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o que é literatura

em minha não-ficção (inclui meus livros de crônicas radical rebelde revolucionário e liberal libertário libertino), a linguagem é somente uma ferramenta para o enredo ou para o argumento. ela é trabalhada cuidadosamente, mas apenas para melhor transmitir o conteúdo sendo expresso. a linguagem, em si, não é uma atração. o texto não-ficcional não chama atenção para o fato de ser texto: idealmente, ele é invisível.

em minha ficção (inclui meu romance mulher de um homem só e meu livro de contos onde perdemos tudo), a linguagem é parte integrante do espetáculo. o texto literário é aquele que não quer ser transparente: ele lembra ao leitor, o tempo todo, de que a linguagem é uma convenção humana, uma criação traiçoeira. a literatura é complexa e sempre se apresenta em forma de enigma: quanto mais parece simples, menos o é. se for, ou não é literatura ou você perdeu alguma coisa.

enquanto a historinha acontece na superfície (o príncipe dinarmarquês que vê um fantasma, o homem que vira inseto, o defunto que narra do pós-tumulo), muito mais coisa acontece abaixo, em camadas mais e mais profundas, no espaço vazio entre as letras, nas entrelinhas: o texto literário é justamente aquele que não se limita a contar uma historinha.

todo texto literário também tem algo de poesia: as palavras não transmitem apenas um conteúdo, elas são o conteúdo. o som, o ritmo, a voz, as lacunas, as aliterações, as metáforas, tudo é proposital. em um texto literário, até os hífens são deliberados: cada palavra conta, principalmente as não ditas.

o sentido do texto de não-ficção é o argumento exposto ou a história narrada. já o texto literário é aquele que borbulha de sentido em cada vírgula.

8 respostas em “o que é literatura”

Alex,

esta distinção (entre o que é ou não é literatura) sempre me intrigou bastante e ainda não cheguei a uma conclusão sobre o que eu penso a respeito.

Já tentei conversar sobre isso com alguns autores, mas nenhum deles foi objetivo nas respostas (ou eu, idiota, é que não entendi rsrs). Como eu considero você um ótimo escritor (vale dizer, tanto no aspecto de lapidação da língua quanto no conteúdo em si), então gostaria de pedir a sua opinião.

Entendo perfeitamente a distinção que você faz entre “linguagem ferramenta” e “linguagem conteúdo”. Mas, aí, vem a dúvida: dá para escrever literatura usando a linguagem apenas como ferramenta, ou, neste caso, não seria literatura?

Exemplo: Lord of the Rings. Se adotássemos como premissa (veja, não estou afirmando que é ou não, mas apenas supondo para permitir a análise) que Tolkien simplesmente contou uma história procurando escrevê-la da melhor maneira possível, isto é, utilizando a melhor “linguagem ferramenta” possível, a que conclusão chegaríamos?

Concluiríamos que o livro não é literatura, pois esta pressupõe que a linguagem seja conteúdo? E, ainda, você acha possível escrever uma obra de ficção apenas utilizando “linguagem ferramenta”? Algo do tipo, vou apenas contar uma história de ficção que eu criei sem me preocupar que as palavras tenham “som, ritmo etc” (ok, vai ficar uma M, mas é possível?)

O que me incomoda um pouco é a afirmação de que “tudo é proposital”. E se não for, mas ainda assim for ficção?

Ficarei muito grato de puder responder.

Abraços,

Gustavo

Não achei um “responder”, então suponho que os comentários fiquem todos na mesma linha, certo?

“Não sei” foi uma maneira de dizer que acho pouco, bem pouco clara a diferença entre ficção e não-ficção (e algo semelhante à discussão entre literatura e ciência nas ciências humanas). Vejo todas como estratégias de linguagem, embora não ache que isso faça com que “tudo seja a mesma coisa”, como gostam de dizer os pós-modernos. Há diferenças nas estratégias, mas eu acabo pensando que o texto de ficção e o de não-ficção estão, no fim, apenas querendo nos dizer — e convencer — de algo. Um com histórias ou argumentos, o outro com entrelinhas e vírgulas borbulhantes.

Sei não, Alex. Como disse alguém certa vez, as palavras não são inocentes.

E suas estratégias, infinitas.

:)

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