freyre nas últimas décadas tenha sido Guerra e Paz: Casa-Grande e Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30, de Benzaquen. Fugindo de interpretações fáceis de Gilberto Freyre, sem nem pinçar seus trechos mais felizes para endeusá-lo, nem seus piores deslizes, para pintá-lo como um ideológo reacionário, Benzaquen foi direto ao cerne do estilo freyriano, à sua característica talvez mais difícil: seus “antagonismos em conflito”, “sua heterogeneidade”, “sua imprecisão”, que seria “um dos componentes mais importantes de Casa Grande & Senzala”, “fornecendo valiosas pistas para a compreensão de alguns dos seus mais importantes propósitos”.

Em suma: a parte constitutiva do pensamento freyriano seria justamente a imprecisão que Mota havia desdenhado como “mecanismo e artifício”. Para Benzaquen, o pano de fundo de Casa Grande & Senzala é o realce dado por Gilberto Freyre ao caráter despótico e mesmo brutal de nossa tradição patriarcal, capaz de permitir uma certa dose de intimidade entre grupos sociais divergentes sem que isso cancelasse ou sequer diminuísse a desigualdade e a opressão embutidas em seu relacionamento. Depois de listar alternadamente alguns trechos sobre sadismo e sobre confraternização entre brancos e negros, dando a impressão de uma certa esquizofrenia autoral por parte de Freyre, Benzaquen dá o passo que Branche, e outros críticos, não deram:

“CGS dá a impressão de ter sido escrito justamente para acentuar a extrema heterogeneidade que caracterizaria a colonização portuguesa, ressaltando basicamente a ativa contribuição de diversos e antagônicos grupos sociais na montagem da sociedade brasileira.”

Assim como, na sociedade, diversos opostos conseguem conviver de lado a lado, em amálgama tenso mas equilibrado, Gilberto Freyre, ao vencer a desconfiança fundamental que o pensamento ocidental nos ensinou a manter quanto à contradição, também consegue reunir elementos antagônicos sem se preocupar com sua síntese ou com o estabelecimento de mediação entre eles, fazendo assim desse relativo louvor da ambiguidade o ponto central e decisivo de sua reflexão. O estilo de Freyre era um modo concreto de trazer para a escrita parte da instabilidade, ambiguidade e excesso que caracterizavam a sociabilidade da casa grande.

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rio de janeiro

lar, dulcíssimo lar

a melhor coisa de estar entre cariocas é que a gente pode dizer que ama, pode mandar passar lá em casa, pode até jurar amizade eterna, e sabe que o outro carioca não vai dar uma de suiço e achar que amo mesmo ou, pior, realmente aparecer na minha casa.

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textos

se fosse só gostar das coisas que entendo…

mesa de restaurante, várias pessoas. alguém menciona o filme melancolia, do von trier, e eu digo que gostei muito.

namorada: “que gostou muito o quê, alex! você teve que ir arrastado e depois ainda disse que não entendeu nada!”

eu: “não entendi mesmo! mas se só fosse gostar das coisas que entendo eu não gostaria de cinema escandinavo, não gostaria de arco-íris, não gostaria nem de mulher!”

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textos

ninguém sabe quando vai passar a gostar do que jamais gostou

nunca diga desse pau não chuparei.

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raça

o peso da história: a escravidão e as cotas

a história é uma bola de ferro que bisnetos e bisnetas das vítimas da escravidão ainda arrastam pelos tornozelos. seus efeitos nocivos continuam se fazendo sentir todos os dias.

eu (nascido em 1974) cursei o ensino fundamental no colégio santo agostinho (um dos melhores da cidade), o médio na escola americana do rio de janeiro (na época, a mais cara do brasil) e, depois, história no ifcs/ufrj (turma de 1999) porque meu pai cresceu em botafogo, fez o ensino médio no colégio andrews (tradicionalíssimo) e se formou bacharel em economia (turma de 1970) pela mesma ufrj.

meu pai (nascido em 1946) estudou na ufrj porque meu avô estudou engenharia no instituto eletrotécnico de itajubá, atual universidade federal de itajubá (turma de 1938) e trabalhou durante muitos anos para a chesf (companhia hidro-elétrica do são francisco), inclusive nas obras do complexo hidrelétrico de paulo afonso.

meu avô (1909-1989) foi engenheiro porque meu bisavô (1876-1965) saiu do mato grosso (onde seu pai, veterano do paraguai, estava servindo desde a guerra) pra estudar no colégio militar do rio de janeiro, onde foi comandante-aluno de 1897 (ou seja, tirou dez em tudo e foi imortalizado numa plaquinha), formou-se engenheiro militar, participou do episódio dos 18 do forte de copacabana e reformou-se coronel.

em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura.

se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo, analfabeto e despreparado, sem conhecer pai e mãe, desprovido de qualquer poupança ou bens*, teriam seus filhos e netos e bisnetos estudado nas melhores escolas e universidades do país e feito parte da elite brasileira?

sem esse capital socioeconômico e cultural acumulado pelo meu bisavô em 1888 (para não irmos mais longe), onde teria ido parar a cadeia de acontecimentos que desembocou na minha vida? estaria eu, nesse momento, sadio e medindo 1,80m, cursando um doutorado no exterior e escrevendo essas linhas? dentre minhas realizações, quantas são exclusivamente por mérito meu e quantas são consequência direta da vida privilegiada que eu e meus antepassados levamos? que tipo de dívida eu tenho com as pessoas que não tiveram tanta sorte? será ético simplesmente dizer “sorte minha, azar deles, e foda-se, hoje já nivelou tudo e no vestibular todos têm chances iguais”?

dado que os efeitos nocivos da escravidão ainda se fazem sentir na pele dos bisnetos e bisnetas das vítimas diretas, não é tarde demais para serem indenizadas pelo estado.

e as cotas são um bom começo.

cotas raciais ou cotas sociais?

ser a favor de cotas raciais não quer dizer ser contra cotas sociais. aliás, não conheço nenhuma pessoa que defenda cotas raciais e que seja contra cotas sociais.

o problema é que quando se aplicam só cotas sociais (por renda, para pessoas oriundas de escolas públicas, etc), o que se vê são pessoas brancas se beneficiando delas desproporcionalmente mais do que negras ou indígenas.

o objetivo das cotas é corrigir distorções: se apenas fizermos cotas para corrigir as distorções sociais, corremos o risco de aprofundar ainda mais as distorções raciais.

precisamos corrigir todas.

* * *

um link: por que as cotas raciais deram certo no brasil

* * *

*riqueza [wealth] é um indicador mais importante de desigualdade racial do que renda pois, ao ser transmitida de uma geração a outra, acaba reproduzindo injustiças históricas ao longo do tempo. por exemplo, nos estados unidos hoje, enquanto a renda dos negros é 75% da dos brancos, sua riqueza líquida é de somente 18%. (telles, 116, mills, 37-38)

sou contra as cotas!
sou contra as cotas!