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vesti azul e minha vida então mudou

quase toda noite, Namorada e eu dançávamos em nosso quarto. oliver não gostava de ser excluído, e pulava e latia, pedindo para entrar. então, colocávamos o bicho apertado entre nós, seguro por nossos corpos, e assim dançávamos, coladinhos, os três.

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a fácil tolerância

as pessoas que mais mandam são as que se sentem mais acuadas pela patrulha de quem não manda nada.

para quem faz parte do status quo e está acostumada a ser a opinião dominante e nunca interpelada, qualquer contradiscurso, mesmo marginalizado e quase impotente, é sempre visto como intolerável:

“feminismo radical”, “racismo reverso”, “ateísmo militante”, “ditadura gay”, etc.

o ideal é a feminista feminina, a negra que sabe o seu lugar, a atéia calada, a gay dentro do armário.

é fácil ser tolerante com a outra: basta ela ficar quieta e nunca me lembrar que existem no mundo opiniões diferentes das minhas.

* * *

entendo as privilegiadas defendendo seus privilégios. não entendo a militante negra reclamando das feminazis, a ateia se insurgindo contra o racismo reverso, a gay incomodada pelas ateias militantes.

falta espelho e falta solidariedade.

* * *

para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro.

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de mãos vazias, seguro a pá

De mãos vazias, seguro a pá.
Ando a pé, montado no touro.
Cruzo a ponte e ela flui,
Mas a água não.

tradução livre do poema de Bodisatva Fudaishi, também conhecido como Jinie, Fu Ta-shih, Shan-hui (China, 497–569)

(outras versões: “Observai a pá nas minhas mãos vazias. / Enquanto montado num touro vou andando a pé. / Quando passo sobre a ponte não é a água que corre, e sim a ponte.” // “Empty-handed, I hold a hoe. / Walking on foot, I ride a buffalo. / Passing over a bridge, I see / The bridge flow, but not the water.” // “Empty-handed I go and yet the spade is in my hands; / I walk on foot, and yet on the back of an ox I am riding: / When I pass over the bridge,/ Lo, the water floweth not, but the bridge doth flow.” // “Ando con las manos vacías y con todo la espada está en mis manos; // marcho a pie, y con todo a grupas de un buey voy cabalgando; // cuando paso por sobre el puente, // el agua no fluye, pero el puente si.”)

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a vergonha de doisneau

alguém pediu para seguir doisneau pelas ruas de paris e observar seu método de fotografia. ele recusou. disse que teria vergonha que vissem quantas vezes ele passou pela foto perfeita e nem se deu conta, somente para voltar correndo, dez segundos ou cinco minutos depois, e ainda ter que implorar para completos estranhos fazerem de novo, para a câmera, o que tinham feito naturalmente pouco antes.

mas quantas pessoas não passaram pelas mesmas cenas que doisneau? quantas ideias geniais não temos todo dia?

a marca do grande artista é justamente saber quando voltar.

les coiffeuses au soleil, 1966
les coiffeuses au soleil, 1966

* * *
para quem está no rio: a exposição “simplesmente doisneau” está no centro cultural justiça federal até 24 de junho de 2012. a entrada é franca. a informação acima foi retirada do documentário “robert doisneau: tout simplement” (2000), de patrick jeudy, que pode ser assistido na mostra.

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sina

ser amado por muitos. não ser a prioridade de ninguém.

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eles não são você

Rua Professora Carolina Ribeiro, Chácara Klabin, São Paulo, SP (fonte: olheosmuros.tumblr.com)
Rua Professora Carolina Ribeiro, Chácara Klabin, São Paulo, SP (fonte: olheosmuros.tumblr.com)
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o preço da liberdade

Um amigo bem-intencionado:

“Alex, se você continuar falando tudo o que passa na sua cabeça e fazendo tudo do seu jeito, você nunca vai ser bem-sucedido na vida.”

Eu: “Oras, falar tudo o que passa na minha cabeça e fazer tudo do meu jeito é minha definição de ser bem-sucedido na vida!”

* * *

Ainda o mesmo amigo:

Eu: “Mas, afinal, por que você tanto quer ser bem-sucedido?”

Ele:

“Você tem cada uma, Alex! Pra eu poder ter independência financeira pra não precisar mais medir minhas palavras ou puxar o saco do chefe, pra poder fazer o que eu quero do jeito que eu quero.”

Eu: “Bem, eu devo ter pulado uma etapa então, porque eu  vivo assim.”

* * *

Hora do meu amigo abrir os meus olhos:

Ele:

“Pô, Alex, às vezes você não tem idéia do efeito que causa nas pessoas. Eu conheço gente que acha esse seu jeito muito inconveniente, te evita, não te chama pras coisas. Isso não te incomoda?”

Eu: “Olha, quando eu era adolescente, eu também tinha esse medo de que ninguém iria gostar de mim. Então, me envolvi em política estudantil e, mesmo sendo gordo, feio e inconveniente, eu consegui ser amado por quase todo mundo, ter entrada em todos os grupinhos rivais e vencer todas as eleições que disputei. Mas, depois,me dei conta que era tudo vaidade sob o sol, como diria um outro amigo meu. De que adiantava puxar o saco e ser legal com tanta gente que não me importava? O que aquelas pessoas me acrescentavam? Um belo dia, eu parei de falar o que as pessoas queriam ouvir e passei a falar o que eu queria dizer. Uma multidão de malas se afastou, é verdade, mas outras pessoas incríveis começaram a se aproximar. E eu me dei conta: se existe tanta gente que vai me amar por eu ser do jeito que eu sou, qual é o sentido de me reprimir pra ser aceito pelas outros? O que eu devo a esses outros, afinal?”

Ele:

“Não deve nada. Mas ontem teve festa na casa do Paulo, sabia?”

* * *

Outro dia, no mercado em Nova Orleans, eu estava fazendo compras completamente descabelado (aliás, é por isso que gosto de cabelo curto, porque sempre esqueço de pentear) e eis que encontro outra amiga bem intencionada que, com uma sinceridade digna de mim, me avisou do meu pobre estado e ainda perguntou:

Ela:

“Como é que você se permite sair de casa assim, Alex?”

Eu: “Well, step number one is sincerely not caring about other people’s opinions. Once you have a good grasp of step one, the other steps just take care of themselves.” (“Bem, o primeiro passo é sinceramente cagar para a opinião dos outros. A partir do momento que você esteja firme e forte no primeiro passo, os passos seguintes se tomam sozinhos.”)

Desde então, ela tem estado fria comigo. Oras, a menina não estava nem um pouco errada, mas alguém que tem coragem de dizer o que ela disse, deveria mesmo ficar chateada com a minha humilde resposta?

Sinceridade é sempre boa indo; vindo parece que o povo não gosta.

* * *

Meu amigo bem-intencionado não desiste:

“Alex, não existe nada mais adolescente e imaturo do que querer fazer o que se quer na hora que se quer!”

Estranhamente, se não me falha a memória da minha adolescência e dos adolescentes que ensinei e ainda ensino, nada mais adolescente que querer ser aceito a todo custo. Naturalmente, indo mais longe, ambas atitudes são francamente adolescentes. Paradoxalmente, eu pergunto: e daí? Ser adolescente é ruim?

Toda criança é genial. Somos nós, os adultos, que perversamente as massacramos até extirparmos cada dose de individualismo e originalidade, para que se moldem ao que mediocremente chamamos de “o mundo”, “a vida”, “as coisas como elas são”, etc.

As pessoas mais interessantes que conheci tinham quinze anos de idade. E depois se tornaram adultos chatos e caretas, cheios de filhos e de dívidas, fazendo hora extra e colocando dinheiro no fundo de pensão, misturando viagra com tônico capilar, centrum com óleo de peixe.

Hoje em dia, meus amigos de infância me são um eterno alerta contra os horrores da vida adulta.

Aos 18 anos, eu era sério e responsável, presidente do grêmio e editor do jornal da escola, não fumava maconha e não comia ninguém.

Hoje, aos 38 anos de idade e com saúde perfeita, começo a viver, esperando não parar até morrer. Finalmente coloquei minhas prioridades em ordem: sou adolescente. Celebro a mim mesmo. Canto a mim mesmo.

* * *

Mas meu amigo ainda tem um trunfo na manga:

“Bem, é muito fácil viver assim se você não tem filhos!”

É verdade, tudo na vida é muito mais fácil se você não tem filhos – o que, aliás, é o principal argumento para NÃO ter filhos.

Minha vida é fácil? Comparada a do meu amigo, claro que é. Minha vida é fácil porque eu decidi não complicá-la tendo filhos e formando família. Minha vida é fácil porque eu abdiquei das vantagens de ser pai para não ter que sofrer as desvantagens. Minha vida é fácil porque eu, apesar de adorar crianças, não tenho um filhinho fofo pra eu ensinar a gostar de Senhor dos Anéis, mas também não tenho dívidas e hipotecas, não pago escola particular nem curso de inglês.

Se meu amigo decidiu conscientemente ter filhos e formar família, é porque encampou o desafio. Então, não vem dizer que a minha vida é fácil, não vem reclamar dos seus dois empregos, não vem reclamar dos preços de aparelhos ortodônticos. A escolha foi sua. Agora, aguenta.

* * *

Por fim, meu amigo balança a cabeça, põe a mão no meu ombro e diz:

“Isso tudo é muito bonito, Alex, e vai dar um bom post amanhã, mas a triste verdade é que, um dia, você vai pagar o preço.”

Um dia?! Ora, estou pagando o preço hoje. Só eu sei os colegas que alienei, as oportunidades que me negaram, as costas que me viraram. E só eu sei as aventuras que vivi, as mulheres que amei, os amigos que conheci. Pago o preço feliz e ainda sobra troco.

Já tracei meu caminho faz tempo: mais vale fracassar fazendo as coisas do meu jeito do que vencer só porque me anulei.

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todo mundo é a exceção

em nossa cabeça, somos todos o fumante que não vai morrer de câncer.

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paradoxo de narciso

quando eu era mais jovem, eu me achava especial. que tinha um destino. que realizaria grandes feitos.

os anos passaram, a vida aconteceu, e me dei conta que eu era apenas mais um bichinho sem alma, nessa pedra girando pelo espaço, sem nada que me distinguisse.

narciso.

entretanto, em nossa época narcisista, cercado de pessoas que se acham a última coca-cola do deserto, cada um protagonista do filme da sua vida, todos brigando por mais amigos no facebook, me dei conta que nada pode ser mais especial do que alguém que sabe sinceramente que é apenas mais um.

* * *

a coisa mais difícil de exercer a arte em público é não deixar os elogios subirem à cabeça. é preciso encarar com naturalidade o fato de as pessoas gostarem da sua arte e, ocasionalmente, terem suas vidas mudadas por ela, sem que isso queira dizer que o artista é mais importante do que o bombeiro hidráulico que lhes possibilita uma boa descarga na privada. elogios são como o meu cachimbo: só fazem mal se você tragar.

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quando começa a carreira de um artista?

vejo as pessoas comemorando suas carreiras. “hoje, fulano faz trinta anos de literatura! (ou de artes plásticas, ou de fotografia!)” e penso, que lindo, mas por onde começaram a contar?

assim como não sei com quantas mulheres transei porque não consigo definir o que é sexo, também não saberia marcar o início da minha carreira.

talvez alguém ache que estou contando vantagem. não estou não. não tem nada pra contar vantagem na minha sic carreira literária, lenta, cheia de desvios e falsos começos. mas utilizo minha vida como exemplo para a discussão maior e mais interessante:

quando começa a carreira de um artista?

1986.

decido ser escritor e começo a escrever religiosamente, rigorosamente, diariamente, disciplinadamente.

(ou seja, o começo é quando o artista decide que começou.)

1988.

ganho meu primeiro dinheiro como escritor e meu primeiro prêmio literário.

(ou seja, o começo é quando o artista ganha seu primeiro dinheiro ou sua primeira distinção formal.)

1989.

ganho um daqueles concursos literários caça-níqueis de editoras mercenárias onde o “prêmio” é pagar pra sair em uma antologia. (caí no truque pela primeira e única vez porque tinha quinze anos; a desculpa dos outros autores, não sei.)

(ou seja, o começo é quando o artista, nesse caso escritor, é pela primeira vez publicado em livro impresso.)

1994.

publico na revista mad pela primeira de muitas e muitas vezes, com o pseudônimo xandelon, começando a fase onde ganho dinheiro regularmente e pago minhas contas escrevendo.

(ou seja, o começo é quando o artista passa a ganhar dinheiro regularmente ou, no caso de escritores, a ser regularmente publicado na imprensa.)

2002.

termino mulher de um homem só, crio meu site de escritor e libero o romance para downloads gratuitos. serão trinta mil, em quatro anos.

(ou seja, o começo é quando o artista termina sua primeira obra de verdade e ela começa a ser consumida pelo público.)

2003, março.

fundo o blog lll, que já faz sucesso no primeiro ano, e cria um grupo de leitores que sabe quem eu sou e lê as coisas que eu escrevo porque fui eu que escrevi — não parece, mas esse porque é muito, muito importante.

(ou seja, o começo é quando o artista cria seu próprio público.)

2003, dezembro.

começo a assinar coluna de internet no tribuna bis, caderno de cultura da tribuna da impresa, jornal diário carioca. a coluna depois vira de crônicas e dura até o fim do jornal, em dezembro de 2008.

(ou seja, o começo é quando o artista, nesse caso escritor, começa a publicar regularmente coluna assinada na imprensa escrita.)

2006.

depois de milhares de downloads gratuitos, começo a vender um dos meus livros como ebook, onde perdemos tudo, que é resenhado muito positivamente por miguel sanches neto, no prosa & verso, do globo.

(ou seja, o começo é quando o público começa a pagar para consumir a obra de um artista porque o conhece e o acompanha, ou quando o artista é finalmente resenhado elogiativamente pelo caderno canônico da imprensa.)

2007.

auto-publico, pela os viralata, meu primeiro livro impresso, uma coletânea do blog, liberal libertário libertino.

(ou seja, o começo é quando o artista, nesse caso escritor, finalmente estreia em livro de papel de autoria individual.)

2008.

publico primeiro ensaio acadêmico sobre literatura na revista estudos de literatura brasileira contemporânea.

(ou seja, o começo é quando o artista começa a teorizar publicamente sobre sua arte em veículo conceituado.)

2009.

auto-publico, pela os viralata, meu romance mulher de um homem só, minha obra mais bem acabada. faço tanta fanfarra que consigo um pouco de cobertura na imprensa, o livro vende muito bem e ganho até dinheiro de verdade.

(ou seja, o começo é quando a arte começa a dar lucro para o artista.)

2010.

mulher de um homem só é traduzido ao espanhol. em breve, começarei a vender pela amazon em forma de ebook.

(ou seja, o começo é quando o artista começa a atingir públicos de outras culturas e idiomas.)

2011.

é publicado meu primeiro livro por uma editora pequena mas de verdade: onde perdemos tudo, pela oficina raquel.

(ou seja, o começo é quando o artista, nesse caso escritor, publica seu primeiro livro impresso, de autoria individual, por uma editora de verdade.)

* * *

para muitos, o verdadeiro começo seria justamente o último: publicar um livro por uma editora de verdade.

mas esse último vem depois de vinte e cinco anos de esforços.

esses esforços foram só os preparativos para a jornada que, de fato, começa apenas em 2011?

ou, quem sabe, os preparativos são a jornada?

onde está o começo?

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olhando velhas fotos de conhecidos de infância

quem era magro muitas vezes ficou gordo. quem era bonito algumas vezes ficou feio. quem era legal às vezes ficou chato. quem era loucão quase sempre ficou careta. mas quem era elegante e estiloso continua elegante e estiloso. não falha, não se perde.

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tutti buona genti

quase todo mundo tem alguma opinião sobre como eu deveria viver minha vida. como são pessoas boas, elas não me esperam pedir: veem a necessidade e já se prontificam. estranhamente, todas as opiniões são sempre uma variação de “você devia ser assim mais como eu”. nunca vi o hippie me aconselhando a ser mais mauricinho, ou o surfista a ser mais gótico. na verdade, não sei com certeza o que dizem. mexem as bocas e até emitem sons, mas não consigo prestar atenção. sei que são bons conselhos porque são todos pessoas boas que gostam muito de mim. obrigado.

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sair para voltar

está acontecendo no rio e em são paulo o festival “é tudo verdade”, que há muitos anos eu queria ir e nunca podia. em abril, vou participar de uma mesa redonda em minas gerais e de um evento em minha antiga escola no rio, em ambos falando sobre literatura – eventos que eu não podia participar quando morava fora. antes do filme, passei em uma livraria e, na mesma mesa de destaques, estavam o novo livro da fal e o novo do roger. mais ao lado, o novo do bia, o magnífico tijolão da ana maria e vários da ana paula, todos queridos amigos.

quero estar aqui pra isso. para participar dos festivais e ver a nova arte de ponta. para poder prestigiar os eventos para os quais me convidam. para poder conhecer e papear com quem está fazendo a literatura brasileira hoje.

cada vez mais acho que é preciso sair só para poder voltar. a cultura do brasil é o que me alimenta. longe dela, eu me sentia excluído, cortado, limitado.

e, agora, estou feliz, tão feliz.

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belmiro de almeida e o museu nacional de belas artes

semana passada, pela primeira vez desde que voltei definitivamente ao rio, estive no museu nacional de belas artes.

poderia passear pela sala de arte brasileira do século xix de pijama. o mnba é como se fosse minha casa.

a história é feita da nossa carne

a escola real de ciências, artes e ofícios foi fundada por d.joão vi em 1816.

com a independência, passou a se chamar academia imperial de belas artes.

em 1826, se transferiu para um prédio projetado pelo francês grandjean de montigny, na atual avenida passos.

escola nacional de belas artes, projeto de grandjean de montigny, foto por marc ferrez, 1891.
escola nacional de belas artes, projeto de grandjean de montigny, foto por marc ferrez, 1891.

na academia, casa de belmiro de almeida e muitos outros dos nossos grandes artistas, se travaram as grandes questões artísticas do século xix.

depois da república, passou a se chamar escola nacional de belas artes.

em 1908, com a construção do prédio atual do museu nacional de belas artes, na avenida rio branco, projeto do espanhol adolfo morales de los rios, a escola se trasferiu para ele.

atual prédio do museu nacional de belas artes, foto de marc ferrez, sd
atual prédio do museu nacional de belas artes, foto de marc ferrez, sd

(o prédio original, de grandjean de montigny, foi demolido em 1938, sobrando apenas seu pórtico, atualmente no jardim botânico.)

pórtico do prédio da academia nacional de belas artes, no jardim botânico
pórtico do prédio da academia nacional de belas artes, no jardim botânico

quando foi criada a universidade do brasil, a escola nacional de belas artes se incorporou à ela em 1931.

finalmente, em 1937, no mesmo prédio onde já funcionava a escola nacional de belas artes, foi inaugurado o museu nacional de belas artes.

durante os quase quarenta anos centrais do século xx, escola nacional de belas artes e o museu nacional de belas artes funcionaram no mesmo prédio, em frutífera simbiose. o próprio acervo da escola tornou-se o acervo do museu.

cresceram as árvores.
cresceram as árvores.

em 1965, quando a universidade do brasil passou a se chamar universidade federal do rio de janeiro, a escola também mudou levemente de nome: escola de belas artes.

em 1973, uma das alunas do curso de belas artes ficou grávida. no segundo semestre, já avançada na gravidez, desenhava apoiando a prancheta no barrigão. as aulas eram no subsolo e seu jovem marido, ainda apaixonado e trabalhando também no centro, ficava sempre agachado em plena calçada para poder vê-la através das janelinhas semi-circulares. no fim do ano, se formou aos trancos e barrancos e, em fevereiro do ano seguinte, nasceu seu primeiro filho.

um pouco acima do nível do chão, as janelinhas semicirculares.
um pouco acima do nível do chão, as janelinhas semicirculares.

pouco depois, em 1975, a escola de belas artes foi transferida para o campus do fundão.

muitos anos depois, em 2007, o filho do casal que namorava pelas janelas do museu visitou a nova sede da eba-ufrj para prestigiar a defesa de mestrado de sua melhor amiga, sobre arte e tecnologia, já apontando os caminhos por onde a arte brasileira vai fluir em seu terceiro século.

a história da nossa cultura é feita do nosso sangue e da nossa carne. as decisões de dom joão vi, os namoros dos meus pais e a escolha de tema da isabel são três pontos da linha do tempo da mesma instituição.

a história somos todos nós.

minha mãe (1974), pintada por hildebrando lima
minha mãe (1974), pintada por hildebrando lima

acima, minha mãe, em janeiro de 1974, grávida de oito meses de mim, pintada por seu então colega de classe na escola de belas artes, hildrebrando lima, hoje renomado escultor.

belmiro de almeida

belmiro de almeida foi cria da academia imperial de belas artes e é um de nossos maiores pintores.  o mnba também é sua casa, e conta em seu acervo com algumas de suas principais obras, como “arrufos” e “a tagarela“.

“arrufos”

arrufos. óleo sobre tela, 89 X 116 cm, por belmiro de almeida (1887)
arrufos. óleo sobre tela, 89 X 116 cm, por belmiro de almeida (1887)

a rosa despedaçada no chão, o vaso quebrado na mesa. a plácida indiferença do homem, calmamente apreciando o cigarro que acabou de enrolar, uma mão enluvada, outra nua, pensando: “odeio mulher histérica!”

cada um dos quadros de belmiro de almeida conta uma história com começo, meio e fim. valem por contos visuais.

a nova geração de pintores saudou “arrufos” como se fosse uma revolução. o escritor gonzaga duque, que serviu de modelo para o homem, exclamou que, no rio, ainda não se havia pintado um quadro importante como esse. talvez por isso, causou um pequeno escândalo na sociedade carioca, entre patronos do museu e a aristocracia do império, em uma época quando quadros ainda causavam escândalos.

mesmo se o rio de janeiro fosse a cidade mais sem atrativos do mundo, só “arrufos” já valeria a visita.

“os descobridores”

"os descobridores" (1899), óleo sobre tela, 260 X 200 cm
"os descobridores" (1899), óleo sobre tela, 260 X 200 cm

apesar de encomendado pelo governo para celebrar os 400 anos do descobrimento, o quadro escolhe retratar um instante patético e humano. dois marujos, em terra, e a frota de cabral se afastando no mar. um cai ao chão. o outro observa os navios.

quem são eles? degredados, deixados para trás como punição? marujos fugidos, que não agüentavam mais a vida a bordo? ou será que foram abandonados por engano?

o personagem à esquerda, caído aos pés da árvore, o que ele sente? total derrota, ao ver que está sozinho naquela tela estranha? ou total alívio, ao ver-se livre da rotina naval que o oprimia?

de qualquer modo, estão sós.

* * *

atualmente, “os descobridores” está no segundo andar do palácio do itamaraty, no rio de janeiro. em 2004, eu estava fazendo um serviço ali perto e decidi aproveitar para conhecê-lo pessoalmente, pois só tínhamos nos visto em livros.

cheguei no palácio às cinco horas e já estavam fechando. o guarda, solícito, me informou os horários das visitas diárias e e eu disse que não, que era um estudante de arte e que precisava dar só uma olhadinha em um quadro que tinha sido informado que estava ali. aliás, minha informação tinha mais de 50 anos. nesse meio tempo, o quadro poderia ter pego fogo, sido riscado por um adolescente louco ou ter mudado de residência quinze vezes.

comecei a descrever o quadro: ele é grande, quase três metros de altura por dois de largura, são dois marujos da época do descobrimento no alto de um morro, vendo a frota do cabral ir embora e—

ah, disse o guarda, o senhor quer ver o quadro do belmiro?

fazíamos parte de uma irmandade. ele não só soube na hora de que quadro eu estava falando, como ainda se referiu ao pintor com uma intimidade de velho conhecido: ah, o quadro do belmiro?

sim, claro, o quadro do belmiro.

ele me conduziu pelos belíssimos corredores e salas e antesalas do palácio, já às escuras, e me levou até o quadro. acendeu as luzes e ficamos lá, os dois, uns quinze minutos, embasbacados, apreciando o drama daqueles dois marujos.

infelizmente, o quadro não está em bom estado, apesar de ter passado por uma restauração somente dois anos antes. as cores apagaram, o navio no canto superior esquerdo sumiu totalmente. quem não conhecesse o quadro por outras reproduções, acharia que estavam fitando o mar vazio.

não vale a visita — a não ser para conhecer o sebastião, o guarda amigo do belmiro.

“a tagarela”

"a tagarela" (1893), óleo sobre tela, 128 X 83 cm.
"a tagarela" (1893), óleo sobre tela, 128 X 83 cm.

já visitei alguns dos melhores museus de arte do mundo. sei que seria uma temeridade classificar qualquer quadro como o melhor de todos os tempos. mas, de uma forma bem singela e pessoal, “a tagarela” é o meu quadro preferido.

quase todo ano vou visitá-la. arrasto um banquinho, ou sento no chão, e ficamos nos olhando. sei que está louca pra me contar uma fofoca quentíssima, mas não consegue se decidir. por enquanto, ainda não falou nada.

não importa. ela me fascina e me domina. penso nela freqüentemente. adoro o seu olhar, o seu sorriso, suas mãos apertadas, até a vassoura com a qual ela estava varrendo até um segundo atrás – até parar e decidir que, simplesmente, precisava me contar alguma coisa.

estou esperando.

“mulher em círculos”

"mulher em círculos" (1921), óleo sobre madeira, 45 x 38 cm
"mulher em círculos" (1921), óleo sobre madeira, 45 x 38 cm

por fim, belmiro vai para paris, onde morre em 1935.

dentre os nossos pintores, ele é tido como o que melhor absorveu as tendências da vanguarda moderna, como o cubismo e o futurismo.

apesar de esnobado pelos modernistas de 22, justamente por ter seu nome muito associado à escola nacional de belas artes (que então representava o velho contra o qual os modernistas se rebelavam), seu “mulher em círculos”, de 1921, um ano antes da semana de arte moderna, é considerado mais avançado esteticamente do que qualquer quadro brasileiro da década.

até 2004, fazia parte da coleção particular de josé paulo moreira da fonseca. hoje, não sei mais onde está. nunca nos encontramos.

(confesso: existe um certo charme, digamos aurático, em saber que esses quadros, apesar de tão importantes, tão falados, tão reproduzidos, são ainda assim simples objetos que moram fisicamente em um único lugar.)

* * *

já fui ao museu nacional de belas artes. já dei meu oi à tagarela. ela já deu sua benção oficial ao meu retorno. já posso me considerar oficialmente de volta ao rio de janeiro.

* * *

para saber mais sobre belmiro de almeida: “pintura: belmiro de almeida“, por daniela viana leal.

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o cão

hoje de manhã, oito horas, copacabana. duas senhorinhas com cara de crente me abordam na porta do metrô.

o senhor sabia que vai haver uma mudança de governo na terra?

respondo com meu tom de voz mais polido, educado, agradável:

oi. bom dia. infelizmente, não estou interessado. eu sou adorador de satanás e vou pro inferno.

a senhorinha olha pra baixo, o oliver ali mais lindo do que nunca, feliz e sedutor com suas botinhas pretas de andar na rua, e tenta articular sua surpresa, algo tipo “como pode um satanista ter um cachorro tão lindo”, mas antes que ela  possa falar, eu completo:

e foi ele que me converteu. esse cão.

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se você está em busca da felicidade, já está fazendo errado.

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diálogos insondáveis da ponte aérea

Disse o paulista:

– Orra, véi, puta filme fodido, tá ligado?

Responde o carioca:

– Caraca, brother, muito sinistro mesmo, valeu?

E a grande dúvida: gostaram ou não do filme?

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o que é literatura

em minha não-ficção (inclui meus livros de crônicas radical rebelde revolucionário e liberal libertário libertino), a linguagem é somente uma ferramenta para o enredo ou para o argumento. ela é trabalhada cuidadosamente, mas apenas para melhor transmitir o conteúdo sendo expresso. a linguagem, em si, não é uma atração. o texto não-ficcional não chama atenção para o fato de ser texto: idealmente, ele é invisível.

em minha ficção (inclui meu romance mulher de um homem só e meu livro de contos onde perdemos tudo), a linguagem é parte integrante do espetáculo. o texto literário é aquele que não quer ser transparente: ele lembra ao leitor, o tempo todo, de que a linguagem é uma convenção humana, uma criação traiçoeira. a literatura é complexa e sempre se apresenta em forma de enigma: quanto mais parece simples, menos o é. se for, ou não é literatura ou você perdeu alguma coisa.

enquanto a historinha acontece na superfície (o príncipe dinarmarquês que vê um fantasma, o homem que vira inseto, o defunto que narra do pós-tumulo), muito mais coisa acontece abaixo, em camadas mais e mais profundas, no espaço vazio entre as letras, nas entrelinhas: o texto literário é justamente aquele que não se limita a contar uma historinha.

todo texto literário também tem algo de poesia: as palavras não transmitem apenas um conteúdo, elas são o conteúdo. o som, o ritmo, a voz, as lacunas, as aliterações, as metáforas, tudo é proposital. em um texto literário, até os hífens são deliberados: cada palavra conta, principalmente as não ditas.

o sentido do texto de não-ficção é o argumento exposto ou a história narrada. já o texto literário é aquele que borbulha de sentido em cada vírgula.

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Dicionário

FaronzadoAdjetivo e substantivo masculino. Aquele que foi ou sofreu faronzamento.

FaronzadorAdjetivo e substantivo masculino. Aquele que pratica o faronzamento, de forma amadora ou profissional.

FaronzamentoSubstantivo. Ato ou ação de faronzar.

FaronzarVerbo intransitivo. Realizar o faronzamento.

FaronzívelAdjetivo de dois gêneros. Que pode ser faronzado.

FaronzoSubstantivo masculino. Brincadeira na qual dicionaristas competem para ver quantos verbetes conseguem compor, todos remetendo uns aos outros, sem nunca revelar o significado da palavra sendo dicionarizada. Ganha quem causar mais suicídios em revisores, tradutores, escritores.

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a sensação do trabalho

um colega e eu tínhamos que ler o mesmo romance para uma aula. ele pegou o livro, sentou numa mesa, espalhou cuidadosamente seus marcadores, cadernos, post-its. eu me larguei num sofá, fumando um cachimbo.

perguntei: “não vai querer sentar?”

ele: “não. se fico num sofá e não numa mesa, eu não sinto como se estivesse realmente trabalhando.”

eu: “curioso. é exatamente por isso que eu fico no sofá.”